Entrevista de Olavo de Carvalho ao site Anedota Búlgara

3 de janeiro de 2002

1)    Qual deve ser o papel de um filósofo na mídia? E, neste sentido, o que representa a sua atuação na imprensa escrita?

Um filósofo na mídia é um pregador “in partibus infidelium” — um jesuíta entre antropófagos. Não entendem uma palavra do que ele diz e ele ainda se arrisca a ser comido vivo. Em outras épocas, filósofos-jornalistas como Ortega y Gasset, Gabriel Marcel e Raymond Aron podiam contar com um público habilitado, que compreendia seus argumentos. Hoje é preciso, ao mesmo tempo, argumentar e ensinar ao público o que é um argumento. Pior ainda: quanto mais despreparado, mais o público de hoje é arrogante e palpiteiro. O que recebo de cartas pretensiosas, sem pé nem cabeça, é uma grandeza.

2)    A revista Época transformou recentemente a sua coluna semanal em mensal, sem maiores explicações aos seus leitores. O que de fato aconteceu, e a que o senhor atribui essa atitude da revista?

O que aconteceu foi que o Augusto Nunes, fundador da revista, foi para o Jornal do Brasil, e o novo diretor, Paulo Moreira, por algum motivo que nem ele sabe, não gosta de mim. Ele prefere um tal de “pluralismo”, que consiste, segundo parece, na pessoa da sra. Maria Aparecida de Aquino. Esta senhora, que pensa igual a todo mundo, passou a escrever três vezes por mês, e eu uma. Não me pergunte que pluralismo é esse que diminui o espaço da opinião minoritária para aumentar o da majoritária. Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia.

Para fazer a mudança, o sr. Moreira mentiu três vezes, como S. Pedro, habilitando-se portanto ao Papado. Primeiro, disse que a mudança de semanal para mensal seria feita em todas as colunas. Foi feita só na minha. Segundo, escondeu dos leitores as 180 cartas de protesto contra o corte do meu espaço. Terceiro, escondeu-as de mim, deixando de me enviar suas cópias, como era de hábito na revista. Eu só soube delas porque os próprios remetentes as repassaram ao meu e-mail. As cartas enviadas só à revista, sem cópia para mim, permanecem ignoradas. O total das cartas, assim, provavelmente vai muito além de 180.

Como se isso não bastasse, o sr. Moreira investiu-se ainda das funções de censor, inconfundivelmente pontifícias, e cortou do meu primeiro artigo mensal uma frase que ele, por motivos que só a ele dizem respeito, julgou aplicar-se à sua pessoa: “O público não é idiota. Idiotas são certos diretores de redação que imaginam que, controlando uma revista, controlam a consciência do público.” Depois disso, apelidei-o definitivamente de Paulo Moleira.

Felizmente, a atitude do sr. Moleira não expressa o pensamento geral das Organizações Globo, que têm me tratado com a maior dignidade e cortesia. Minha coluna semanal em O Globo, aos sábados, continua saindo normalmente.

3)    Nas acaloradas controvérsias que seus artigos provocam, o senhor freqüentemente é acusado de pedante ou arrogante. O que o senhor diria aos que acham o seu estilo excessivamente agressivo?

Diria que são analfabetos funcionais. Não sabem distinguir entre a força de uma prova e a violência de uma agressão. Acuados pela prova, que tapa suas boquinhas, dizem-se agredidos, saem choramingando e batendo pezinho. É normal a esse tipo de mentalidade sentir todo apelo aos fatos como uma inaceitável imposição autoritária.

4)    Autores como Gore Vidal e Harold Bloom têm afirmado que vivemos em uma era pós-literária, e, mais ainda, que muito em breve os verdadeiros leitores irão compor uma irmandade marginal. Qual a sua percepção sobre o desaparecimento dos verdadeiros leitores?

Vidal e Bloom são dois pentelhos, mas, no caso, têm razão. O desaparecimento dos leitores segue-se ao dos escritores. Se vocês me permitem citar um artigo meu recentemente publicado, “O público ‘letrado’ já perdeu até mesmo a distinção entre um escritor e um sujeito qualquer que escreve qualquer coisa. Um escritor é membro de uma confraria artesanal milenar. Ele conhece os instrumentos expressivos criados por uma tradição que vem de Homero a Naipaul, e no que ele escreve se percebe, nas entrelinhas, o diálogo com seus parceiros de ofício, por cima das fronteiras de épocas. Um sujeito qualquer que escreve, mesmo que o faça direitinho, não dispõe senão dos instrumentos usuais da mídia — ele não dialoga senão com os tagarelas do momento: quando morrerem, sua escrita morrerá com eles. Essa distinção, que deveria ser a base da educação literária nas escolas, já se tornou imperceptível à média dos leitores ‘cultos’. Daí o fenômeno espantoso dos nomes mais cogitados para a última vaga aberta na Academia Brasileira. Não havia entre eles um único escritor: apenas sujeitos que escreviam direitinho. E ninguém notava a diferença.”

Mutatis mutandis, um leitor autêntico é, precisamente, o sujeito capaz de perceber essa diferença. E cadê esse leitor?

Uma das muitas causas do seu desaparecimento, no nosso país, é que a formação dos jovens leitores — e falo dos melhores — se faz sob uma influência predominantemente anglófona. Ninguém lê mais em francês, espanhol, italiano ou latim. Muito menos lê os clássicos portugueses. Como os princípios da estilística inglesa são intransponíveis para o português, esses leitores acabam perdendo o ouvido para o próprio idioma. Quando lêem, não captam as nuances de sentido nem a ordem musical. Quando escrevem, imitam trejeitos ingleses que não dão certo em português e terminam em pura macaquice. E não falo só de trejeitos lingüísticos, mas psicológicos — de certos cacoetes de percepção que são típicos da intelectualidade norte-americana.

5)    Por que o senhor interrompeu seus estudos sobre astrologia? E como desfazer o preconceito que há em torno dela?

Nos meus estudos de astrologia, cheguei a um impasse. Criei uma vasta estratégia metodológica para transformar o assunto em matéria de estudo científico, mas, uma vez erguido o arcabouço teórico, era impossível passar à fase da pesquisa empírica, que requeria muita gente, muito tempo e muito dinheiro. Então decidi abandonar o assunto até segunda ordem.

Não me preocupo com o preconceito contra a astrologia, porque a astrologia que se pratica hoje, inspirada pela ideologia da New Age, é ela própria um conjunto de preconceitos.

Não há debate sério entre os que dizem ser a astrologia uma ciência e os que respondem que é uma pseudociência. Ela não é nem uma coisa nem outra: é um problema científico, que aguarda um tratamento à altura. Não será com proclamações de fidelidade ou com anátemas acadêmicos que vamos resolver esse caso.

6)    Como conciliar individualismo e tradições religiosas?

O individualismo, em si, não tem sentido, porque a individualidade humana não é causa sui: ela depende de um quadro cultural e político que, justamente, só as tradições podem criar. Vocês podem averiguar, historicamente, que a consciência de individualidade humana, como a conhecemos hoje, esteve ausente em toda a humanidade anterior ao cristianismo. Um primeiro vislumbre surge na Grécia, mas só entre intelectuais (é o assunto do livro maravilhoso de Bruno Snell: A Descoberta do Espírito). Solta a si mesma, a individualidade se decompõe em fragmentos cada vez menores e se dissolve atomisticamente nas forças ambientes. O máximo de liberdade aparente conduz aí à total escravização. A reivindicação de total liberdade é uma reivindicação de poder total, é um paroxismo de auto-exaltação narcisista que termina em impotência, loucura e crime. Estudem a vida de William Burroughs, o ídolo da Beat Generation dos anos 50, que começou reivindicando a total liberdade, passou à prática contumaz da pedofilia e terminou estourando o cérebro da própria esposa numa brincadeira de Guilherme Tell com um revólver calibre 38.

Por outro lado, as tradições religiosas, na sua versão mais popular, às vezes procuram controlar pela imposição forçada de padrões de conduta certas situações complexas que as próprias autoridades religiosas não compreendem. Ora, o primeiro dever da autoridade religiosa é magisterial, é ensinar. Como obedecer a um guru que não compreende nossa situação nem a dele próprio?

A obrigação do indivíduo é reconhecer que sua individualidade não é um absoluto metafísico, mas um dom recebido das tradições. A obrigação dos representantes das tradições é aquela que Jesus assim formulou: “Não coloqueis sobre as costas dos outros um fardo que vós mesmos não podeis carregar.” Acho que entre as necessidades autênticas do indivíduo e a pureza das tradições há uma via média que deve ser reencontrada a cada passo, na prática da vida. Nada substitui a sabedoria.

7)    O senhor é católico e critica duramente a Teologia da Libertação. Qual a sua impressão sobre a ala mais conservadora da igreja, do movimento de Renovação Carismática e do Padre Marcelo Rossi?

Vocês estão enganados. Renovação Carismática e Deus É Dez não são nenhuma ala conservadora da Igreja, mas apenas os substitutivos ad hoc criados pela mídia com base na total ignorância do que se passa na Igreja. Não creio que haja um movimento conservador na Igreja além da “Comunhão e Libertação” de D. Luigi Giussani. Os outros movimentos são apenas espuma na superfície — uma imagem caricatural do conservadorismo, muito conveniente aos que o odeiam.

Quanto à Teologia da Libertação, não é católica nem cristã nem mesmo num sentido remoto da palavra. É uma farsa comunista, e nada mais. Leiam o livro de Ricardo de La Cierva, Las Puertas del Infierno. La Historia de la Iglesia Jamás Contada, e saberão do que estou falando.

8)    O senhor é um crítico implacável da formação universitária no Brasil atual. Considerando que a vida acadêmica esteja contaminada pela filosofia de resultados políticos, que conselhos o senhor daria para quem esteja ingressando numa universidade?

Sair dela o quanto antes ou comprar uma máscara contra gases. Há na minha homepage um texto (“Crise da universidade ou eclipse da consciência?”, http://www.olavodecarvalho.org/textos/dines2.htm) em que explico o que é, essencialmente, uma universidade. Nenhuma das instituições que atualmente ostentam esse nome atende a essa definição. Não vejo o que se possa fazer com elas. Se vocês precisam delas para obter a autorização para a prática de um ofício, então têm de agüentá-las, mais ou menos como se agüenta um parente chato que não se pode assassinar.

9)    Sobre as eleições do próximo ano, o senhor concorda com a análise de que Lula esteja mais próximo da vitória do que das vezes anteriores? O que há de mais favorável à esquerda desta vez?

As eleições não são importantes. Em primeiro lugar, o esquema esquerdista de tomada do poder aposta basicamente na “guerra de posições”, na “ocupação de espaços” que vai dominando a mídia, o ensino, a burocracia administrativa, judiciária e policial. A eleição de um presidente é apenas o salvo-conduto para a esquerda dominante tirar a máscara e assumir nominalmente um poder que, na prática, já possui.

Em segundo lugar, o discurso dos candidatos anti-Lula é substancialmente o mesmo discurso da esquerda. Deste modo, vença quem vencer, a ideologia esquerdista sairá fortalecida. Parasitar o discurso alheio é a mais tola das táticas eleitorais: se você se elege, é como médium que incorpora o espírito do adversário.

Em terceiro lugar, FHC, orientado por Alain Touraine para uma “virada à esquerda”, deixou pronto para o seu sucessor todo um aparato fiscal, judiciário e policial que lhe permitirá estrangular rapidamente a liberdade econômica e, junto com ela, as demais liberdades. Tudo está montado para que o Brasil, um belo dia, acorde socialista sem nem saber o que é isso. Então haverá choro e ranger de dentes — como na Venezuela de Chavez –, mas será tarde para reclamar.

O que importa não é ganhar eleições. É organizar a resistência ao estrangulamento das liberdades, que, embora o público mais vasto não perceba, já é uma realidade hoje em dia.

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