Yearly archive for 2006

Geração maldita

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de setembro de 2006

Os crimes do partido governante e do seu inocentíssimo chefe ultrapassam tudo o que a imaginação maligna de seus mais odiosos opositores teria podido inventar. As revelações dos últimos dias impõem a conclusão incontornável de que a administração federal, subjugada aos interesses de uma organização partidária auto-idolátrica, se transformou em instrumento para uma variedade alucinante de esquemas delinqüenciais, postos em ação numa escala jamais vista em qualquer parte do mundo ou época da história.

Quando o PT, no início da década de 90, adotou a prática do moralismo acusador que até então tinha sido mais típica da direita (v. Carlos Lacerda, Jânio Quadros e a própria Revolução de 1964), percebi e anunciei claramente que se tratava de um ardil baseado no mais puro cinismo leninista: “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” O estilo mesmo das invectivas petistas era tão inflado, tão hiperbólico, tão teatral, que se autodenunciava no ato como camuflagem de alguma perversidade superlativa em curso de preparação. Qualquer ridícula tramóia de políticos de interior para ciscar uns tostões do governo federal, qualquer miúda negociata entre barnabés endividados e financistas ladrões, era denunciada imediatamente como uma “manobra golpista”, um “Estado dentro do Estado”, uma ferida mortal no coração da ordem pública, um perigo apocalíptico para o futuro da nação. Ninguém que desejasse apenas tirar proveito publicitário da desmoralização de seus inimigos exageraria a tal ponto a ênfase da acusação. Tinha de haver algo mais por trás desse esbanjamento retórico.

Investigações que fiz na ocasião levaram-me a concluir que o serviço secreto petista, então denunciado pelo governador Esperidião Amin sob o nome humorístico de “PT-POL”, era uma realidade. Milhares de militantes e olheiros espalhados em partidos, empresas privadas, bancos, organismos da administração federal, alimentavam de informações colhidas ilegalmente a central chefiada pelo sr. José Dirceu, que então as usava para brilhar nas CPIs com revelações espetaculares vindas de fontes anônimas e irreveláveis. Não se tratava, é claro, apenas de brincar de Eliott Ness. O serviço secreto petista já era, por si, uma máquina criminosa de dimensões incomparavelmente maiores do que aquelas que o sr. José Dirceu, em patéticos êxtases de hiperbolismo verbal, atribuía aos réus do momento. Era o Estado dentro do Estado, no sentido literal da expressão, que, camuflando seus crimes sob os alheios, se usava a si próprio como figura de linguagem para ampliar os medíocres delitos dos adversários e lhes dar uma significação política que não tinham. Nada mais interessante do que comparar estilisticamente os discursos da época com as notícias de hoje: os tribunos da moralidade petista nada imputaram a seus microscópicos adversários que eles próprios já não estivessem fazendo ou preparando em dimensão macroscópica. Pequenos delinqüentes eles próprios, tornaram-se gigantes do crime ao erguer-se sobre os ombros dos Anões do Orçamento.

Mais ou menos na mesma época, um dirigente do PT, César Benjamin, era expulso da agremiação por denunciar a criação, pela cúpula do partido, de um esquema de corrupção então ainda em estado germinal. Paralelamente, o PT articulava-se com organizações revolucionárias e gangues de criminosos de vários países do continente, montando o “Foro de São Paulo” como central estratégica devotada ao projeto de “reconquistar na América Latina tudo o que foi perdido no Leste Europeu”, isto é, de reconstruir no continente o regime mais corrupto que já existira no mundo (v. Nota, no fim do artigo).

Completava o esquema uma rede de apoios jornalísticos solidamente cimentados em lealdades partidárias secretas e na farta distribuição de dinheiro e empregos. A CUT, braço sindical do PT, confessava ter oitocentos jornalistas na sua folha de pagamentos, o bastante para tirar duas edições diárias da Folha, do Estadão e do Globo, embora não publicasse um tablóide semanal sequer.

Como todas essas iniciativas envolviam sempre os mesmos indivíduos – o comando e estado-maior do PT –, era óbvio que elas não constituíam ações separadas e inconexas, mas aspectos da construção integrada de um sistema de poder destinado a engolir o Estado brasileiro e  usá-lo para a consecução dos objetivos do Foro de São Paulo.

A existência desse sistema já era visível em 1993, quando José Dirceu e Aloysio Mercadante posavam na CPI das empreiteiras como restauradores da moralidade pública. Quem quer que depois disso ainda tenha confiado na honorabilidade do PT e na sua disposição de disputar eleições lealmente e governar o país em rodízio democrático com os outros partidos, é um irresponsável, um burro, um palpiteiro fanfarrão que, diante das atuais revelações, deve ser excluído do círculo de formadores sérios da opinião nacional e recolher-se à vida privada, senão à privada da vida. Incluo nisto políticos, professores universitários, consultores empresariais pagos a preço de ouro, donos de jornais, chefes de redação e uma coleção inteira de “intelectuais e artistas” de todos os tipos e formatos. Toda essa gente, quando não foi cúmplice consciente do que se tramava contra o Brasil, mostrou ao menos uma futilidade palavrosa que, em matéria de tal gravidade, é um crime tão grande quanto os do PT.

Tudo o que está acontecendo no Brasil de hoje poderia ter sido evitado. Poderia e deveria. Não foi – e, mais do que os próprios delitos petistas, isso ficará como mancha indelével na história da alma nacional. Haja o que houver no futuro, o Brasil terá sido durante quase duas décadas um país de tagarelas levianos, covardes, intelectualmente ineptos, dispostos a sacrificar o futuro do povo no altar de um otimismo vaidoso e da recusa obstinada de enxergar a realidade. O Brasil não foi vítima só de “um grupo”, “uma camarilha”, “uma elite”. Foi vítima de toda uma geração, a mais presunçosa e fútil de todas quantas já nasceram aqui. Essa geração é a minha. Agora entendo retroativamente por que, ao longo de toda minha vida adulta, quase só tive amigos trinta anos mais jovens ou trinta anos mais velhos. Uma desconfiança irracional, instintiva, me afastava dos colegas da minha idade, com exceção de quatro ou cinco puros de coração, visceralmente incapazes de baixeza, alguns dos quais, por significativa coincidência, hoje trabalhando neste Diário do Comércio. Ficar longe dos meus coetâneos foi deprimente e, para a minha carreira nas redações, letal. Mas me livrou de ser cúmplice do maior delito intelectual da nossa história.

Agora, quando a verdadeira índole do petismo já não pode mais ser ocultada ou disfarçada, a presente geração de formadores da opinião pública (refiro-me aos que não foram comprados ou seduzidos pelo PT) corre o risco de repetir esse crime, se presumir que a mera concorrência eleitoral ou mesmo a punição judicial de algumas dúzias dos culpados mais óbvios livrará o país do flagelo e lhe abrirá as portas de um futuro mais digno.

O esquema de corrupção que se apossou do governo federal não é fenômeno isolado. Não é iniciativa de um grupelho autônomo, separado das raízes partidárias. Não é um caso de pura delinqüência avulsa. É parte integrante da máquina revolucionária cuja montagem, se entrou em ritmo acelerado no início dos anos 90, remonta a pelo menos duas décadas antes disso, quando ao fracasso das guerrilhas se seguiu um esforço generalizado de rearticulação da esquerda continental nas linhas circunspectas e pacientes preconizadas por Antonio Gramsci em substituição aos delírios belicosos de Régis Débray, Che Guevara e Carlos Marighela. Quem quer que não conheça essa história com detalhes está por fora do que se passa na América Latina e não tem nenhum direito de solicitar a atenção pública para as opiniõezinhas com que deseje se exibir em colunas de jornal ou encontros empresariais. Está na hora de calar a boca dos palpiteiros irresponsáveis e começar a estudar o assunto que eles ignoram. Incluo entre esses tagarelas o ex-presidente José Sarney e seu ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, que, em plena época de gestação da nova estratégia revolucionária continental, retiraram do currículo das academias militares a disciplina de “Guerra Revolucionária” sob o pretexto de que “os tempos mudaram”, deixando duas gerações de oficiais brasileiros desguarnecidos contra as manobras estratégicas que hoje os usam como instrumentos. Incluo na mesma classificação todos os que, numa fase muito mais avançada do processo de tomada da América Latina pelas forças da esquerda revolucionária, diziam que alertar contra as maquinações do Foro de São Paulo era “açoitar calavos mortos”. Incluo os chefetes de redação que tentaram tapar a minha boca para que eu não perturbasse o lazer de seus leitores com advertências de que viria a acontecer precisamente o que veio a acontecer. Incluo os “liberais” que, vendo montar-se à sua volta a maior organização revolucionária e criminosa já registrada na história da América Latina, insistiam em ater-se a miúdas críticas de ordem econômica e administrativa, como se toda sua diferença com o PT consistisse de polidas divergências doutrinais e estratégicas entre homens igualmente sérios, igualmente honestos, igualmente devotados ao bem do Brasil. O número dos cretinos auto-satisfeitos, que não precisam estudar nada para julgar tudo e ter opiniões definitivas, é grande o suficiente para que o peso do seus rechonchudos traseiros esmague a nação inteira. Toda essa gente é culpada por ter dado ao povo a ilusão de que o PT era um partido normal, respeitador das leis, ordeiro e pacífico. Ele não é nada disso e nunca foi nada disso. Ele já era o partido das Farc, ele já era o partido dos seqüestradores do MIR chileno, muito antes de ser o partido do Mensalão. Muito antes de que brotasse dinheiro em cuécas, a CUT já carregava nas calcinhas seus oitocentos jornalistas, sem que alguém ligasse a mínima quando denunciei isso como a maior compra de consciências na história da mídia universal desde a década de 30. Parafraseando Nelson Rodrigues: a desmoralização nacional não se improvisa, é obra de décadas.

Se, agora, alguém pensa que vai se livrar dessa encrenca com uma eleição e dois ou três processos, está muito enganado. Ninguém empenha décadas da sua vida na construção de um gigantesco esquema de poder, para depois deixá-lo derreter-se e escorrer por entre seus dedos ao primeiro sinal de mudança das preferências da opinião pública.

O que é, substantivamente, o esquema de poder petista? Ele não é apenas uma conspiração de gabinete. Ele se assenta na força da militância organizada que, a qualquer momento, pode colocar nas ruas alguns milhões de manifestantes furiosos, com o apoio de quadrilhas de delinqüentes armados, para impor o que bem entenda a uma nação inerme e aterrorizada. Durante quatro décadas a esquerda desfrutou do monopólio absoluto da formação e adestramento de militantes para a ação permanente em todos os campos da vida social, enquanto seus opositores, confiantes no poder mágico do automatismo institucional, se contentavam com mobilizar auxiliares contratados às pressas para exibir uns cartazes de candidatos nas épocas de eleição. Hoje, a desproporção de força física entre a esquerda e seus opositores é tão grande, que esses últimos têm até medo de pensar no assunto. Novamente, eles se arriscam a confiar no abstratismo das instituições e em vagas “tendências da opinião pública”, contra a massa organizada, adestrada e armada. E novamente eu me arrisco a ser chamado de maluco por advertir contra o perigo óbvio. Qualquer que seja o resultado das eleições, qualquer que seja o desenlace das presentes investigações de corrupção, a gangue petista não vai largar gentilmente a rapadura.

Nota

Quem quer que estude um pouco a corrupção no regime soviético notará, de um lado, a desproporção entre seu tamanho e o de seus equivalentes nominais no mundo capitalista; de outro, a sua perfeita continuidade organizacional e hierárquica com a presente “máfia russa”, senhora absoluta do crime organizado no mundo e participante ativa dos atuais esquemas revolucionários no Terceiro Mundo. Não creio que seja possível entender nada do que se passa no mundo sem dar alguma atenção a esse assunto. Os livros básicos a respeito são:

Konstantin Simis, USSR: The Corrupt Society. The Secret World of Soviet Capitalism, New York, Simon & Schuster, 1982.

Alena V. Ledeneva, Russia’s Economy of Favours. “Blat”, Networking and Informal Exchange, Cambridge Unversity Press, 1998.

Joseph D. Douglass, Red Cocaine. The Drugging of America and the West, London, Edward Harle, 1995.

Claire Sterling, Thieves’ World. The Threat of the New Global Network of Organized Crime, New York, Simon & Schuster, 1994.

USP é templo de vigarice

Folha de S. Paulo, 24 de setembro de 2006

LIVROS

Polemista relança “O Imbecil Coletivo”, ataca intelectuais paulistas e culpa EUA pela “proliferação de tipinhos como Lula’

Para autor, quem ainda tem fibra para ser conservador está fora da política, seja por falta de vocação, seja por uma questão de higiene

“USP é templo de vigarice”, diz Olavo

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

EDITOR DA ILUSTRADA

Reunião de textos do jornalista, filósofo e polemista Olavo de Carvalho, “O Imbecil Coletivo” está sendo relançado. É o primeiro de um conjunto de três volumes que o autor pretende editar. O livro, que completa dez anos, ataca o pensamento de esquerda que seria hegemônico no meio cultural do país e, sem torneios, sustenta argumentos conservadores ou de direita. Desde 2005, Olavo mora nos EUA, em Richmond, perto de Washington. Nesta entrevista, feita por e-mail, ele dispara contra intelectuais da USP, considera que os tucanos são responsáveis pela ascensão do petismo e diz que também existe um imbecil coletivo direitista.

FOLHA – Como o sr. avalia o discurso de alguns intelectuais históricos do PT, como a filósofa Marilena Chaui, que procura relativizar a questão ética na política? O mesmo tema, de certa forma, havia sido proposto pelo filósofo tucano José Arthur Giannotti.
OLAVO DE CARVALHO –
 Quando essa gangue uspiana começou a “campanha pela ética na política”, uma década e meia atrás, já anunciei que era tudo uma empulhação destinada a entregar o poder total à esquerda, usando e prostituindo a indignação moral do povo com os miúdos corruptos da época para encobrir a montagem da maior máquina de corrupção de todos os tempos.
Os tucanos estão hoje com choradeira, mas eles são amplamente culpados pela ascensão do petismo, do qual foram cúmplices na “estratégia das tesouras” calculada para suprimir da política todas as demais correntes e dividir o bolo entre os dois partidos nascidos da USP. O que quer que venha da boca de Chauis e Giannottis é sempre camuflagem, pose, hipocrisia. Essa gente já deveria estar embalsamada faz muito tempo em alguma espécie de IML intelectual. Cansei de ouvir besteira. “Intelectual de esquerda”, seja tucano, petista ou qualquer outra porcaria, tem para mim a confiabilidade de uma nota de R$ 32.
A USP sempre foi o templo da vigarice intelectual, e o sujeito que começa com safadeza no campo das idéias acaba sempre inventando algum mensalão para se remunerar do esforço de embrulhar a platéia. Os tucanos ainda podem se redimir do mal que fizeram. A carta de 7 de setembro do ex-presidente Fernando Henrique é um bom começo, mas é preciso um arrependimento mais fundo e uma tomada de posição mais clara.
Não adianta querer um “choque de capitalismo” quando ao mesmo tempo se cortejam “movimentos sociais” cujos programas “politicamente corretos” exigem sempre maior controle estatal da sociedade. Um capitalismo assim acaba virando capitalismo chinês.

FOLHA – O governo Lula é de direita ou de esquerda? Quais são no seu entender os traços que distinguem, hoje, esquerda e direita?
CARVALHO –
 Esquerda é toda corrente que legitima suas pretensões ambiciosas em nome de um futuro hipotético. Direita é quem legitima promessas modestas com base na experiência passada. No Brasil, só quem tem alguma experiência bem-sucedida para ensinar são os remanescentes do governo Médici que fizeram o país crescer 15% ao ano. Estão todos nonagenários ou irrevogavelmente falecidos. Como ninguém absorveu sua lição, não há mais direita no Brasil. Há apenas diferentes graus de esquerdismo, desde o histerismo fanfarrão do PSOL até as afetações oportunistas de políticos ideologicamente inócuos que acham bonito posar de politicamente corretos, como esse ridículo governador de São Paulo. Direita, conservadorismo genuíno, é a síntese inseparável dos seguintes elementos: liberdade de mercado, valores judaico-cristãos, cultura clássica, democracia parlamentar e império das leis. O resto é comunismo, fascismo, nazismo, anarquismo, tecnocracia, “socialismo light”, o museu inteiro do besteirol político.
No Brasil, quem ainda tem fibra para ser conservador está fora da política, seja por falta de vocação, seja por uma questão de higiene. O Brasil ainda tem alguns bons líderes empresariais e estudiosos de campos diversos, e acho um sacrifício admirável, mas inútil, que homens bons larguem suas ocupações produtivas para arriscar a sorte numa política eleitoral que virou uma disputa interna no galinheiro esquerdista -cada galinha, é claro, chamando as outras daquilo que no seu entender é a pior das ofensas: “Direitistas!”

FOLHA – O pensamento de direita ganha fôlego no mundo contemporâneo. Nesse contexto, podemos falar na emergência de um imbecil coletivo de direita?
CARVALHO –
 Sem a menor sombra de dúvida. O triunfalismo capitalista subseqüente à queda da URSS produziu bibliotecas inteiras de utopismo tecnocrático-financeiro globalista que o 11 de Setembro reduziu a pó, mas do qual muitos cérebros de fantasmas ainda se alimentam nos EUA. A marca inconfundível do imbecil coletivo direitista é a negação de que existam direita e esquerda. O típico doutrinário dessa corrente se coloca numa torre de marfim supra-ideológica, de onde acredita que pode resolver tudo na base da grana. A impotência sempre gera o delírio de onipotência. Praticamente toda a política externa americana da última década e meia se baseou nessa estupidez, e o resultado dela é a proliferação de tipinhos como Lula, Chávez, Morales e “tutti quanti”.

FOLHA – Como o sr. avalia a declaração do papa sobre o Islã e as reações contrárias? O sr. crê em algo como “choque de civilizações?”
CARVALHO –
 Dizem que há um conflito entre o Islã e o Ocidente. Mas qual Ocidente? O Ocidente religioso, judaico-cristão, ou o Ocidente revolucionário, ateu, materialista? Este último está obviamente do lado dos terroristas, e é ele mesmo quem alardeia o slogan do “conflito de civilizações” para camuflar a guerra de vida e morte que, por meios diversos e aparentemente inconexos, se move contra os judeus e os cristãos no Islã, nos países comunistas e no próprio Ocidente capitalista.
O número de cristãos inocentes e desarmados que vêm sendo assassinados no Sudão, no Vietnã, na Coréia do Norte e na China é cem vezes maior do que a quantidade de vítimas civis da Guerra do Iraque, e a mídia chique inteira, incluindo este jornal, não diz uma palavra contra isso. Nem noticia. Ao mesmo tempo, leis draconianas para suprimir a liberdade de expressão religiosa são adotadas na Europa e nos EUA, mas jamais aplicadas aos muçulmanos locais. É esse o “Ocidente” que se pretende defender contra o Islã? Tudo isso é de uma falsidade monstruosa. Não há uma guerra de civilizações, mas duas guerras superpostas, uma do Islã contra o globalismo ocidental, outra de ambos (e da esquerda internacional) contra a civilização judaico-cristã.

FOLHA – E quanto ao papa?
CARVALHO –
 O discurso em Regensburg não foi sobre o Islã. Este foi mencionado como gancho para a questão central, que era a necessidade de uma teologia racional, já mil vezes reiterada pela Igreja. As afirmações do imperador Manuel 2º, o Paleólogo, citadas no discurso foram três: 1) O Islã adotou a violência como método legítimo de conversão. 2) Essa foi a única novidade religiosa trazida pelo Islã. 3) Converter por meio da violência é errado: a conversão deve-se alcançar por meio da persuasão racional.
A terceira afirmativa é analisada extensamente no restante do discurso. As duas primeiras foram citadas de passagem só para mostrar o contexto histórico da discussão e em seguida deixadas de lado. Ao concentrar seus ataques numa delas, os críticos muçulmanos e os não-muçulmanos anticristãos mostraram incapacidade ou falta de disposição de distinguir entre a menção casual à fala de um terceiro e a opinião formalmente expressa do orador. São burros, desonestos ou ambas as coisas.
Mas o papa também não foi muito hábil nas explicações que deu para acalmar os nervosinhos. Ao dizer que a citação de Manuel 2º não expressa sua opinião pessoal, ele deixou uma perigosa ambigüidade no ar, pois as três asserções formais contidas nessa citação são totalmente independentes entre si, e não é possível que Bento 16 concorde ou discorde das três uniformemente.
A primeira é simples expressão de um fato universalmente reconhecido, e o papa, mesmo que não estivesse interessado em tomá-la como tema do seu discurso, como de fato não tomou, não poderia discordar dela de maneira alguma.
A segunda, na mesma medida, é totalmente falsa. O Islã trouxe uma infinidade de inovações, entre as quais a mais espetacular de todas é ser o primeiro e único direito penal religioso destinado a aplicar-se à humanidade inteira e não só a uma nação em particular. Isso constitui a diferença específica do Islã, e sem isso a sua pretensão de ser uma revelação nova e autônoma perderia o seu argumento mais forte.
A terceira é o simples resumo de uma doutrina tradicional da Igreja, e o papa não poderia discordar dela. Em suma, Bento 16 só pode e aliás deve estar em discordância com Manuel 2º quanto à segunda afirmação, um erro histórico perdoável na Idade Média, mas que hoje em dia seria intolerável mesmo num estudante. O único ponto do discurso papal que poderia ferir a honra dos muçulmanos é um erro que o orador não endossou nem poderia ter endossado, sendo o erudito que é.

 

Mudando de bichos

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 21 de setembro de 2006

Diante do fracasso total da espécie humana, ao menos tal como exemplificada pelos seus representantes no governo federal, dedicarei a crônica desta semana a bichos mais promissores.

Após o falecimento do meu querido cão Robin, atropelado por um trem em pleno ato de traçar uma Labrador pretinha no leito da via férrea, comprei um filhote da raça English Mastiff (mastim inglês), persuadido a isso por um dito popular do século XVIII: “Tal como o leão está para os gatos, assim está o Mastiff para os cães.” Esse negócio de leão é puro eufemismo. O bicho é um tipo de elefante canino, sem limite previsível de crescimento ou consumo alimentício. Em vista deste último detalhe, denominei-o Big Mac, também de modo a que ele possa se apresentar como James Bond: “Meu nome é Mac. Big Mac.”

O nome tem ainda a vantagem de poder ser pronunciado pelos americanos, livrando a criatura de humilhações como as que passo por aqui quando as pessoas, entre esgares de ginástica fonética, me chamam de Olêivo de Ca rvalo, Ólavo de Cárvalo e até Olâno de Varcálto. Durante algum tempo suportei tudo com resignação estóica. Quando ouvi meu filho, numa festa escolar, ser anunciado no alto-falante como Pedro de Varcáulou-Hôu, decidi que a coisa tinha de parar: o próximo membro da família teria nome gringo e passaria despercebido como qualquer cidadão normal.

O primeiro beneficiado por essa sábia decisão veio pela American Airlines, despachado por um canil do Missouri, que o oferecia a um terço do preço por ser o último da ninhada e estar grandinho demais para continuar sendo um cachorro sem dono. De dentro da gaiola, no aeroporto de Richmond, a encomenda, amarela com listras pretas como um tigre, já abanava a cauda e lambia as nossas mãos com aquela ternura histérica própria dos membros da sua espécie.

Nesse encontro inicial reparei numa característica que a observação posterior não fez senão confirmar: talvez por inexperiência da vida, Big Mac não distingue entre as afeições castas e o arrebatamento erótico, ficando de pinto duro ao menor sinal de que alguém gosta dele.

Não obstante esse vício juvenil que os leitores terão a gentileza de perdoar, o referido tem uma conduta de exemplar moralidade, obedecendo aos comandos com presteza e até adivinhando-os como se estivessem no seu código genético. Devem estar mesmo, porque os Mastiffs são a raça canina mais antiga do mundo, tendo servido no exército dos césares e cobrindo-se de honras militares, sem dar refresco ao inimigo como o fazem o general Colin Powell e a Escola Superior de Guerra. Malgrado sua ancestralidade guerreira, Big Mac é um coração de ouro, recusando-se a machucar os sapinhos que infestam os gramados da Virginia e limitando-se a cheirar-lhes delicadamente o traseiro, como se cachorros fossem. Com toda a evidência, ele não tem a menor idéia do seu tamanho, mas eu tenho. Aos cinco meses, ainda apenas um puppy , o equivalente animal de baby (sofri muito para decorar a diferença), ele já tem as dimensões de um pastor alemão adulto. Não sei aonde isso vai parar, mas quando parar, se parar, podem deixar que eu aviso.

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