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O Sul no Norte

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de janeiro de 2012

Se você quer saber qual será a política de amanhã, leia as publicações acadêmicas de hoje: nada se grita nas praças que antes não se tenha sussurrado em sala de aula, longe das atenções dos “analistas políticos” da mídia, sempre os últimos a saber. O prazo de maturação em que as idéias dos professores se transformam em moda política é de uns vinte e cinco ou trinta anos, o tempo de uma troca de gerações.

Decorridos alguns meses do desmantelamento da URSS, um amigo meu, militar de alta patente, veio entusiasmado me mostrar uns trabalhos publicados em revistas de estudos estratégicos, que falavam de uma nova divisão geopolítica do mundo: em vez do conflito Leste-Oeste entre regimes comunistas e capitalistas, tínhamos então a disputa Norte-Sul entre países ricos e países pobres.

Em linguagem popularizada, dramatizada em slogans e chavões de fácil repetição, a tese ressurge agora pela boca de dois entre os mais notórios garotos-propaganda do esquerdismo internacional: o escritor uruguaio Eduardo Galeano e o deputado suíço Jean Ziegler (v. http://www.youtube.com/watch?v=MyxO-gL_ZnM). Falta só um pouquinho, portanto, para que a guerra Norte-Sul se consolide como verdade de evangelho, repetida em todos os jornais e botequins do universo pela “parcela mais esclarecida da população”.

No entanto, a teoria não se tornou nem um pouquinho melhor nesse ínterim. Ao contrário, a falsidade e a má intenção que a inspiravam no começo tornaram-se ainda mais patentes. Não preciso, por isso, senão repetir aqui o que naqueles dias remotos expliquei ao meu estupefato amigo.

Primeiro: Desníveis econômicos entre nações não podem, por si, ser causa de conflitos políticos ou de guerras sem que uma longa e complexa manobra estratégica e propagandística os converta nisso. Mas mesmo neste caso não se pode dizer que a pobreza seja a “causa” da disputa: a causa verdadeira é a ação política deliberada que a usou eficazmente como pretexto. E notem que não é do dia para a noite que se infunde na cabeça de um povo empobrecido por oligarquias ociosas e corruptas a idéia de que todos os seus males vêm do estrangeiro.

Segundo: Política e guerra custam muito dinheiro, especialmente numa era de tecnologia avançada, e nenhuma nação pobre se arriscaria a enfrentar os vizinhos mais prósperos, nem mesmo no campo puramente político-diplomático, se não tivesse por trás um amigo rico e poderoso a instigá-la e financiá-la para isso. Mas neste caso o verdadeiro agente não seria a nação pobre e sim o aliado rico, empenhado em bater com mão alugada. Era exatamente a situação que se havia observado nas guerras da Coréia e do Vietnã, onde os americanos não se batiam contra tropas locais esfarrapadas, mas contra o bloco comunista inteiro que as movia como peças de xadrez. Havia também a possibilidade de tratar-se de uma falsa nação pobre, isto é, uma nação rica com povo pobre, cujas oligarquias exploradoras tentassem aliviar conflitos internos canalizando o ódio popular contra bodes expiatórios estrangeiros, tal como faz hoje o Irã. Mas mesmo neste caso o dedo do aliado rico estaria lá, orientando e dirigindo tudo mais ou menos discretamente.

Terceiro: A teoria original de Marx enfocava a luta de classes na escala das nações individuais, cada uma com sua burguesia e seu proletariado supostamente em antagonismo perpétuo. Mas já na década de 30 Josef Stálin lançou a idéia de enfocar os conflitos internacionais, reais ou possíveis, como lutas de classes, as nações pobres no papel de “proletariado”, as ricas no de “burguesia”. Com a ajuda de centenas de milhares de agentes espalhados pelo mundo, e com aquela desenvoltura que os comunistas têm de tomar figuras de linguagem como se fossem descrições científicas da realidade, logo a idéia se universalizou sob a forma do “terceiromundismo”. Na época, só gente muito burra ignorava que as nações pobres alegadamente neutras, mas dedicadas a uma política anti-ocidental sistemática, eram manipuladas pelo bloco comunista. Sabendo-se que a queda da URSS não modificou substancialmente o esquema de poder na Rússia nem atenuou em nada a ação do movimento comunista internacional, a teoria Norte-Sul não passava em 1990, como não passa hoje, de uma reedição melhorada do “terceiromundismo” stalinista, a ser acionada em condições estratégicas mais que favoráveis. De um lado, o triunfalismo ocidental empenhado em celebrar afoitamente a “vitória na guerra fria” encobriu sob um manto de confortável invisibilidade a ação comunista internacional, dando-lhe o descanso necessário para se rearticular em novo formato (que já expliquei em inúmeros artigos, por exemplo http://www.olavodecarvalho.org/semana/030309zh.htm, http://www.olavodecarvalho.org/semana/110718dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/060724dc.html) e reaparecer no mundo com identidade trocada, sem um centro de comando aparente e dispensada, portanto, de arcar com qualquer responsabilidade histórica pelos crimes da URSS e da China. De outro lado, o processo mesmo da “globalização” e o fortalecimento inaudito dos organismos internacionais como núcleos de um governo mundial em formação determinaram claramente o desmantelamento da indústria norte-americana, a transformação maciça da imigração forçada em arma de dissolução das soberanias nacionais no Ocidente, o desgaste dos EUA e da Europa em sucessivas crises econômicas e a emergência da China como potência concorrente ameaçadora. Que momento melhor haveria para um ataque geral ao Ocidente sob o pretexto de guerra dos pobres contra os ricos, do “Sul” contra “o Norte”? Quem, numa hora dessas, se lembrará de observar que os agentes principais do processo – Rússia, China, Irã – ficam no Norte?

Do Brasil ao Brejil

Olavo de Carvalho

O Globo, 12 de março de 2004

Antigamente — ainda ontem, quando eu tinha vinte anos —-, exigia-se muito de um escritor. Ele tinha de dominar os recursos da sua arte ao ponto de que toda a história dela, de algum modo, transparecesse no seu estilo. Tinha de possuir uma visão espiritualmente madura do universo e da vida e haver absorvido nela a cultura dos milênios. E essa visão devia estar tão bem integrada na personalidade dele que sua expressão escrita não comportasse o mínimo hiato entre idéia e palavra.

Hoje não é preciso nada disso. Basta uma afetação de sentimentos politicamente corretos na linguagem dos estereótipos mais sufocantes — e pronto: o pimpolho garantiu seu lugar nos suplementos de cultura e nas antologias escolares. Se escreve no estilo padronizado dos manuais de redação, é um primor de nitidez cartesiana. Se embrulha idéias sonsas em jargão lacaniano indigerível, é um assombro de profundidade. Se não articula sujeito e predicado, é um grande comunicador, sensível à linguagem do povo.

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Na literatura de ficção, o único autor que produziu algo de notável nos últimos tempos foi Duda Mendonça. Tão profundo foi o impacto da sua obra, que só agora alguns brasileiros começam a despertar do enredo em que ele os meteu em 2002.

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A quintessência do estilo literário nacional, hoje em dia, encontra sua expressão perfeita nas palavras que, segundo circula na internet, foram proferidas pelo ministro Gilberto Gil em discurso recente:

“É… Bom… Eu queria dizer que a metáfora da música brasileira na globalização efetiva dos carentes objetos da sinergia fizeram a pluralização chegar aos ouvidos eternos da geografia assimétrica da melodia.”

Tudo — o melhor do Brasil — encontra-se nesse parágrafo: a quota de dislexia requerida para os altos cargos federais, a absoluta incapacidade para a concordância verbal, a total inconexão lógica, o dispêndio exibicionista de termos pedantes sem nenhum significado no contexto.

Em outras épocas, vendo um sujeito desses no Ministério da Cultura, eu gritaria: “Basta!”, “Fora!”. Hoje, com serenidade olímpica, admito que ele está no lugar certo. Quem poderia representar mais condignamente a inteligência brasileira no seu estado atual?

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Mas não lhe faltam imitadores. O PFL, por exemplo, depois de ter passado anos diluindo sua identidade até abaixo do número de Avogadro, cansou de fisiologismo e tomou a máscula resolução de autodefinir-se ideologicamente. Sacudindo de si o comodismo, juntou todas as suas forças morais e, num rompante de coragem, assumiu: é e será sempre… um partido de centro. Direi até mesmo: de extremo-centro.

Afinal, who cares?

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Também não revolta a ninguém o arquivamento do processo movido pelo PSDB contra o presidente. Esse processo não chegou sequer a ser um blefe. Foi um arremedo de blefe, concebido para impressionar não o adversário, mas a platéia. Diante da decisão do STF, o tucanato respirou com alívio, liberto do risco apavorante de ser levado a sério.

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Qualquer brasileiro com QI superior a 12 sabe que as leis, neste país, são espadas de geléia brandidas contra o aço do esquema esquerdista dominante, respaldado na estratégia continental de Fidel Castro e em sólidas alianças européias e asiáticas.

Como os casos Waldomiro e Celso Daniel provaram com evidência sobrante, qualquer bandidinho apadrinhado pelo esquema é mais poderoso do que o conjunto das instituições nacionais.

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O Brasil só tem três instituições estáveis: o Foro de São Paulo, a Receita Federal e o narcotráfico. O resto é ilusão.

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Diante dessas coisas, o leitor pode buscar consolo nos versículos do Livro Amarelo-Fralda dos Pensamentos do presidente Lula, principalmente naqueles trechos memoráveis em que o nosso sábio governante assegura que um cego está olhando para ele ou garante que não viveu no século do Holocausto, uma vergonha para a nossa pátria. Outrora, isso me arrancaria risos e lágrimas. Hoje contemplo tudo com búdica indiferença. É tarde para temer que a vaca vá para o brejo. O brejo cresceu, engoliu a vaca, engoliu tudo. Onde era o Brasil, agora é o Brejil.

Sutilezas da fala brasileira

Olavo de Carvalho

Época, 3 de Março de 2001

Graças a elas, a luta pela soberania torna-se guerra contra um inexistente liberalismo

No Brasil, os nomes de doutrinas e regimes políticos não designam as coisas que lhes correspondem na ordem das idéias e dos fatos. Designam pessoas e os sentimentos que a gente tem por elas. Os termos “liberalismo”, “neoliberalismo” e “globalização”, por exemplo, são sinônimos. Empregam-se, indiferentemente, para dizer: “Maldito FHC”. Mas, como os sentimentos que os usuários dessas expressões têm pelo maldito FHC são substancialmente os mesmos que têm pela direita em geral, as três palavras passam a significar também fascismo, nazismo e ditaduras militares latino-americanas, sem prejuízo de que possam ser usadas ainda para designar as tradições dos Founding Fathers americanos, a ideologia do Concílio de Trento e, last but not least, o Lalau e o Luiz Estevão.

Não pretendo absolutamente modificar essa norma lingüística solidamente estabelecida, pois cada um tem a liberdade de usar o divino dom da fala como bem entenda e, se uma nação inteira decidiu utilizá-lo como instrumento de auto-intoxicação, quem sou eu para aconselhá-la a não fazer isso?

Não obstante, é bom informar que, no resto do mundo, liberalismo é um regime de liberdade econômica e política, neoliberalismo é a sutil adaptação desse regime ao paladar dos nostálgicos do socialismo e globalização ou é a abertura das fronteiras comerciais ou a consolidação de um onipotente Estado mundial por cima da dissolução dos poderes regionais. Esses fenômenos não apenas não são o mesmo, mas têm entre si algumas incompatibilidades essenciais. Por exemplo, um Estado mundial, com regulamentos padronizados em escala planetária, é absolutamente contraditório com o princípio liberal da livre iniciativa local, não podendo, pois, um liberal ser um globalista em sentido pleno. No uso brasileiro dos termos, porém, essa incompatibilidade escapa por completo à percepção humana, de modo que todo mundo acredita que fomentando a intervenção do Estado na sociedade estará fazendo algo contra a nova ordem global, quando esta, precisamente, necessita que os Estados nacionais sejam “agentes de transformação” fortes o bastante para implantar em seus respectivos países as novas leis uniformizantes que vêm prontas de Nova York e de Genebra, como por exemplo o desarmamento civil e as quotas raciais.

Mas a mixórdia semântica brasileira transpõe resolutamente as fronteiras da psicose quando uma alma de nacionalista contempla com horror a subserviência de nosso governo aos poderes internacionais e chama isso de “liberalismo”, identificando independência nacional com “Estado forte”, como se o governante de um Estado forte não estivesse muito mais habilitado que o “maldito FHC” a impor a seus governados as regulamentações globalistas que bem desejasse.

Não é de estranhar que, nesse contexto, os males econômicos do Brasil acabem sendo atribuídos à economia liberal, a qual, no entanto, praticamente inexiste neste país. O The Wall Street Journal e a Heritage Foundation mantêm há anos uma meticulosa pesquisa de índices de liberdade econômica, definida pela ausência de fatores como intervenção estatal, impostos altos, regulamentações restritivas etc. Nessa escala, que vai idealmente de 1 a 200, os regimes mais liberais do mundo são Hong Kong (1), Cingapura (2), Irlanda (3), Nova Zelândia (4), Estados Unidos e Luxemburgo (5), Reino Unido (7), Holanda (8) e Suíça (9). O Brasil está em 93º lugar, bem pertinho da China (114). A prevalecer a atual semântica, devemos nos libertar da exploração globalista adotando os métodos de desenvolvimento da Índia (133), do Haiti (137), de Cuba (152) e da Coréia do Norte (155). Teremos de viver de esmolas do Banco Mundial, mas isso então se chamará “soberania”- e quem serei eu para dizer que não?

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