Você estar comunisto?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de dezembro de 2014

O falecido Jean Mellé, fundador e diretor do “Notícias Populares”, que se tornaria um clássico do jornalismo de escândalo, era um refugiado romeno que tinha sólidas razões para odiar o comunismo. Grande e musculoso, de vez em quando agarrava um de seus subordinados pela goela e, com um olhar feroz de grão-inquisidor, perguntava: “Você estar comunisto?”. Se a resposta fosse “Não”, ele se dava por satisfeito.
Em noventa por cento dos casos, o interrogado era um membro do Partido e saía rindo do patrão cujo poder ameaçador se neutralizava a si mesmo com uma dose patética de ingenuidade.
Na verdade, Mellé não era nada ingênuo. Conhecia de trás para diante a ambiguidade escorregadia da conduta dos comunistas. Não tinha a menor ilusão de que andassem com foice e martelo estampados na testa ou declarassem de bom grado sua identidade ideológica. Contentava-se com a resposta sumária somente porque não dominava a língua nacional o suficiente para encompridar a discussão. Queria apenas infundir um pouco de medo no coração dos comunas, e conseguia. Eles vingavam-se com risadinhas forçadas que espalhavam o mito do adversário simplório, grandão bobo que até crianças poderiam enganar. Mentiam, e mentiam sobre a mentira: ocultavam sua filiação partidária e fingiam que tinham conseguido ludibriar “a direita”. A satisfação com que se entregavam a esse empreendimento acabava por se impregnar nas suas mentes, transfigurando o fingimento ocasional numa sintomatologia histérica completa e o autoengano num estilo de vida permanente.
Decorrido meio século, o movimento comunista ainda tem no jornalismo brasileiro um exército de colaboradores fiéis cuja tática persuasiva habitual e praticamente única consiste em inventar uma versão ridiculamente simplória do comunismo, atribuí-la aos direitistas e, demolindo-a com duas ou três piadinhas sem graça, cantar vitória, ficando assim provado que o comunismo não existe, que é apenas uma fantasia paranoica de direitistas raivosos. É o bom e velho recurso erístico do “homem de palha”, que nessas pessoas já se tornou uma segunda natureza.
Alguns dos praticantes dessa mágica besta são homens tarimbados, treinados em Havana e Praga. A prova mais patente do poder que adquiriram nas redações é a naturalidade com que estágios em centros de propaganda e desinformação na Cortina de Ferro entram nos seus currículos como provas de “experiência jornalística”, como se a técnica de mentir fosse a mesmíssima coisa que a de relatar os fatos. É óbvio que, ao menos nos velhos tempos, muitas dessas gentis criaturas eram agentes pagos de serviços secretos comunistas. Seus nomes, com atraso de meio século, vão sendo pouco a pouco revelados pelos documentos arquivados em Praga no Instituto para o Estudo dos Regimes Totalitários (ver aqui e aqui).
Outros, mais jovens, não precisaram viajar para adquirir as manhas da prosa comunista. Aprenderam-nas por aqui mesmo, em faculdades de jornalismo que os cavalheiros mencionados no parágrafo anterior transformaram em centros de adestramento da militância pelo menos desde a década de 70 do século passado.
O primeiro sinal de que você é inteligente é a sua capacidade de perceber que um outro é mais inteligente. Mutatis mutandis, o primeiro sinal de burrice é supor, sempre, que o outro é mais burro do que é. Nisso consiste o artifício de retórica erística a que me referi: O sujeito define o comunismo da maneira mais simplória e mecânica e, argumentando que esse comunismo não existe (como de fato não pode existir), conclui que todo anticomunismo é uma doença mental, fonte de violência e “crimes de ódio”.
A definição usada nesse truque é a seguinte: o comunismo é a estatização completa, repentina e ostensiva dos meios de produção e de toda propriedade particular. O governante pega o microfone e anuncia: “Olhe aqui, gente, eu sou comunista. Agora quem manda nesta porcaria é o comunismo. Passem aí as suas propriedades ou vão para o Gulag.”Para tipos como o sr. Jô Soares e outras cabeças iluminadas que guiam o pensamento nacional, o fato de que isso nunca tenha acontecido é a prova cabal de que o perigo comunista não passa de uma invencionice criada para justificar um golpe de Estado ou coisa pior.
Em contraste com essa desconversa vagabunda, vejamos o que é o comunismo de verdade, na sua teoria e na sua prática no mundo.
Karl Marx ensinava que a estatização dos meios de produção – etapa inicial da construção do socialismo – seria um processo complexo que deveria se estender por muitas décadas ou séculos, e que não poderia nem mesmo começar antes que os meios capitalistas de produção alcançassem o seu máximo desenvolvimento possível.
A última coisa que um governante comunista deve fazer – sobretudo se chegou ao poder pelas vias democráticas usuais e sem derramamento de sangue — é portanto sair estatizando tudo, desmantelando a classe capitalista. Ao contrário: deve ajudar os capitalistas a ganhar o máximo de dinheiro que possam, ao mesmo tempo que os destitui dos seus meios de ação política e ideológica. A função do capitalista nessa fase do socialismo é fazer dinheiro e não dar palpite, tornando-se tanto mais próspero quanto mais politicamente inócuo e subserviente à elite governante comunista. Seduzidos pelos ganhos fáceis, os capitalistas vão transferindo aos comunistas todo o seu poder ideológico, de modo que, em prazo relativamente breve, quatro coisas acontecem:
(1) Em pleno regime de prosperidade capitalista, só há ideias comunistas em circulação. De maneira mais ostensiva ou mais camuflada, a propaganda comunista se torna o único discurso vigente na sociedade. As ideias concorrentes desaparecem ao ponto de se tornarem impensáveis. Subsistem, na melhor das hipóteses, como vagos mitos de outras épocas. Um restinho de “ideologia capitalista” permanece no ar, reduzido à apologia da eficiência econômica, que os comunistas seriam os últimos a negar.
(2) A riqueza deixa de ser um meio de ação política independente e se reduz a instrumento da propaganda comunista. Cada capitalista gasta rios de dinheiro elegendo comunistas e financiando o ódio ao capitalismo.
(3) Ter uma imensa conta bancária dá menos poder do que uma carteirinha do Partido ou um cargo público qualquer. O poder político-ideológico é transferido da burguesia para a elite partidária sem que a propriedade capitalista sofra qualquer arranhão visível.
(4) Os comunistas, por seu lado, podem tanto se gabar de ser os dominadores absolutos da situação como continuar a se fazer de vítimas indefesas da burguesia. Passam do discurso ameaçador às lágrimas de autocomiseração com a maior facilidade, e a incoerência mesma da sua atitude serve para desnortear ainda mais o adversário.
Nessa etapa, não há guerra econômica. Não se trata de tomar as propriedades dos burgueses, mas de destituí-los de seus meios de autodefesa ideológica.
Esse é o programa que o governo do PT vem cumprindo à risca, esse é o esquema comunista real e genuíno. Ele não é um homem de palha, muito menos é uma ameaça: é a realidade em que vivemos.

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