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Consultores iluminados

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 15 de julho de 2013

          

Pelo seu currículo de cientista político membro de não sei quantas associações e outras tantas comissões, o sr. Alberto Carlos Almeida é um típico representante da classe de consultores iluminados a que as nossas elites políticas e empresariais concedem atenção reverente e sólida remuneração. Tão típico que, em entrevista ao programa Marília Gabriela, ele mostrou mais uma vez que o exercício de tão altas funções, neste país, independe de qualquer domínio das matérias sobre as quais se opina.
Não digo que todos os seus pareceres sobre o que quer que seja ilustrem esse fenômeno. Não li, por exemplo, o seu livro A Cabeça do Brasileiro, que juram que é bom, coisa em que vou continuar acreditando sob palavra até que um exemplar dessa obra me caia nas mãos e mostre se ela é, ou não, capaz de se defender sem apoio externo.
Mas, quando um cidadão investido de autoridade científica, consultado em público nessa qualidade, emite sobre matéria grave uma opinião que ameaça lançar o descrédito sobre uma instituição milenar e todas as pessoas que a representam, espera-se que o faça, pelo menos, com algum senso de responsabilidade e conhecimento de causa. Se ele falha a esse dever elementar em circunstância tão exigente, não é demasiado supor que o fará mais ainda em assuntos de menor consequência, como, por exemplo, “a cabeça do brasileiro”.
P erguntado pela entrevistadora sobre quais as causas do atraso brasileiro, e em especial do desprezo do nosso povo pela educação, o distinto não hesitou em lançar todas as culpas sobre um único suspeito: a Igreja Católica. E fez isso não no tom de quem arriscasse um palpite informal, mas de quem transmitisse a plateia uma certeza científica bem provada.
Sua tese, em resumidas contas, foi esta: a Igreja Católica, ao longo da História europeia, e também nas Américas desde a descoberta, só se ocupou da educação da elite, da aristocracia, deixando o povo na ignorância. Foi a Reforma protestante que inaugurou a educação popular, datando daí o progresso com que as nações assim beneficiadas sobrepujaram as suas concorrentes católicas. No Brasil em especial, os grandes malvados foram os jesuítas, que apenas  davam instrução às elites e nada para o povo.
O  sr. Almeida, com toda a evidência, jamais leu uma história da educação. Então eis aqui algumas coisinhas que ele teria a obrigação de saber para poder opinar a respeito:
1. Ao longo de toda a História medieval, a Igreja não educou aristocracia nenhuma. Os nobres, os barões, consideravam que só a guerra era atividade à sua altura, o estudo sendo bom apenas para as mulheres, os futuros padres e alguns empregados subalternos.
2. Desde o começo da Idade Média até épocas bastante avançadas para dentro da modernidade, as escolas elementares fundadas pela Igreja funcionavam ou nas catedrais, ou nos templos paroquiais, ou nos monastérios. O sr. Almeida acredita realmente que os nobres, abandonando seus palácios, iam frequentá-las, submetendo-se ao vexame de nivelar-se aos padrecos e escreventes?
3. Quanto às universidades, elas não formavam os nobres e sim médicos, advogados, professores, funcionários: eram uma via de ascensão social para quem vinha de baixo. A aristocracia reinante só passou a se interessar por elas quando se tornaram centros de uma influência política independente. Começou então, entre os governos monárquicos e a Igreja, a disputa pelo domínio sobre a massa universitária. Como a Igreja levou a melhor, o que se seguiu foi um dos fenômenos mais característicos da modernidade: a criação de uma nova  intelectualidade composta quase que inteiramente de nobres, alheia e não raro hostil às universidades. Os nomes de Descartes, Bacon, Montaigne e Newton representam-na exemplarmente, assim como a criação da Royal Society. A história real é exatamente inversa à história imaginária do sr. Almeida.
4.  Em meados do século 18, decorridos nada menos do que dois séculos da Reforma protestante, a França católica ainda era o país mais próspero e culto da Europa, enquanto a Alemanha, berço de Lutero, jazia no atraso econômico e cultural mais abjeto, ao ponto de que o alemão não tinha sequer se consolidado como língua de alta cultura (os intelectuais escreviam em francês ou latim). Ainda em meados do século 19, foi em Paris que pela primeira vez um governante alemão, Otto von Bismarck, percebeu que era importante para cada nação ter uma classe média educada, modelo que ele então procurou implantar no seu país, apenas com signo religioso invertido, perseguindo os católicos e fomentando a educação protestante.
5.  Porém, o mais bonito na entrevista foi o que o sr. Almeida disse dos jesuítas. Quem quer que tenha estudado um pouquinho a história deles sabe que seu principal esforço foi educar índios, que estavam no fundo do poço social. Nas Missões, os nativos brasileiros receberam educação muito superior àquela de que dispunha, nas capitais, uma classe alta notabilizada pela mais acachapante indolência intelectual e que, quando desejava educar seus filhos, os enviava à Europa e não aos jesuítas.
6.  Desde a Independência até o advento da República, a Igreja esteve proibida de abrir escolas, de modo que a população urbana em expansão se viu cada vez mais privada de uma instrução comparável, pelo menos, àquela que os índios haviam recebido nas Missões. A incultura popular no Brasil não resultou da educação católica, mas do estrangulamento dela ao longo de quase um século.
O sr. Almeida jura que o problema do Brasil é a educação. É sim. A começar pela dele próprio. E pela dos consultores iluminados em geral.

A farsa radical

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 21 de junho de 2007

O capitalismo distribuiu a imensas massas de classe média benefícios que antes eram privilégios da aristocracia. Mas a aristocracia pagava um alto preço por eles: era a casta guerreira, pronta a morrer no campo de batalha em lugar dos comerciantes e camponeses, isentos a priori de obrigação militar. Uma vida de liberdade e prazeres à sombra da morte iminente ou uma vida de trabalho e abstinência na relativa segurança da rotina econômica, eis as duas formas básicas de existência que, no seu equilíbrio mútuo, marcaram o repertório da humanidade ocidental até pelo menos o começo do século XIX.

Cento e poucos anos bastaram para que, em amplas áreas da superfície terrestre, não só o acesso a uma quantidade de bens materiais nunca antes imaginados, mas a liberdade e os meios para a busca de prazeres praticamente sem limites fossem abertos à pequena burguesia e a boa parte da classe trabalhadora, sem que a isso correspondesse um acréscimo de obrigações morais. Bem ao contrário, a demanda crescente de satisfações veio acompanhada de uma intolerância cada vez maior ao sofrimento e da revolta geral contra toda forma de “repressão”. A eternidade e a morte desapareceram do horizonte, a primeira tornando-se uma ficção de outras épocas, a segunda uma idéia indecente, proibida nas conversações saudáveis. Em pouco tempo a Europa e as Américas povoaram-se de uma nova classe de adolescentes crônicos, ávidos de sensações, rebeldes a toda limitação, desfrutando da obra dos séculos como se fosse um direito natural e vivendo cada dia como se fosse a data inaugural de uma espécie de eternidade terrestre.

Postiça, desequilibrada, fútil e baseada na ingratidão radical para com as gerações anteriores, essa forma de vida produziu uma tremenda acumulação de culpas inconscientes, as quais, não podendo recair sobre os culpados autênticos – que toleram a idéia de culpas ainda menos que a da morte — são projetadas de volta sobre a fonte de seus benefícios imerecidos. Daí o aparente paradoxo, tantas vezes notado, de que o ódio ao capitalismo não germine entre suas supostas vítimas, os pobres, mas justamente entre seus principais favorecidos: a classe média, os estudantes e intelectuais, o beautiful people da mídia e da moda, os filhinhos-de-papai que vão à universidade num BMW de cem mil dólares e destróem o refeitório porque a comida não é de graça. Não há nisso paradoxo algum: há apenas a lógica implacável da projeção neurótica. A premissa oculta dessa lógica é o fato de que o verdadeiro pecado do capitalismo, a ruptura do equilíbrio natural entre prazeres e deveres, não pode ser denunciado. Tornou-se um tabu. É preciso então inventar culpas imaginárias, negar a realidade manifesta da prosperidade geral crescente e, num giro lógico formidável, imputar ao capitalismo até mesmo a miséria dos países socialistas.

Grande ou pequeno, moderado ou extremado, todo rebelde anticapitalista, sem exceção, é um farsante – não só nas suas atitudes exteriores, mas na base mesma da sua personalidade, na raiz do seu estilo de vida.

Os ricos em fuga

 Olavo de Carvalho


 O Globo, 2 de março de 2002

O destino de cada nação depende de muitos fatores, mas um deles é a existência — ou não — de indivíduos que se sintam responsáveis, de maneira direta e pessoal, por esse destino. Juntos ou separados, tais indivíduos formam uma espécie de aristocracia, que não se confunde com a nobreza hereditária, com a grande burguesia ou com a classe letrada. Ao contrário. Muitas vezes provêm dos meios populares, mas seu senso de responsabilidade e iniciativa acaba por levá-los a uma posição de liderança da qual emergem, com o tempo, aquelas três classes privilegiadas. A aristocracia européia nasceu todinha dos talentos militares espontâneos que, ante a passividade geral da sociedade em decomposição após o fim do Império Romano, se ergueram contra os bárbaros invasores, organizaram a defesa e restauraram o senso de ordem, de lei, de civilização. Seus privilégios originaram-se do simples reconhecimento das comunidades, que deram terras, dinheiro, cargos públicos e direitos especiais àqueles que as salvaram do perigo. De modo análogo, a elite comunista que governa a China até hoje conquistou seu lugar pelo ofício das armas, provando sua disposição e capacidade de defender o país contra a invasão japonesa melhor do que podia fazê-lo o velho governo constituído; terminada a guerra, a China tinha uma nova classe dominante. Os exemplos poderiam multiplicar-se ad infinitum: as classes que ascendem ao domínio das sociedades não surgem do nada, nem da exploração: surgem da capacidade de liderar o conjunto, de propor metas e estratégias, de guiar e organizar o povo para a realização de valores que são reconhecidos por todos.

Nem sempre, é claro, a nova classe se constitui no campo da guerra. Os desbravadores de território, os pioneiros da técnica e da indústria, os sábios, os educadores morais e intelectuais da multidão — são outros tantos exemplos de líderes que o próprio povo eleva espontaneamente à condição de classe privilegiada, por gratidão e respeito, quando não pelo simples efeito natural, quase aerodinâmico, que eleva mais alto os que voam na frente.

Mas também é certo que, consolidados os privilégios, nem sempre os valores e virtudes que os geraram se transmitem às gerações subseqüentes. Com o tempo, os herdeiros acabam por imaginar que sua posição na sociedade é uma espécie de direito natural ou divino, eterno e incondicionado; que seu único dever é desfrutar de seus privilégios ou ampliá-los per fas et per nefas, ainda que em prejuízo da sociedade que os elevou ao poder e à glória. Então seus interesses entram em choque com os da maioria. A luta de classes não é a força causal constante que move a sociedade, mas é o efeito inevitável do declínio da própria classe dominante. Por isso mesmo é utópico acreditar que o “direito de propriedade” possa ser defendido incondicionalmente, a despeito da temperatura moral da época; pois o direito de um não é senão a obrigação de outro para com ele — e a obrigação da maioria para com as elites, que deriva temporalmente e depende logicamente da obrigação destas para com ela, não poderia subsistir por muito tempo à autodemissão moral das classes superiores.

Por fim, é claro que, entre os dois momentos acima apontados, o da ascensão criadora e o da expansão predatória, arrivistas e oportunistas de toda sorte embarcam como passageiros clandestinos na classe dominante em formação, apressando o declínio de seu ímpeto originário, a deterioração de suas virtudes e a dissolução de seu senso de responsabilidade.

Dito isso, a aplicação desse critério para a obtenção de um diagnóstico moral das classes superiores no Brasil de hoje pode ser feita da maneira mais fácil, mediante a simples coleta de um dado que é visível — literalmente — com os olhos da cara. Percorra o leitor as ruas centrais de qualquer grande cidade brasileira, aquelas mesmas ruas onde pouco tempo atrás se instalavam orgulhosamente os escritórios das melhores empresas: verá uma multidão de placas de “Vende-se” e “Aluga-se” em imóveis abandonados, deteriorados, cobertos de inscrições no hediondo alfabeto dos grafiteiros. Panorama idêntico observa-se nos bairros residenciais que dez ou quinze anos atrás eram considerados elegantes. E mesmo os condomínios fechados são progressivamente abandonados por outros mais longínquos, cada vez mais longínquos. O território conquistado num esforço secular de construção e civilização é transferido da classe alta para a média, desta para os trabalhadores, destes para a multidão dos biscateiros, prostitutas e prostitutos, mendigos, assaltantes, batedores de carteiras e passadores de drogas. A feiúra, a violência e o caos se expandem em círculos concêntricos, à medida que a elite foge. Foge deixando atrás de si um rastro de miséria, abandono, decomposição.

Mais que um símbolo, o abandono do espaço geográfico é um sintoma objetivo da demissão das classes superiores. Aqueles que, diante do perigo e da dificuldade, abandonam suas próprias casas, com muito mais presteza abandonarão seus deveres e suas responsabilidades, cada qual cuidando apenas da própria sobrevivência, num geral e obsceno “salve-se quem puder”.

Esse processo é psicologicamente compreensível, mas moralmente injustificável. Como admitir que aqueles a quem o curso da História reservou as melhores porções do território não sejam sequer capazes de unir-se para defendê-lo? Não sabem que, ao fugir da luta, não beneficiam de maneira alguma o povo, mas simplesmente o deixam à mercê dos piores e dos mais violentos? Não são nem capazes de perceber que, se os ricos se deixam dominar pelo medo e fogem, muito mais terrível será o medo que se apossará das almas dos pobres quando, junto com os símbolos visíveis da ordem, a própria ordem tiver desaparecido? Não sabem que o território abandonado não fica para o povo, mas para uma nova classe dominante, arrebanhada às pressas entre arrivistas descarados e brutais? E não sabem que o abandono do território físico é apenas o prelúdio de um geral abandono do país?

PS.: No Rio Grande, o cientista político José Giusti Tavares, autor do belo livro “Totalitarismo tardio — o caso do PT”, está sendo processado por ter dito que “o PT não é um partido constitucional, é um partido revolucionário que realmente aposta na luta armada e não aposta em governar” — uma verdade óbvia que eu mesmo venho reiterando há uma década, em artigos e até em livros, sem que ninguém tenha tido jamais a imensa cara de pau de me processar por isso. É óbvio que o PT não aposta somente na luta armada (nem o prof. Giusti jamais pensou uma coisa dessas), mas, como é da tradição leninista, aposta sempre nos dois cavalos do páreo revolucionário: de um lado, apoio discreto às Farc e ao treinamento guerrilheiro do MST; de outro, um discurso democrático e legalista para fins analgésicos.

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