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A degradação dos melhores

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 31 de agosto de 2014

          

No último número da elegante revista do Banco Itaú Personnalité, Ruy Castro enfatiza o contraste entre duas fases da existência do poeta Vinícius de Moraes:

“Há um Vinícius de Moraes sobre o qual não resta a menor dúvida: … o compositor, o letrista e o showman; o diplomata, o homem do mundo e o amigo de ilustres; o boêmio, sempre com um uísque a bordo, e o liberal, o homem de esquerda, com muitas amizades entre os comunistas; o cantor da beleza, o homme à femmes, que se casou nove vezes e vivia em permanente estado de paixão; o capitão do mato e o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô; o diletante da crônica, do teatro e do cinema…”

“Mas houve também um Vinícius tão real quanto esse acima, e que seus admiradores mal conseguiriam reconhecer se descrito sem as necessárias ressalvas. Um Vinícius profundamente católico, metafísico, passadista, politicamente de direita, simpático ao fascismo, íntimo de assombrações, inimigo do cinema falado, alérgico ao jazz moderno, desconfiado da juventude – e olhe que ele também era jovem – e certo de que o sexo era uma coisa apenas espiritual. O que? Sim, esse era o Vinícius de 1933.”

Sim, esses dois Vinícius existiram, e, se o do primeiro parágrafo é ainda um personagem popular decorridos trinta e tantos anos da sua morte, o do segundo permanece tão desconhecido que Ruy Castro tem de revelá-lo a um grupo de admiradores estupefatos, numa revista de poucos e requintados leitores.

Só há um problema. O “Vinícius de 1933”, que Ruy Castro descreve em termos que fazem dele um monstrinho antediluviano, era, malgrado algumas esquisitices inegáveis, um dos poetas mais sérios e profundos do idioma. Já o Vinícius nacionalmente conhecido – para Ruy Castro, o único normal e digno de admiração irrestrita – nunca passou de uma figura do show business, um velho caricato macaqueador da moda juvenil, gabando-se de ser “o branco mais preto do Brasil”, mas bebendo uísque importado em vez de cachaça, namorando populisticamente mulheres da alta sociedade, e escrevendo nada mais que sambinhas autocongratulatórios e umas frases de efeito que se conservaram na memória nacional não por meio da história literária, mas da indústria de discos e do governo que ele tanto ludibriou, vivendo de dinheiro público sem nem marcar o ponto na repartição.

“A vida é a arte do encontro embora haja tantos desencontros pela vida”, “A mulher amada é o tempo passado no tempo presente no tempo futuro no sem tempo”, “Quem já passou por essa vida e não viveu pode ser mais, mas sabe menos do que eu…”, “Quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém” e milhares de tolices semelhantes, que parecem ter sido produzidas especialmente para diários de moças, assinalam com toda a clareza a decomposição de um talento de poeta e de um caráter de homem, diluídos em álcool para mais rentosa distribuição comercial.

Não é coincidência, de maneira alguma, que essa transfiguração da literatura em cocô acompanhasse pari passu a aproximação cada vez mais íntima do poeta com os grupos de esquerda, que naqueles anos da ditadura precisavam desesperadamente de poster men. Se para servir a esse fim um grande homem tinha de ser infantilizado por meio de paparicações grudentas e seduções corruptoras, tanto melhor.

Era uma política consciente. Lembro, como se fosse hoje, o zunzum entre os comunistas da redação quando Carlos Alberto Libânio Christo, o “Frei Betto”, veio trabalhar na Folha, naquele intervalo de retorno ao ambiente profano, que nos seminários precede a opção definitiva pela ordenação sacerdotal. Era necessário, era urgente, comentavam, fazer amizade com o padreco, embebedá-lo, levá-lo a boates e puteiros, fazer dele um membro em regra da patota dos bons.

A ética por trás disso era a boa e velha inversão: já que a sociedade burguesa é corrupta e hipócrita, é preciso combatê-la desde dentro por meio da corrupção ostensiva, exibida, orgulhosa de si. Os serviços prestados ao Partido santificavam tudo. Quando Vinícius trocou o cristianismo por uísque, mulheres, samba e comunismo, tornou-se um modelo de virtudes.

Às vezes não era preciso chegar a tanto. O Partido sabia tocar o ponto sensível de cada um. Se o alvo escolhido fosse um pobretão apavorado com a perspectiva de morrer de fome, como Otto Maria Carpeaux, bastava oferecer-lhe empregos em troca de favores prestados, depois ir pedindo cada vez mais favores até que consumissem por inteiro o tempo e os talentos do infeliz, bajulando-o e aplaudindo-o à medida que se imbecilizava cada vez mais.

O apoio na hora da encrenca sempre deixava marcas fundas. Roland Corbisier, brilhante intelectual do Partido Trabalhista, intermediou o apoio dos comunistas à candidatura de Negrão de Lima ao governo do Rio em 1965, foi demitido do Ministério da Educação pelos militares e acabou fisgado. Virou o típico “bom sujeito”: divorciou-se da mulher, abandonou a Igreja e, de seus primeiros livros, A Responsabilidade das Elites e Formação e Problema da Cultura Brasileira (ambos de 1956), estudos magníficos sobre a vida intelectual no Brasil, passou a escrever manuais de marxismo-leninismo dignos da Academia de Ciências da URSS.

À medida que o gramscismo se consolidou como doutrina dominante nas universidades, a política de cooptação perdeu seu caráter de seleção individual e se tornou o critério geral de aprovação na carreira acadêmica e jornalística, a conditio sine qua non para os neófitos serem reconhecidos como “intelectuais”. A imbecilização industrializou-se e a cultura superior no Brasil acabou.

Da mediocridade obrigatória

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 25 de agosto de 2014

          

“Admirar sempre moderadamente é sinal de mediocridade”, ensinava Leibniz. Uma das constantes da mentalidade nacional é precisamente o temor de admirar, a necessidade de moderar o elogio – ou mesmo entremeá-lo de críticas – para não passar por adulador e idólatra.

Já mencionei esse vício em outros artigos, assinalando que ele resulta em consagrar a mediocridade como um dever e um mérito – às vezes, a condição indispensável do prestígio e do respeito.

Entretanto, não é um vício isolado. Vem com pelo menos mais dois, que o prolongam e consolidam.

O primeiro é este: ao contrário do elogio, a crítica, a detração e até mesmo a difamação pura e simples não exigem nem admitem limite algum, nem precisam de justificação: é direito incondicional do cidadão atribuir ao seu próximo todos os defeitos, pecados e crimes reais ou imaginários, ou então simplesmente condená-lo ao inferno por lhe faltar alguma perfeição divina supostamente abundante na pessoa do crítico. Esse vício faz do efeito Dunning-Kruger (incapacidade de comparar objetivamente os próprios dons com os alheios) mais que uma endemia, uma obrigação.

O segundo é talvez o mais grave: na mesma medida em que se depreciam os méritos de quem os tem, exaltam-se até o sétimo céu aqueles de quem não tem nenhum. O mecanismo é simples: se as altas qualidades excitam a inveja e o despeito, a mediocridade e a incompetência infundem no observador uma reconfortante sensação de alívio, a secreta alegria de saber que o elogiado não é de maneira alguma melhor que ele.

A compulsão de enaltecer virtudes inexistentes torna-se uma modalidade socialmente aprovada de autoelogio.

Da pura depreciação de méritos reais passa-se assim à completa inversão do senso de valores, onde a mais alta virtude consiste precisamente em não ser melhor que ninguém.

Essa inversão já era bem conhecida desde a Teoria do Medalhão, de Machado de Assis, e as sátiras de Lima Barreto. Mas nas últimas décadas foi levada às suas últimas conseqüências, na medida em que a esquerda ascendente, ávida de autoglorificar-se e depreciar tudo o mais, precisava desesperadamente de heróis, santos e gênios postiços para repovoar o imaginário popular esvaziado pela “crítica radical de tudo quanto existe” (expressão de Karl Marx).

A lista de mediocridades laureadas começa nos anos 60 com o presidente João Goulart, o arcebispo Dom Hélder Câmara, o almirante Cândido Aragão, o criador das Ligas Camponesas – Francisco Julião –, o doutrinador comunista Paulo Freire e toda uma plêiade de coitados, erguidos de improviso à condição de “heróis do povo” e incapazes de oferecer qualquer resistência ao golpe militar que os pôs em fuga sem disparar um só tiro.

Nas décadas seguintes, o insignificante cardeal Dom Paulo Evaristo Arns transfigurou-se num novo S. Francisco de Assis por fazer da Praça da Sé um abrigo de delinquentes; o sr. Herbert de Souza, o Betinho, por ter tido a ideia maliciosa de transformar as instituições de caridade em órgãos auxiliares da propaganda comunista, foi proposto pela revista Veja, sem aparente intenção humorística, como candidato à beatificação; e o sr. Lula da Silva, sem ter trabalhado mais de umas poucas semanas, foi elevado ao estatuto de Trabalhador Arquetípico, preparando sua eleição à Presidência da República e a pletora de títulos de doutor honoris causa que consagraram o seu orgulhoso analfabetismo como um modelo superior de ciência.

Nesse ínterim, é claro, a produção de obras literárias significativas reduziu-se a zero, milhares de indivíduos incapazes de conjugar um verbo tornaram-se professores catedráticos, as citações de trabalhos científicos brasileiros na bibliografia internacional foram se reduzindo até desaparecer e o número de analfabetos funcionais entre os estudantes universitários subiu a quase 50%.

Não por acaso os alunos das nossas escolas secundárias começaram a tirar sistematicamente os últimos lugares nos testes internacionais, ficando abaixo de seus colegas da Zâmbia e do Paraguai – resultado que um ministro da Educação achou até reconfortante, pois, segundo ele, “poderia ter sido pior” (até hoje ninguém sabe o que ele quis dizer com isso).

A devastação geral da inteligência lesou até alguns cérebros que poderiam ter dado exemplos de imunidade à estupidez crescente. Nos anos que se seguiram ao golpe de 1964, os partidos comunistas conseguiram cooptar, sob o pretexto de “luta pela democracia”, vários intelectuais até então cristãos e conservadores, que, travados pelo senso das conveniências imediatas, foram então perdendo seus talentos até chegar à quase completa esterilidade.

Desse período em diante, Otto Maria Carpeaux nada mais escreveu que se comparasse à História da Literatura Ocidental (1947) ou aos ensaios de A Cinza do Purgatório (1942) e Origens e Fins (1943); Ariano Suassuna nunca mais repetiu os “tours de force” do Auto da Compadecida (1955) e de A Pena e a Lei (1959). Alceu Amoroso Lima deixou de ser o filósofo de O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo (1951) e de Meditações sobre o Mundo Interior (1953), para tornar-se “poster man” da esquerda e garoto-propaganda do ridículo Hélder Câmara.

Nada disso foi coincidência. A total subordinação da cultura superior aos interesses do Partido é objetivo explícito e declarado da estratégia de Antonio Gramsci, um sagui intelectual que se tornou, entre os anos 60 e 90 do século passado, o guru máximo das consciências e o autor mais citado em teses acadêmicas no Brasil.

Comparados aos feitos da esquerda no campo da educação e da cultura, o Mensalão, o dinheiro na cueca e a roubalheira na Petrobras recobrem-se até de uma aura de santidade..

Mais um caso de histeria

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 17 de agosto de 2014

          

O problema de muitos “formadores de opinião”, no Brasil de hoje, não é a burrice em estado puro, mas aquela burrice em segunda potência que nasce do impulso histérico de criar uma frase e, ouvindo-a da própria boca, acreditar nela pela simples razão de ter conseguido dizê-la.

O histérico vive em um mundo fictício composto inteiramente de autopersuasão. Daí ao mais extremo analfabetismo funcional o passo é bem curto. Quando o histérico lê alguma coisa, não entende aquilo que está escrito, mas o que desejaria que estivesse escrito. E acredita piamente que foi isso o que leu.

Um desses, um tal de Renato Rovai, leu no meu Facebook a seguinte afirmação: “O governo torna sigilosas as investigações de acidentes aéreos e poucos dias depois já vem um acidente aéreo politicamente relevante. Ou o acaso está gozando da nossa cara, ou não é acaso.” Que é que ele fez com isso? Imediatamente tascou no seu blog do Portal Forum: “Olavo de Carvalho culpa Dilma pela morte de Eduardo Campos”.

Qualquer pessoa razoavelmente alfabetizada, com uma inteligência mediana não entorpecida por impulsos neuróticos incoercíveis, entende que uma sentença construída em modo alternativo sugere duas hipóteses e nenhuma certeza.

No episódio presente, um acaso irônico ou a vaga possibilidade de um crime. Transformar isso na afirmação peremptória da ocorrência de um crime, seguida da identificação positiva de um culpado, é, sem a menor dúvida possível, obra de imaginação histérica.

Com toda a certeza o sr. Rovai desejaria mesmo que eu tivesse dito a enormidade que me atribui. Assim poderia facilmente pintar-me como um caluniador fantasista, à perfeita imagem e semelhança dele próprio, e, escondendo-se por trás de um autorretrato com o meu nome, acreditar-se melhor que eu. Um histérico, na verdade, não faz outra coisa na vida senão representar cenas autolisonjeiras no seu teatrinho mental para não ter de tomar consciência da sua deplorável miséria humana.

Tão agudamente necessitado de fazer-se de superior estava o sr. Rovai, que me descreveu como alguém “que é considerado filósofo por ‘gênios’ do estilo de Roger, o ex-cantor e pretenso humorista”, sem nem por um segundo levar em conta que:

(1) O sr. Roger, do qual só tive notícia ontem, não consta ter jamais emitido a menor opinião a meu respeito. A busca no Google aponta o meu nome junto a dois Rogers – Scruton e Kimball – mas não a esse.

(2) Uma breve pesquisa no meu currículo e nos documentos que o embasam (http://www.olavodecarvalho.org/english/life-and-works.html) teria bastado para mostrar que quem me considera filósofo (e até, vejam vocês, bom filósofo) não são gênios entre aspas, mas alguns dos maiores intelectuais do Brasil e do mundo, como Miguel Reale, Josué Montello, Herberto Sales, Roberto Campos, Ariano Suassuna, Alexandre Costa Leite, Romano Galeffi, David Walsh, Antoine Danchin e uma infinidade de outros, além de uns ministros de Estado e dois ex-presidentes da República.

Um jornalista sério, quando se refere a um escritor, pode falar dele bem ou mal, mas não pode esconder sob uma pueril afetação de desprezo uma identidade histórica solidamente formada e comprovada. Pode, por exemplo, não gostar de Ariano Suassuna, de Jorge Amado ou de mim, mas não pode dizer que só humoristas fracassados apreciam o que escrevemos.

Isso não é jornalismo: é fabulação histérica. Um jornalista escreve para contar algo do que vê e do que sabe. Um histérico, para compensar seus recalques com grotescos trejeitos de superioridade fingida.

Dito isto, é certo que o sr. Rovai, cujas realizações intelectuais não chegaram a ser louvadas nem mesmo por algum humorista fracassado, pela incontestável razão de que não existem, vai quase que infalivelmente tentar tirar proveito retroativo do vexame, fazendo-se de importante pelo simples fato de que lhe consagrei estas linhas.

Para tirá-lo dessa ilusão, peço-lhe que releia a primeira frase deste artigo, onde a deformação histérica da linguagem aparece como fenômeno generalizado e epidêmico, do qual ele não é senão um exemplo entre milhares, aqui escolhido precisamente porque ilustra muito bem até que ponto essa patologia intelectual pode atrofiar o julgamento e eliminar o senso de realidade.

Lembro aos leitores o diagnóstico já clássico do dr. Andrew Lobaczewski: quando um grupo de psicopatas assume o poder e controla a sociedade, o bombardeio de mentiras oficiais, debilitando na população o impulso de dizer o que vê e o que sente, e substituindo-o pela compulsão de repetir o que ouve, acaba por gerar uma multidão de apoiadores histéricos, cuja única função na vida é fingir para poder persuadir-se e persuadir-se para poder fingir.

Quando as coisas chegam a esse ponto, todos os critérios de realidade foram abolidos e toda possibilidade de ação racional eliminada: é o Império do Mal, onde o caos e o crime podem espalhar-se à vontade, sem que ninguém tenha a autoridade moral de detê-los.

A atuação pública inteira do sr. Rovai não é senão uma ilustração, especialmente miserável, desse estado de coisas.

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