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A ousadia da ignorância

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 30 de março de 2006

A convocação iluminista à “autonomia de pensamento”, condensada na palavra-de-ordem kantiana Aude sapere! (“Ouse saber!”), é compreendida vulgarmente como um apelo a que cada um se livre de autoridades externas e siga apenas a sua própria razão.

A liberdade iluminista opõe-se então à coerção tradicional como a discriminação prudente se opõe à credulidade irrefletida, a inteligência ao temor irracional, o conhecimento à ignorância, a luz às trevas.

Mas isso é só uma imagem popular, um slogan publicitário. Serve para excitar a massa adolescente, camuflando o verdadeiro sentido do programa iluminista.

A divisa Aude sapere! associa-se intimamente a outro topos da filosofia de Kant, a “revolução copernicana” da estrutura do saber. Kant entendia por esse termo a inversão radical da hierarquia do conhecimento, operada com o objetivo de fazer com que a razão, em vez de se amoldar à realidade dos fatos, assuma o comando da situação e imponha aos fatos a sua própria ordem. Esta é conhecida mediante a análise das condições necessárias a “todo conhecimento possível”: a estrutura da percepção e a estrutura da razão. A razão tem, por definição, validade universal, mas, por si, ela só conhece formas gerais abstratas. Tudo o que conhecemos da realidade concreta vem filtrado pela nossa estrutura de percepção, de modo que nada sabemos das coisas em si, mas apenas daqueles seus aspectos – os “fenômenos” ou aparências — que passam por esse filtro. Mas, como o desenho do material sensível é determinado pelo nosso aparato de percepção, é forçoso concluir que, fora do que esse aparato pode captar, o mundo é apenas uma massa caótica de sinais. Essa massa adquire forma, ordem e sentido quando passa pelo filtro da nossa percepção e em seguida é validada pelos princípios universais da razão. Mas, se tudo o que nos é acessível vem do nosso aparato de percepção, e se as percepções por sua vez têm de ser enquadradas nas categorias do pensamento racional, o resultado é que nossa razão é soberana em face de todo objeto de conhecimento possível: ela não tem de prestar satisfações a nenhuma “realidade” externa, mas, ao contrário, ela determina as condições que essa realidade tem de cumprir para ser admitida no mundo do conhecimento.

A famosa “autonomia do pensamento”, então, não consiste essencialmente em estar livre de autoridades clericais ou governamentais, mas em desprezar a coerção externa dos fatos. Tal é o sentido da “revolução copernicana” no pensamento. Na ciência antiga, medieval e renascentista, a ordem total do mundo em que vivemos era o juiz soberano do conhecimento. A razão humana não passava de uma manifestação parcial e limitada dessa ordem total que, em nós, se reconhecia a si mesma na medida das nossas possibilidades, restando sempre um horizonte de mistério que recuava a cada novo avanço do conhecimento. Com Kant, a razão humana proclamava sua independência do mundo externo, mudando radicalmente o sentido da “verdade”. Antes, a verdade consistia na coincidência do pensado com a ordem dos fatos conhecidos. Agora, passava a ser a obediência a uma filtragem racional predeterminada, a um método livremente concebido pela razão por meio da análise kantiana de si mesma. O que quer que estivesse fora do método, por mais patente que fosse sua presença, era desprezado como irrelevante, nulo e por fim inexistente. E assim é até hoje nos círculos bem-pensantes, onde uma autoridade censória mais burra e intolerante do que todas as anteriores recorta o mundo no formato da sua ignorância, abolindo continentes inteiros da realidade. A sentença “Se os fatos não confirmam a minha teoria, pior para os fatos” é de Hegel, mas ela expressa antes a quintessência do iluminismo kantiano. O sentido interior, esotérico, do “Ouse saber”, é no fim das contas “Ouse ignorar”: entre os fatos e o método, prefira o método. Obscurantismo é o nome secreto do iluminismo.

Honra ao mérito

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 27 de março de 2006

Leio no site do meu caro Políbio Braga (http://www.polibiobraga.com.br), um dos melhores comentaristas políticos do Rio Grande, o seguinte:

Se você tem conta na Caixa Econômica Federal, muita atenção: a Caixa viola o sigilo bancário dos seus clientes. Saia da Caixa Federal enquanto é tempo e fuja de repartições públicas ocupadas por trotsquistas ou ex- trotsquistas enquistados no PT, porque eles são capazes de tudo e não têm compromisso algum com a chamada ‘ordem burguesa’. Ficou comprovado que a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa partiu da própria Caixa Econômica Federal. O formulário de extração de dados da movimentação bancária de Francenildo é exclusivo do sistema interno da estatal, ao qual nem clientes têm acesso. As duas pessoas, em última instância, responsáveis pelo sigilo dos dados dos clientes são gaúchas. São o próprio presidente, Jorge Mattoso, conhecido trotsquista de Porto Alegre, amigo de Luís Favre, o marido de Marta Suplicy, também ele um trotskista histórico, além de Clarisse Copetti, a guardiã da área de segurança da informação da Caixa, que antes de ir para Brasília ocupou uma das Diretorias da Procempa, à época presidida pelo trotsquista Jorge Mazzoni. São todos enfezados militantes do PT. Clarice Copetti é mulher de César Alvarez, do PT gaúcho, homem que despacha ao lado do gabinete do Presidente Lula, no Palácio do Planalto .”

Não sejamos injustos com a Caixa Econômica Federal. Ela não é uma ilha de espionagem comunista num mar de confiabilidade e decência. Todas as estatais, todos os órgãos da administração federal, estadual e municipal, todos os sindicatos, todos os bancos, todas as grandes empresas privadas, todas as escolas privadas e públicas de qualquer grau, todas as instituições de cultura, todos os jornais, revistas e canais de TV, todos os partidos políticos sem exceção têm hoje um, dois, vinte, trinta agentes infiltrados a serviço da máquina esquerdista de informação e contra-informação.

Essa “ocupação de espaços” começou quarenta anos atrás e prosseguiu discretamente, imperturbavelmente, sem encontrar a menor resistência, ao longo de duas gerações de brasileiros. Ela nasceu da mutação estratégica sucedida nos partidos de esquerda a partir da publicação das obras de Antonio Gramsci pela Editora Civilização Brasileira, na década de 60. Vou resumir brevemente essa mutação e em seguida analisar criticamente o seu estado atual. Quem depois disso não entenda o que está acontecendo e ainda se iluda quanto à possibilidade de reverter o estado de coisas pela via eleitoral normal, sem uma contra-estratégia de conjunto e um combate anticomunista explícito, será um caso de ingenuidade política irreversível e fatal.

1. No entender de Gramsci, o “poder” não se constitui apenas do aparelho estatal, mas de uma complexa trama de organizações espalhadas pela sociedade civil, por meio das quais a “ideologia” dominante se perpetua através das gerações, criando uma barreira de proteção invisível contra a ação revolucionária.

2. Portanto, o principal objetivo do Partido revolucionário não deve ser a tomada do poder político, mas a conquista do controle – “hegemonia” – sobre essa rede informal de organizações que produzem a “cultura”, isto é, a ideologia dominante. (O Partido não precisa ser formalmente um só, reconhecido como tal nos registros eleitorais “burgueses”, mas pode ser um amálgama de organizações diversas e sem estratégia nominal unificada, algumas até sem existência legal, como acontece com o MST.)

3. A hegemonia não é apenas um meio de obter suporte social para a conquista do poder político. Isso seria reduzi-la a um apêndice da velha estratégia leninista. Ao contrário, ela é, desde já, a transição revolucionária para o socialismo, operada por meios tão difusos e onipresentes que se torna difícil combatê-los ou mesmo reconhecê-los. Daí o nome “revolução passiva”. É a revolução que acontece sem que ninguém possa ser apontado como seu autor e mesmo sem que as vítimas do processo tomem consciência clara do que está acontecendo.

4. No esquema leninista, a transição para o regime comunista se faria por meio de uma etapa intermediária socialista. O Estado, nessa perspectiva, seria fortalecido e ampliado até apropriar-se de todos os meios de ação social existentes. Quando nada mais restasse fora da esfera do Estado, este desapareceria como tal: onde tudo é Estado, nada é Estado. Pelo menos a dialética hegeliana ensina a raciocinar assim. Marx, Lenin e tutti quanti tomavam como dissolução real do poder de Estado essa pura transmutação semântica do tudo em nada. Foi por meio dessa grotesca mágica verbal que o totalitarismo perfeito pôde ser aceito como a perfeita democracia. O esquema de Gramsci é bem diferente. Nada tem de um engodo dialético. É uma transformação material, efetiva, da estrutura de poder. A conquista da hegemonia, conforme ele a encarava, já viria a constituir, em si e imediatamente, a dissolução da ordem estatal, substituída pela obediência espontânea das massas aos estímulos acionados pelos comandos culturais espalhados por todo o corpo da sociedade. A burocracia estatal é uma expressão da cultura dominante e nada pode contra ela. Ainda que continuasse formalmente vigente, a ordem estatal, inerme ante a força onipresente e invisível da “cultura”, se tornaria um adorno inócuo e se dissolveria por si mesma. Seria o comunismo não declarado, implantado sem a etapa intermediária socialista.

5. Nesse processo, a submissão coercitiva à autoridade estatal seria substituída pela obediência inconsciente e irreversível à “cultura”, isto é, ao conjunto de estímulos, slogans e cacoetes mentais injetados sutilmente na sociedade pelos “intelectuais”, a vanguarda partidária espalhada informalmente nos milhares de organizações da sociedade civil. A profundidade e abrangência dessa penetração pode ser medida pelo fato de que a rede de organizações a ser conquistada abrangia até escolas maternais, igrejas e confessionários, consultórios de psicologia clínica e aconselhamento matrimonial: nada na atividade psíquica da sociedade poderia escapar à influência do Partido, que adquiriria assim, segundo as palavras do próprio Gramsci, “a autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.

6. No esquema gramsciano, a identificação do perfeito controle totalitário com a perfeita liberdade democrática, que em Lênin era apenas um giro semântico demagógico, se torna um processo psicológico real vivenciado pelas multidões, que, não percebendo nenhuma autoridade estatal a coagi-las ou atemorizá-las por meios visíveis, acreditam piamente estar vivendo na mais libertária das democracias, no instante mesmo em que se curvam à mais completa obediência, incapazes até mesmo de conceber algum tipo de ação que escape à conduta que o Partido espera delas.

7. A subversão ativa por meio dos mecanismos tradicionais de ação comunista – greves, invasões de terras, protestos de toda ordem – não seria abandonada, mas articulada à conquista da hegemonia pela elite “intelectual”, formando o “bloco histórico”, isto é, a perfeita convergência da “pressão de cima” com a “pressão de baixo”. Operando sobre um fundo psicológico preparado pela hegemonia, a subversão já não encontraria resistência e nem mesmo seria nominalmente reconhecida como tal, pois corresponderia à simples realização de expectativas “normais” já prefiguradas e legitimadas na “cultura”.

Nenhum ser humano com QI superior a 12 pode deixar de perceber que a transformação revolucionária gramsciana não é um risco que se abre diante de nós, mas a situação em que o país já vive desde há muitos anos, um processo tão geral, profundo e avassalador que ninguém mais pensa em lhe oferecer resistência de conjunto: mesmo os descontentes com o estado de coisas só reagem a pontos de detalhe. Suas ações se dissolvem espontaneamente no oceano da hegemonia cultural e com a maior facilidade são reaproveitadas para o fortalecimento do contole partidário monopolístico.

Alguns exemplos especialmente deprimentes:

A. Aqueles que se revoltam contra a prepotência do MST já não têm sequer a força interior de lutar contra os objetivos do movimento e se limitam a protestar contra um ou outro meio de ação isolado. Contra a subversão agrária, o máximo que conseguem propor é a “reforma agrária dentro da lei”, isto é, a reforma agrária conduzida pelos agentes do mesmo movimento que só se diferenciam dos invasores de terras porque ocupam cargos na burocracia estatal. O ponto que ainda resta em disputa é apenas uma diferença quanto aos meios de fortalecer o MST: deixando-o invadir e queimar fazendas ou entregando-lhe oficialmente tudo o que ele exige e mais alguma coisa.

B. É mais que evidente que os organismos policiais e de inteligência não foram deixados de lado na conquista da hegemonia. Eles estão hoje sob o controle completo da organização partidária que, ao mesmo tempo, fomenta o banditismo através de legislações propositadamente liberalizantes e sobretudo da intensa colaboração entre as quadrilhas de traficantes e as organizações subversivas estrangeiras associadas ao partido governante através do Foro de São Paulo. É a perfeita articulação da “pressão de baixo” com a “pressão de cima”. Espremida entre esses polos, a sociedade não tem alternativa: ou se conforma com a violência criminosa descontrolada, ou fortalece o partido governante confiando-se à sua proteção, sem ousar confessar a si mesmo que assim só está se entregando oficialmente aos próprios bandidos.

C. Durante anos, a elite partidária articulou violentas campanhas de combate à corrupção com a construção discreta e abrangente de uma máquina de corrupção incomparavelmente maior e mais destrutiva do que todas aquelas que ia desmantelando pelo caminho. Pressão de cima e pressão de baixo. Durante esse período, os feitos mais espetaculares do moralismo acusador deviam-se exclusivamente ao progressivo controle que os partidos de esquerda iam adquirindo sobre os meios de informação e contra-informação através de uma infinidade de “arapongas” infiltrados em toda parte. Na época, a sociedade já estava tão estupidificada e submissa que fechava os olhos a essa monstruosa destruição da ordem legal desde dentro e só se enfezava contra os corruptos avulsos que a máquina de subversão esquerdista apontava à execração popular. A situação descrita por Políbio Braga no parágrafo citado acima não é nova. O esquema esquerdista tem toda a máquina de informações na mão, podendo usá-la à vontade tanto para enriquecer ilicitamente como para intimidar, assassinar moralmente ou mesmo mandar para a cadeia quem quer que ouse denunciar o que está fazendo. A esta altura, qualquer político anti-esquerdista que ache possível vencer esse esquema por meio de acusações isoladas de corrupção, apegando-se a esse ponto para fugir a um confronto com a estratégia geral gramsciana, é evidentemente um bocó inofensivo que só merece, de seus inimigos esquerdistas, um riso de desprezo.

No Brasil atual, a autodemolição do Estado e sua substituição pela onipotência do Partido já são fatos consumados e, nesse sentido, a profecia gramsciana se revelou perfeitamente veraz. O problema com Gramsci não é a falta de realismo. Gramsci nunca foi vitima de utopismo revolucionário. Ele sempre foi atento aos fatos e sensível à hierarquia das forças objetivas que movem a sociedade. O problema com ele não está nos fatos, mas nos valores. Tal como seu guru Maquiavel, ele tinha uma consciência moral doente, disforme, incapaz de sentir o mal mesmo nas suas expressões mais óbvias e escandalosas. Por exemplo, ele via a dissolução do Estado como o advento de uma era de liberdade jamais sonhada. Mas o Estado é uma ordem explícita sobre a qual sempre se pode exercer um controle crítico. Já a rede de operadores da hegemonia é oculta, inacessível ao público. É uma elite onipotente como uma casta de deuses, controlando o processo desde alturas inatingíveis. Só uma mente perversa pode conceber isso como um reino da liberdade. Ao mesmo tempo, é óbvio que a elite esquerdista pode dissolver o Estado por meio do fomento ao banditismo, mas com isso entrega a população à sanha de traficantes e assassinos, sem lhe deixar esperança de refúgio exceto por meio de um retorno ao Estado forte, dominado, é claro, pela mesma elite que criou, protegeu e alimentou o império do crime.

Gramsci sabia como funcionava a estrutura de poder. Só não sabia diferenciar o bem do mal. Era um gênio da engenharia social com a consciência moral de um rato de esgoto. Se o Brasil é hoje a nação recordista mundial de homicídios no mundo e ao mesmo tempo o único país em que a estratégia gramsciana foi aplicada de maneira integral e bem sucedida, só tipos patéticos nos quais a impotência e a cretinice tenham chegado à síntese perfeita da estupidez superior podem achar que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ora, praticamente toda a política “de oposição”, no momento, consiste precisamente em agir como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra.

Quando observo esse estado de coisas e me lembro de que, ao longo das décadas, todas as minhas tentativas de denunciar o processo antes que ele chegasse às suas últimas conseqüências foram recebidas com bocejos de indiferença ou com aquela franca hostilidade que os preguiçosos e comodistas reservam para os portadores de notícias desagradáveis, não posso escapar à conclusão de que as vítimas da opressão esquerdista receberam exatamente aquilo que fizeram por merecer. No fundo do caos, da violência, do cinismo triunfante e da mais formidável degradação moral que qualquer nação do mundo já vivenciou, reina, no fim das contas, uma certa justiça. Todos estão sendo recompensados pelos méritos da sua covardia moral e da sua indolência intelectual. Parabéns.

***

Nota – Na análise dos fatos, Gramsci só falhou num ponto decisivo. Ele não entendia absolutamente nada de economia, e por isso imaginou que a aplicação bem sucedida da sua estratégia produziria automaticamente a transfiguração mágica do sistema econômico. Ao contrário, a evolução posterior dos acontecimentos mostrou que a implantação de um sistema de poder comunista gramsciano é inteiramente compatível com a subsistência do capitalismo monopolístico. Na verdade, ela até exige isso, porque, a economia comunista sendo inviável em si (a demonstração cabal disto já foi feita desde 1928 por Ludwig von Mises), o esquema gramsciano precisa de uma certa quota de capitalismo para manter-se de pé, exatamente como acontece na economia nazista ou fascista. Daí a parceria infernal do partido governante com os bancos. Mantendo satisfeita uma parcela da burguesia, esse esquema pode durar indefinidamente. E, se alguém acha ruim, o protesto mesmo pode ser canalizado em favor da propaganda esquerdista, lançando-se as culpas do mal sobre o “sistema”, como se o sistema não fosse o próprio gramscismo realizado.

Entre Lúcifer e Satã

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 23 de março de 2006

O que quer que você pense ou diga, por mais importante, elevado e bonitinho que lhe pareça, está sendo pensado ou dito dentro do quadro da realidade e não acima dele; é somente mais um acontecimento sucedido dentro do fluxo temporal e cósmico no qual você é arrastado como os dias, as vidas, os átomos e as galáxias, e não uma escapada miraculosa para fora e para cima de tudo o que existe. Ainda que o conteúdo intencional desses pensamentos se refira ao “todo”, ao “universo”, o fato de você pensá-lo não coloca você acima do todo, como um juiz soberano e transcendente, mas apenas imita, desde dentro da imanência, aquele aspecto limitado da transcendência no qual você está pensando nesse momento. Nenhum ser humano julga o universo, a totalidade do real. Quando ele inventa sentenças que parecem fazer isso, o máximo que consegue é julgar-se a si mesmo.

Isso não quer dizer que, desde dentro da realidade sensível, você não faça a mínima idéia do que há para além dela. O simples fato de você poder criar aqueles julgamentos, ainda que errados, já mostra que algo, desde dentro e desde baixo, você consegue apreender do que está fora e acima. Digo “apreender” e não apenas “imaginar”, como preferiria Kant, porque se fosse apenas imaginado seria arbitrário e não suscetível de fiscalização racional ou confronto com a experiência; e o fato mesmo de estarmos discutindo isso já prova que não é assim. Por isso, se sobre a totalidade você nada pode dizer que a transcenda, a abarque e a julgue desde o além, também nada pode impedi-lo de olhar para esse além e saber algo a respeito. Se estivéssemos totalmente presos na imanência e na finitude, uma inteligência capaz de apreender as noções de infinito e de absoluto seria um luxo biológico inexplicável (a hipótese de que tenhamos chegado a isso pelo acúmulo de pequenas ampliações quantitativas da inteligência símia é simiesca em si mesma).

As duas máximas ilusões dos filósofos, ao longo dos tempos, foram precisamente essas: uns pretenderam transcender a totalidade e julgá-la, outros decretaram que nada podemos saber sobre a transcendência. Uns quiseram nos transformar em deuses; outros, em bichinhos inermes separados da transcendência por fronteiras cognitivas intransponíveis.

Na Bíblia, esses dois erros fatais da inteligência humana já estavam anunciados com muita precisão. A ilusão de julgar o mundo enquanto se está dentro dele é o “conhecimento do bem e do mal” que a serpente promete a Eva. O muro que veda o acesso à transcendência é a “insensatez” que limita a visão da existência à esfera do imediatamente acessível.

Esses dois erros têm nomes técnicos tradicionais, derivados da mesma raiz: gnosticismo e agnosticismo. O primeiro promete a posse de um conhecimento impossível; o segundo inibe e frustra a aquisição de um conhecimento possível. Correspondem a dois nomes do demônio: Lúcifer e Satã. O demônio da falsa luz e o demônio das trevas falsamente triunfantes. O demônio do conhecimento errado e o demônio da ignorância soberba.

Platão e Aristóteles já sabiam que a condição humana não é nem conhecimento, nem ignorância, mas a tensão permanente entre esses dois pólos, o primeiro pertencendo aos deuses, o segundo aos animais.

O que caracteriza a filosofia moderna como um todo é a perda dessa dialética tensional, a proclamação alternada do conhecimento absoluto e da ignorância invencível. De um lado, a metafísica onipotente de Descartes e Spinoza; de outro, o ceticismo radical de Hume. É verdade que Kant quis encontrar uma via média, mas, ao limitar as possibilidades de conhecimento aos fenômenos sensíveis e às formas vazias da razão, reduzindo à pura imaginação e à fé o acesso à transcendência, criou a forma mais requintada e letal de agnosticismo moderno. Como que em compensação, ergueu no horizonte a miragem gnóstica da “paz eterna”, tornando-se o profeta da burocracia global e de um cristianismo biônico sem nenhum Cristo de carne e osso.

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