I. O OLHO DIREITO, OU: SONETO PERPLEXO
A vitória do tolo é um mistério sacral
e já arranquei mil vezes meu olho direito,
mas na órbita vazia resplandece, igual,
a glória incompreensível do idiota perfeito.”Sim, sim; não, não” – mas o olho que não vê o que vê
diz sim ou não? Senhor, é a Ti que devo olhar
com o olho que não tenho, e ver o que ele crê
haver por trás do que, nas trevas, já não há?
Eu gostaria, sim, de poder extirpar,
junto com o olho, o mundo, mas não sei dizer
se essa sangrenta mágica vai funcionar:
tornar caolho o justo há de retificar
o mal que ele a si mesmo faz ao pretender
trocar o sim por não em vez de o declarar?
14 de fevereiro de 1997
II. AVISO DE COBRANÇA, OU: SONETO CALVINISTA
Quando eu for rico, ostentarei na pança
o emblema da fé bíblica, belíssimo,
provando que não sou o que tu pensas,
e sim aquele a quem se chama “O Próximo”.Como a mim mesmo me amarei, deixando
a ti o encargo do louvor devoto,
que há de me confirmar, a cada instante,
que politicamente sou correto.
Como um cão tu andarás por onde eu ande,
dizendo lá ao teu Deus que, não sei quando,
te fiz um bem do qual já não te lembras
mas que Ele bem conhece, pois nas sombras
onde crês abrigar-te, me esquecendo,
há um boleto bancário te esperando.
14 de fevereiro de 1997
III. ADEUS, OU: SONETO DO DEFUNTO BRASILEIRO
— Tendo a terra por único ornamento,
que mau defunto é aquele que, sem nome,
baixa ao fundo mais vil do esquecimento?
Morreu de bala, de velhice ou fome?— O sino que de longe estais ouvindo
redobra só por quem ninguém conhece,
porque não era ninguém, morreu dormindo
e era o tipo que em vida já se esquece.
— Deixou viúva, filhos, testamento?
— Não tinha a quem deixar, e não deixou.
— Pois há de emudecer sob o cimento
sem sequer um adeus de quem ficou?
— Já lhe foi dito adeus quando nasceu
e não adianta falar com quem morreu.
1 de outubro de 1997