Olavo de Carvalho


O Globo, 9 de dezembro de 2000

O petismo do governo gaúcho tem sido apontado como uma imagem do Brasil futuro. Mas que Brasil será esse? Quem está fora do Rio Grande não tem a menor idéia do que se passa por lá. Como saber se a previsão é promessa ou ameaça?

Algumas informações recentes talvez ajudem. O diretor do jornal “Zero Hora”, Nelson Sirotsky, falando para uma platéia de duzentas pessoas na Associação da Classe Média de Porto Alegre, confirmou que o governo Olívio Dutra vem usando das verbas de publicidade oficial para limitar o exercício da liberdade de expressão no seu Estado. Ele citou o exemplo dos pequenos jornais que, por debilidade financeira, se rendem ao PT para não perder anúncios. Poderia também ter mencionado os jornalistas Políbio Braga, Hélio Gama, Gilberto Simões Pires e outros, que informam ter sido removidos de suas tribunas por pressão do governo. Simões Pires, um dos comentaristas mais populares da TV local, além de perder o emprego está sendo processado porque, exibindo uma foto na qual o governador e sua secretária da Educação, entre bandeiras vermelhas, posavam ao lado de escolares que faziam a tradicional saudação do punho cerrado, disse que se tratava de uso de crianças para propaganda de uma ideologia violenta — conclusão irrefutável, mas, ao que parece, proibida.

Quem conheça o estilo da retórica esquerdista, um caldeirão fervente onde termos como “canalha”, “ladrão” e “vendido” borbulham em profusão, pode se espantar de que pessoas tão grosseiras no falar tenham ouvidos tão sensíveis e berrem de dor ante a simples conclusão de um silogismo. Mas comunistas são mesmo assim: eles podem imputar a você os piores crimes, mas se você os chama simplesmente de atrasados, de ignorantes — ou de comunistas, o que dá na mesma –, eles entram em estado de choque. Recentemente um professor da USP, célebre pelas acusações cabeludas que faz ao presidente da República, ouvindo dizer que este chamara a esquerda de “burra” saiu exclamando que se tratava de… temível investida contra a liberdade de expressão. É o que os americanos chamam “overreact” — a marca inconfundível do fingimento histeriforme, sinal de iminente ruptura esquizofrênica da consciência.

Para dar uma idéia de até que ponto esse mal afeta a nossa esquerda, basta mais um episódio, que não tem nada a ver com o caso do Rio Grande, mas que ajuda a compreendê-lo. Na semana passada escrevi aqui que a liberação dos vícios era um item essencial da ideologia esquerdista (como na verdade já o era no tempo do “Flower Power” que, desde os campos de Woodstock, tanto ajudou os comunistas a dominar o Vietnã e a transformá-lo no gueto de terror e miséria que ele é hoje). Pois bem: um professor da UFRJ, em resposta, me enviou um e-mail enfurecido, ameaçando me processar porque eu “dissera que todos os jovens socialistas usam maconha e cocaína” e porque ele e seu filho, ambos socialistas, agora acreditavam enxergar, nos olhares de seus colegas, insinuações pérfidas que os acusavam de maconheiros e cocainômanos. O raciocínio do cidadão consistia em partir de uma premissa mentirosa e deduzir dela, por saltos lógicos assombrosos, uma autorização para fantasiar intenções nas pessoas em torno, um motivo para se sentir vítima e um pretexto para voltar todo o seu ressentimento insano contra um agressor imaginário que, para cúmulo, não conhecia nem a ele nem àquelas pessoas. Joseph Gabel, no clássico “La Fausse Conscience”, usou exemplos como esse para demonstrar que o raciocínio das ideologias totalitárias é idêntico ao de um delírio esquizofrênico. Esse modelo de raciocínio está subentendido tanto no temor que os próceres gaúchos têm dos jornalistas que os observam, quanto, em dose ainda mais expressiva, na mensagem do desvairado professor uférjico. Em ambos os casos, trata-se de instrutores de loucura: o Estado paga-lhes para que transmitam a eleitores e alunos o seu padrão patológico de percepção, para que os incapacitem para a vida adulta, fazendo deles eternos meninos ressentidos que terão de se apegar sempre à muleta de algum discurso de inculpação projetiva.

Mas, voltando aos gaúchos, não é só na imprensa que a liberdade deles sofre restrições que, se impostas por um governante direitista, suscitariam uma onda nacional de protestos. Um começo de passeata, promovido por uma organização de mulheres anti-PT, foi cercado por olheiros que, mais que depressa, acionaram as autoridades para que proibissem qualquer nova manifestação do grupo, o qual não teve remédio senão voltar às ruas com mordaças pretas para informar à população, sem dizer nada, que algo de indizivelmente esquisito estava acontecendo.

Na mesma linha de esquisitice mal conscientizada, um diretor da estatal gaúcha Emater, em discreta circular à “companheirada” (sic), admite que ali o critério de seleção é puramente ideológico, “como se alinhamento ou ficha no partido fosse garantia de competência”. E ele reclama disso não porque a coisa lhe pareça intrinsecamente imoral, mas porque não deu os resultados esperados: “Não conseguimos a hegemonia”, lamenta-se. E sugere, como remédio, “ler um pouco mais de Gramsci”.

Para um governo que nem tem apoio da maioria na assembléia, o do Rio Grande tem mostrado uma precipitação incomum em revelar antes da hora a índole ditatorial da ideologia socialista, violando os ensinamentos do mestre da camuflagem, Antonio Gramsci, o Senhor da Moita. Igual afoiteza, porém, inflamou as meninges do candidato virtual Luiz Inácio Lula da Silva durante sua viagem à Belfort Roxo do Caribe, levando-o a rejeitar em público a cor rosa que a moda analgésica atribui ao seu partido e a assumir, num rompante, que o negócio dele é mesmo o bom e velho comunismo.  Tudo enfim leva a crer que, prematuramente solta, sem medo de ser feliz, a franga vermelha abre as asas sobre nós.

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