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O milagre idiota da utopia invertida

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de novembro de 2005

Um cuidado óbvio, em História como nas ciências sociais em geral, é que uma dada situação não deve ser apontada como “causa” de tais ou quais desdobramentos a não ser quando seja razoável presumir que situação idêntica ou análoga, em condições gerais não muito diversas, possa ter produzido ou vir a produzir idênticos ou análogos resultados.

Outra precaução igualmente incontornável é que nenhuma situação socio-econômica, por si, gera movimentos políticos a não ser através das interpretações, culturalmente condicionadas mas dependentes de mil e uma variáveis subjetivas, que determinam as respostas práticas dadas a essa situação.

Por fim, resta a diferença de enfoque, que há e deve haver, como já ensinava Aristóteles, entre o discurso dos agentes envolvidos e o do estudioso que procura compreender o processo. O primeiro tem por objetivo uma ação, o segundo, uma intelecção. Uma ação produz-se por meio da persuasão, uma intelecção por meio de descrição, comparação, classificação, análise e síntese. O discurso de persuasão busca chegar à sua finalidade pelo caminho mais rápido, contornando as dificuldades e contradições pelo atalho psicológico mais à mão. A busca da intelecção, ao contrário, atrai e exige propositadamente as dificuldades e contradições para certificar-se de não criar, no fim, uma síntese ilusória.

A rapidez fulminante e uniforme com que centenas de “analistas”, na grande mídia local e internacional, explicaram a rebelião na França como efeito das más condições de vida dos jovens imigrantes, passando por cima daquelas duas precauções como um exército de tratores mentais, mostra que esses não são verdadeiros discursos de análise, mas sim o próprio discurso dos agentes, com sua mesma justificativa e seu mesmo apelo à ação, apenas repetido em outra clave, num tom de distanciamento aparente, necessário para camuflá-lo em análise. Não buscam compreender nada, mas legitimar, fortalecer e expandir o processo. São propaganda, no sentido mais estrito e literal do termo. Entre o agitador que incita as massas a queimar tudo em volta e o comentarista que vende como explicação causal objetiva a simples transposição verbal das autojustificações subentendidas no discurso do próprio agitador, sem confrontá-la com dados externos que possam contradizê-la, a diferença é somente de grau, não de substância. E quanto mais, ao fazê-lo, o segundo se empenhe em distanciar-se do estilo do primeiro, substituindo os gritos e as gesticulações pela afetação de serenidade de quem expressa verdades arqui-sabidas e incontestáveis, mais profunda e mais ardilosa a sua atuação no processo, atuação até mais consciente e deliberada que a do agente direto arrebatado pela emoção do momento.

As redações de jornais, rádios e canais de TV estão repletas de incendiários tranqüilos. E não há nisso realmente nada de estranho, para quem saiba ou recorde que o velho Lênin, o maior dos mestres nessas matérias, chamava aos atos terroristas “propaganda armada”, e “propaganda desarmada” a extensão jornalística, publicitária, psico-social e política dos seus efeitos, enfatizando ser esta, e não aquela, a verdadeira medida da eficácia obtida. Evidentemente, na passagem de uma coisa à outra, podia haver falhas desastrosas. A propaganda desarmada podia converter-se em contrapropaganda, despertando ódio e desprezo aos agentes físicos em vez do temor respeitoso, da obediência servil, da passividade cúmplice ou de qualquer outro resultado favorável ao empreendimento criminoso. Mas, no caso, a continuidade perfeita entre os motivos alegados pelos agentes alucinados e a pretensa explicação oferecida de fora por seus comentaristas serenos é tão patente, linear e infalível, que não pode haver mais dúvida: uma parcela vasta e significativa da grande mídia, sobretudo na Europa e na América Latina, mas também nos EUA, se transformou em arma essencial da “guerra assimétrica” (v.http://www.olavodecarvalho.org /semana/040520fsp.htm , http://www.olavodecarvalho.org /semana/040515globo.htm e http://www.olavodecarvalho.org /semana/041226zh.htm ) movida por um front comum de comunistas, pró-comunistas, neonazistas e radicais islâmicos contra a civilização do Ocidente, com a cumplicidade solícita de forças depressivas e suicidárias espalhadas por toda parte no corpo desta última.

Voltando à primeira das precauções assinaladas, é mais que evidente que todas as gerações anteriores de imigrantes instalados nas nações ricas do Ocidente, vindos de onde viessem, enfrentaram aí condições incomparavelmente mais drásticas e desumanas do que esses meninos enragés instalados em conjuntos habitacionais do governo, beneficiados por instituições previdenciárias, programas assistenciais, educação gratuita e uma pletora de leis politicamente corretas que então simplesmente inexistiam até mesmo como hipóteses. Imagino um irlandês na Nova York do século XIX, um russo em Londres na década de 20, um judeu na Argentina do pós-guerra, um italiano no cafezal paulista dos anos 30, um cubano fugido de Fidel Castro na Flórida de 1959, esbravejando que tem direito a isto e mais aquilo, metendo processos no governo que o acolhe e, não atendido imediatamente, ateando fogo em carros nas ruas sob os aplausos gerais da mídia elegante. Na quase totalidade dos casos, o que faziam era precisamente o contrário: aglomerados em porões ou barracos, separados do ambiente por um abismo de prevenções e suspeitas de parte a parte, hostilizados por outros imigrantes, não esperavam da nova pátria senão a oportunidade de trabalhar duro, mais duro até que nos seus locais de nascença, mas gratos por ter encontrado um abrigo contra o perigo de morte iminente e pela chance de alcançar uma vida melhor para seus netos e bisnetos. Às vezes se rebelavam, sim, mas por boas razões: desemprego sem a ajuda da previdência, discriminação racista ostensiva, supressão forçada de seus costumes e idiomas e, last but not least , fome pura e simples. E, quando o faziam, a reação da sociedade em torno era imediata e brutal.

Sob qualquer ponto de vista que se examine, a situação dos imigrantes no Ocidente não piorou: melhorou formidavelmente, chegando a requintes de cuidados paternais estendidos até mesmo aos clandestinos, aos ilegais, aos abertamente delinqüentes. Nos EUA, a simples recusa de dar carteiras de motorista a imigrantes clandestinos provocou uma onda de exclamações indignadas nos meios bem pensantes. Em 1998, em Paris, vi uma agitação medonha de estudantes vietnamistas no Quartier Latin. Eram meninos e meninas de 12 a 15 anos, com os olhos fuzilando de ódio e as bocas espumando em vociferações anticapitalistas. Perguntei o que exigiam. Responderam-me alguma coisa sobre ensino. Indaguei se não tinham escolas gratuitas. Tinham. Mas – esta a razão da gritaria – não lhes pareciam tão boas quanto os colégios tradicionais da burguesia francesa. O pressuposto do seu raciocínio era que qualquer recém-chegado, tão logo ali desembarcasse, devia receber do governo, com o dinheiro dos contribuintes, condições sociais idênticas àquelas que esses mesmos contribuintes e seus antepassados haviam construído ao longo de mil anos de esforços. E aquilo não lhes parecia antinatural de maneira alguma. Era a expressão literal do diagnóstico oferecido por Thomas Sowell: eles não queriam a justiça social, queriam a justiça cósmica. Queriam que o governo, por decreto, invertesse a estrutura da realidade, tomando do cidadão que produziu para dar ao estrangeiro que não produziu.

O caráter ao mesmo tempo miraculoso e injusto da inversão pretendida — como se fosse preciso um milagre para produzir nada mais que injustiça — mostra que não seria adequado classificá-la de “utópica”. Tratava-se, isto sim, de uma inversão paródica da idéia de utopia como reino universal da justiça. O que ali se paramentava dos atrativos messiânicos da utopia era o roubo puro e simples. Não me ocorreu na hora, mas, revendo o caso anos depois, notei que essa inversão tinha precedentes intelectuais muito fundos na história da autodestruição ocidental. Um deles remontava a Maquiavel. Para ilustrá-lo, aproveito-me de umas notas que tomei para o primeiro capítulo de um livro que estou preparando.

A inversão paródica da Justiça aparece quando, nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio , Maquiavel volta a um tema do Príncipe , o principado recém-criado e instável. Como fará o novo governante para consolidar o seu poder? A resposta é que ele deve radicalizar a novidade da situação, virando tudo do avesso repentinamente, “tornando os ricos pobres e os pobres ricos, tal como fez Davi ao tornar-se rei, o qual ‘ encheu os pobres de bens e enviou os ricos de volta sem nada ‘”. Nesse parágrafo há três detalhes altamente significativos. Primeiro: ele contém a única citação bíblica que aparece nos Discursos . Segundo: ele ilustra a conduta ideal do príncipe mediante o precedente bíblico da ascensão do rei Davi, mas expondo esse precedente não com o trecho respectivo do Antigo Testamento (2 Samuel 5:1-16), e sim com um do Novo ( Lucas 1;53), extraído de um contexto totalmente alheio ao episódio de Davi. Terceiro: da história de Davi não consta que ele fizesse nada de parecido com o que Maquiavel recomenda ao príncipe (bem ao contrário, o profeta Natã o acusa de explorar o pobre e poupar o rico), ao passo que nas palavras citadas do Novo Testamento a reversão das posições dos homens não é atribuída a rei nem príncipe, e sim ao próprio Deus: Esurientes implevit bonis et divites dimisit inanes – em latim no original. São as palavras com que Maria, após a Anunciação, celebra o Deus que escolheu a mulher humilde e pobre para ser Mãe do seu Filho. Aí não se trata evidentemente de proceder a nenhuma subversão da hierarquia sócio-econômica, já que o privilégio concedido à Santa Virgem não tem como ser socializado entre os pobres nem tomado dos ricos. Em suma: o episódio alegado para legitimar o conselho não tem nada a ver com o conselho, o trecho usado para ilustrar o sentido do episódio não tem nada a ver com o episódio e as palavras citadas para explicar o episódio e o sentido do conselho não têm nada a ver com um nem com o outro. É a mentira dentro de uma falsificação embutida em conversa mole – tudo para chamar de justiça o exercício da prepotência arbitrária de um tirano amedrontado.Mas Maquiavel, pelo menos, teve a polidez de declarar: “Não digo uma só palavra do que creio nem creio numa só palavra do que digo.” Passado meio milênio, a gozação sinistra da utopia injusta tornara-se crença sincera de meninos vietnamitas em Paris. É nesse tipo de pensamento, marcado pelo fenômeno que chamo “paralaxe cognitiva” — o abismo entre realidade e construção teórica — , que se fundamentam as interpretações (v. acima, precaução 2) que transformam, com uma mistura verdadeiramente satânica de estupidez e cinismo, a melhoria das condições em motivo de revolta, e a reivindicação da injustiça em bandeira de justiça. A inversão aí embutida torna-se tanto mais vistosa para quem a enxerga – e por isto mesmo tanto mais invisível para quem não quer enxergá-la – quando se considera que, em defesa das reivindicações absurdas, que transformariam cada Estado ocidental num pai amoroso de seus inimigos odientos, se alegam justamente razões de “diversidade cultural” isto é, o respeito que o país hospedeiro deve ter pela cultura original do hóspede. No caso do imigrante islâmico, essa cultura determina, precisamente, que ao estrangeiro, que ao não-muçulmano, se deve conceder, no máximo, um posto de cidadão de segunda classe, sem acesso não somente a benefícios sociais de qualquer natureza, bem como a cargos oficiais, mas à simples possibilidade de praticar sua religião em público ou de declarar suas crenças em voz alta. Ou seja: o que se pede às nações ocidentais é que demonstrem o seu profundo respeito pela cultura islâmica fazendo precisamente o contrário do que ela faz, e concedendo aos seus representantes tudo aquilo que ela os manda negar ao recém chegado do Ocidente. Qualquer político que, hoje, se recuse a fazer isso é, mais paradoxalmente ainda, chamado de nazista, justamente porque, malvado como ele só, nega refresco àqueles que, do alto dos seus púlpitos nas mesquitas, exibem os “Protocolos dos Sábios de Sião” como o nec plus ultra da verdade histórica e em nome dela exigem a supressão dos judeus da face da Terra. Não é a situação real dos jovens imigrantes parisienses que cria a sua revolta, por mais que terroristas do teclado queiram transformar essa absurdidade em dogma inquestionável. A revolta nasce da interpretação invertida, sedimentada por séculos de autodestruição da inteligência, que começam com um florentino mentiroso e culminam no autoludíbrio geral das massas.

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P. S. – Dezenas de leitores me perguntam se não errei no artigo anterior, ao assinalar a taxa de 24 suicídios para cada cem cubanos, em vez de cem mil. É claro que errei, e por pura distração, mas não tanto. Não são 24 em cem nem 24 em cem mil, mas 24 em mil – a maior taxa da América Latina e o triplo da taxa de antes da Revolução. Está na página 60 do livro de Humberto Fontova, “Fidel, Hollywood’s Favorite Tyrant” (Regnery, 2005). O autor acrescenta que o suicídio é a principal causa de mortes de cubanos entre 15 e 48 anos de idade, e que a taxa cubana de suicídios de mulheres é a mais alta do mundo.

Critério certeiro

Olavo de Carvalho


Zero Hora, 13 de novembro de 2005

Mais de uma vez aludi aqui à máxima leninista “Acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é.” Ela fornece um critério certeiro para discernir a lógica de muitas manobras estratégicas e táticas do esquerdismo organizado: sempre que os partidos de esquerda lançam uma campanha de denúncias ferozes contra algum delito real ou imaginário, é porque eles mesmos, naquele preciso instante, estão preparando ou praticando outro crime da mesma espécie e de dimensões incalculavelmente maiores. Isso é assim desde os tempos do próprio Lênin, e o sr. Fidel Castro o ilustra novamente ao tentar alarmar a platéia quanto a uma impossível invasão americana do continente no instante mesmo em que vai preparando um ataque à Colômbia. Igualmente pedagógico é o timing dos esquerdistas chiques do Partido Democrata americano, que armam um escarcéu dos diabos acusando o vice-presidente de vazar informações sobre uma inócua agente da CIA ao mesmo tempo que abrem um rombo na segurança nacional revelando os locais onde o Exército guarda importantes terroristas presos.

Mas os exemplos locais não são menos edificantes.

O começo da década de 90, o tempo da “campanha pela ética na política”, da gritaria anti-Collor e das CPIs em que o sr. José Dirceu brilhava diagnosticando conspirações e golpes de Estado em cada intercâmbio chinfrim de propinas e favores, quase sempre aliás inexistentes, foi precisamente a época em que ele próprio e seus companheiros de cúpula do PT começavam a montar, por trás da cena, o mais vasto empreendimento de ladroagem política já observado neste país.

Imaginar que fosse tudo coincidência, que uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, que o sr. José Dirceu fosse apenas um caso de personalidade dupla, passando do papel de Eliott Ness ao de Al Capone sem nem se dar conta da transformação, é abusar do direito à estupidez. É claro que a campanha de ódio moralizante foi, desde o início, parte integrante da estratégia criminosa, como a camuflagem faz parte de uma operação de guerrilhas. Por isso não tem cabimento dizer que a roubalheira do Mensalão é um desvio, uma ruptura com os belos ideais petistas do passado. Os belos ideais eram instrumentos da roubalheira, e o mais óbvio sinal disso era que jamais se traduziam em atos de virtude mas somente em discursos histéricos contra os pecados alheios, sem ter nem ao menos a prudência de distinguir os verdadeiros dos inventados.

Na época, tendo aprendido com um sábio guru que não existe genuíno ódio ao mal quando não acompanhado do correspondente amor ao bem, não me deixei enganar pelas intenções nominalmente elevadas da retórica de acusação, incomparavelmente mais brutal e implacável do que as tímidas especulações, entremeadas de atenuantes lisonjeiros, que hoje o PT rotula hipocritamente de “massacre”. Afirmei resolutamente que o abuso malicioso do apelo à ética não poderia senão embotar ainda mais o senso moral da nação, prenunciando devassidões perto das quais os Anões do Orçamento, já então pequenos demais para o barulho que se fazia em torno deles, se tornariam miniaturas de anões num bolo de aniversário. Fundado na análise das discussões internas do PT lidas à luz da estratégia gramsciana que as orientava, meu prognóstico estritamente objetivo foi desprezado, com sorrisos de superioridade, por todos os sabichões da mídia, do empresariado, do judiciário e até das Forças Armadas a quem tive a ocasião de apresentá-lo. Se lhe tivessem prestado atenção, muitas perdas e humilhações teriam sido poupadas a este país já esgotado. Não hesito em dizer que a indiferença dessas pessoas foi irresponsável, covarde e criminosa. Mas seria tolice esperar que se arrependessem. A presteza solícita com que hoje aceitam as desculpas mais esfarrapadas para esquivar-se ao dever de investigar a sério a denúncia da ajuda ilegal de Cuba à candidatura Lula mostra que a passagem do tempo não lhes ensinou nada nem lhes ensinará jamais coisa alguma. Nesse sentido, os Dirceus, os Lulas e tutti quanti podem dormir tranquilos. Nada lhes acontecerá. É, no fundo, uma simples questão de justiça. Quem poderia ter tido a autoridade moral para puni-los tratou de vendê-la por pequenas vantagens, às vezes apenas por uns minutos de sossego anestésico, longe da própria consciência. Um povo que tem horror à verdade merece ser enganado indefinidamente.

Ilusões que se desfazem

Olavo de Carvalho


Jornal do Brasil, 10 de novembro de 2005

Qualquer tomada de posição nos debates do dia a dia depende de três fatores. Antes de tudo, cada indivíduo opinante traz consigo uma hierarquia abstrata de valores genéricos que orienta suas escolhas. Em segundo lugar, ele possui alguma representação esquemática das forças em disputa, de modo a poder identificar quais delas personificam os seus valores e quais os valores opostos. Mas – terceiro fator — essa representação depende do fluxo de informações que ele recebe da cultura em torno. Um fluxo viciado pode levar as pessoas a apostar em forças que destroem os seus valores em vez de realizá-los. Repetidas desilusões não bastam para reorientar as escolhas se o erro básico não é conscientizado e sua correção sistemática não se integra por sua vez na corrente de informações.

Na política, as escolhas dependem, em última instância, da representação geral dos poderes em conflito no mundo. Há décadas o público brasileiro se deixa guiar por uma representação falsa. Isso vem acontecendo desde que a orientação da cultura deixou de refletir o pluralismo espontâneo das idéias e passou a ser moldada hegemonicamente por uma corrente de opinião organizada, investida dos meios de marginalizar as demais e impor a sua própria visão como se fosse a única. Não o fez de maneira unilinear e dogmática, mas de tal modo que as suas próprias contradições internas, de ordem puramente adjetiva, parecessem esgotar o rol das discussões possíveis, tornando difícil apreender e verbalizar qualquer outra alternativa. A disputa presidencial de 2002, protagonizada por quatro candidatos ideologicamente uniformes, foi a cristalização eleitoral de um longo processo de recorte e moldagem do imaginário coletivo, em resultado do qual os cidadãos permaneciam livres para cultuar os valores subjetivos que quisessem, desde que na prática os personificassem nas forças escolhidas para esse fim pela representação imperante.

Durante um tempo, isso produziu um sentimento geral de unanimismo eufórico, infundindo em todos a ilusão de ter encontrado a fórmula da harmonia entre os valores amados e as forças capazes de realizá-los.

Contradições insolúveis não demoraram a aparecer, rompendo o círculo da falsa harmonia. Se a concorrência política normal já custa muito dinheiro, a hegemonia custa muito mais. Para conquistá-la, impondo-se artificialmente como personificação monopolística dos valores mais altos, a organização dominante teve de recorrer aos meios mais baixos. Nem poderia ser de outro modo. Na ética comunista, isso não tem nada de mais. Mas como explicar isso a eleitores que foram levados a enxergar num partido comunista a encarnação da moral no sentido mais usual e burguês do termo?

Pode-se tentar remendar o véu da ilusão, mas uma contradição ainda mais inconciliável, em escala planetária, ameaça rasgar em breve o que reste dele. Em vista dos resultados políticos desejados localmente, a população nacional foi ensinada a conceber o mundo como um cenário dividido, tal como no filme “Guerra nas Estrelas”, entre um Império global — identificado com os EUA — e as forças esparsas das nações sequiosas de liberdade. A disputa pelo poder sobre a internet desfará, num instante, essa representação grotescamente invertida. A República do Irã, a China, a Arábia Saudita e a ONU, que ao lado do Brasil e da burocracia européia lutam contra a “dominação americana” sobre a rede, jurando com isso defender o pluralismo e a democracia, são notórias censoras da internet , ao passo que o controle nas mãos dos americanos tem assegurado justamente a total ausência de censura. Aqueles que odeiam os EUA mas amam o direito de navegar livremente pela rede não demorarão a perceber, diretamente nas telas de seus computadores domésticos, que seu objeto de ódio é a única esperança de salvar seu objeto de amor. A representação vigente, como um vírus pego em flagrante, correrá então o risco de ser repentinamente deletada de todos os HDs.

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