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Sutilezas da política americana

Olavo de Carvalho

Zero Hora, 17 de setembro de 2006

Para vocês começarem a entender um pouquinho da política americana, nada melhor do que analisar o noticiário brasileiro sobre o conflito do presidente Bush com seu ex-secretário Colin Powell, confrontando-o com um detalhe sutil publicado por uma parte ao menos da mídia nos EUA, mas omitido totalmente na do Brasil.

O que vocês vão ler por aí é que o general Powell é lindo-maravilhoso porque, sendo um republicano e conservador, teve a coragem de se erguer, por motivos morais e humanitários, contra a proposta presidencial de ocultar dos acusados de terrorismo as provas consideradas material secreto (“classified evidence”). “O mundo, disse Powell, está começando a duvidar das bases morais do nosso combate ao terrorismo.”

Desde logo, a posição de Powell é que é moralmente insustentável. “O mundo”, isto é, o falatório geral, já era classificado pela Bíblia como um dos inimigos da alma, e nenhuma concessão a ele pode ter sentido moral mais elevado que a de um afago demagógico na vaidade dos tagarelas enragés, principalmente quando se sabe que não há entre eles um só amigo dos EUA.

Em segundo lugar, que notável moralidade pode haver na exigência de entregar segredos militares ao inimigo em época de guerra? Powell e tutti quanti sabem perfeitamente que tratar terroristas estrangeiros como se fossem cidadãos nacionais no pleno gozo de seus direitos é um suicídio político e militar a que país nenhum do mundo (muito menos alguma ditadura islâmica) jamais se submeteria.

Mas a dura realidade é que Powell, posando de guardião da moral e prevalecendo-se de um resto de prestígio de servidor leal do governo, tem agido de maneira imoral e desleal para com o presidente desde muito antes da discussão atual.

Vocês devem se lembrar de Valerie Plame, a agente secreta cuja identidade foi revelada à imprensa por alguém do governo. Forçando o caso até à demência, pois Valerie não estava de serviço no exterior e portanto a divulgação do seu nome não constituía crime, a mídia chique armou um fuzuê dos diabos, acusando o assessor presidencial Karl Rove e o vice-presidente Dick Cheney, atribuindo-lhes toda sorte de motivos ignóbeis para o vazamento proposital de informação classificada e chegando a estimular, no Congresso, um movimento de impeachment do presidente Bush por “alta traição”.

Por fim, os próprios acusadores acabaram descobrindo que o culpado pela revelação não tinha sido ninguém do primeiro escalão mas um simples funcionário de carreira, Richard Armitage, tão íntimo da equipe presidencial quanto eu do ministério Lula. Até o Washington Post, radicalmente antibushista, acabou confessando que dar crédito às acusações contra Cheney, Rove e Bush no caso Plame tinha sido “um erro lamentável”.

Pois bem, o detalhe a que me referi acima é que desde o começo da história o general Powell sabia quem era o verdadeiro culpado e não disse uma palavra a respeito, deixando que a mentira crescesse, criasse uma crise política e ameaçasse deixar o país sem comando em plena época de guerra. Sua conduta no episódio foi francamente imoral, não sei até que ponto ilegal também. Mas pior do que a conduta é a lógica subentendida nela: o homem capaz de deixar que um ridículo vazamento de informação secundária passe como crime de alta traição, que autoridade tem para proclamar que a mais alta moralidade consiste na obrigação de passar informações secretas ao inimigo em guerra?

Para mim está claro que o general Powell tem menos afeição pela hierarquia de comando ou pela hierarquia de valores do que por qualquer oportunidade, mesquinha e impatriótica o quanto seja, de brilhar perante a mídia anti-americana às custas da imagem do presidente e da própria honra nacional dos EUA.

O contraste entre sua atitude no caso Plame e na presente discussão é tão flagrante e tão repulsivo, que só a mania presidencial de preferir antes o prejuízo político do que o escândalo pode explicar que o governo ainda finja enxergar nele um sujeito respeitável.

Se há um defeito óbvio no governo Bush é a delicadeza mórbida, masoquista, com que trata seus inimigos políticos e midiáticos, enquanto estes são de uma crueldade mental a toda prova no que dizem e fazem contra ele. Suprimido esse defeito, logo se tornaria claro que quase todos os outros não passam de efusões retóricas nascidas dessa mesma crueldade. Nos EUA, muita gente já percebeu isso. No Brasil, ninguém.

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