Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 3 de setembro de 2010
Já tendo demonstrado que Vladimir Safatle possui a quota de burrice requerida para o preenchimento do cargo de professor de filosofia na USP (v. “Cabeça de uspiano” em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090618dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/090623dc.html), não me espanta que ele agora apareça clamando pela implantação de um regime totalitário no Brasil, nem muito menos que o faça com o ar inocente de quem defendesse, com isso, a mais pura normalidade democrática.
Não o acuso de ser fingido, hipócrita, manipulador. Ele não usa da língua dupla orwelliana para nos enganar. Ao contrário, ele deixou-se introxicar de doublespeak ao ponto de que, em vez de usá-la, é usado por ela, ecoando, com a inimputabilidade mecânica de um boneco de ventríloquo, o que quer que ela lhe instile na caixa craniana. Não imaginem portanto que ele tente nos vender, maquiavelicamente, o totalitarismo com o nome de democracia. Não! Ele acredita mesmo, com pia sinceridade, que totalitarismo é democracia, democracia é totalitarismo. Almas caridosas podem nutrir a esperança de que um dia ele venha a tornar-se capaz de distinguir ao menos um pouquinho essas duas coisas, mas para tanto ele necessitará de umas mil reencarnações, e eu não acredito em reencarnação. Safatleza não tem cura.
Em artigo recém-publicado na Folha (onde mais poderia ser?), ele critica os candidatos do PSDB por terem se permitido, na campanha eleitoral, dizer duas ou três coisas que estão um tanto à direita da linha oficial petista. O partido de José Serra e Índio da Costa, proclama o referido, “só teria alguma chance se tivesse ensaiado uma reorientação programática a partir de um discurso mais voltado à esquerda”.
Com toda a evidência, a democracia dos sonhos do prof. Safatle consiste na livre concorrência entre vários partidos iguais ao PT. Insisto: não creio que ele tenha o intuito de ludibriar a platéia ao usar a palavra “democracia” para designar o que é, em substância, um totalitarismo mal e porcamente camuflado – o regime de um partido único com nomes diversos. Ao contrário, ele acha mesmo que democracia é isso e nunca lhe ocorreu nem ocorrerá que possa ser outra coisa, tão funda, natural e espontânea é a sua crença de que à direita da esquerda só existe o inferno. E na cabeça dele – há indícios de que possui uma –, essa crença não é nem um pouco maniqueísta, pois maniqueísmo é coisa da direita, não é?
Eu sempre disse que o PT não era um partido normal, que aceitasse o rodízio de poder com outros partidos de direita ou de esquerda. O PT, repito há duas décadas, é um partido revolucionário, totalitário, firmemente decidido a banir da vida política tudo o que não seja ele próprio ou igual a ele próprio. O fato de que venha realizando esse programa com discrição homeopática e obstinada lentidão, em vez de fazê-lo aos gritos e estampidos como o partido governante da Venezuela, só torna Lula diferente de Chávez desde o ponto de vista estético: cada um é feio a seu modo. Lula é até um pouco mais, porque à força de facadas anestésicas logrou persuadir a direita a deixar-se morrer sem dizer um “ai”, ao passo que sua equivalente venezuelana não só continua gemendo mas de vez em quando arranca uns gemidos do próprio Chávez. O prof. Safatle sente-se inconformado de que a uniformização esquerdista do cenário eleitoral brasileiro não tenha alcançado aquele cume de perfeição em que nenhuma ínfima partícula de direitismo residual pode aparecer nem mesmo por equívoco, nem mesmo por lapso de atenção da parte de esquerdistas leais.
Tanto é assim que, ao chamar de “errática” a campanha de José Serra, assinalando a incoerência entre a denúncia das ligações PT-Farc e os elogios concomitantes – até exagerados – do candidato oposicionista à pessoa do sr. Presidente da República, em qual dessas atitudes vê ele um erro imperdoável? Em acusar o criminoso com provas factuais sobrantes ou em louvá-lo com base na mera opinião pessoal? Adivinhem. No entender do prof. Safatle, o sr. Serra, para ser um candidato sério, honesto, consistente, deveria, ao falar de Lula, ocultar os fatos desabonadores que conhece e mencionar somente as belas qualidades que imagina. O sr. Serra só mereceria o respeito do Prof. Safatle caso resistisse à tentação da sinceridade e se ativesse ao nobre exercício de um coerente puxa-saquismo.
Esse raciocínio não é nada estranho, no fundo. Um sujeito que concebe a democracia como eliminação de toda oposição ideológica só pode mesmo chamar de honestidade e seriedade aquilo que o restante da espécie humana entende por leviandade, vigarice e hipocrisia.
Quando digo que a mentalidade revolucionária enxerga tudo invertido, é disso que estou falando. O prof. Safatle exemplifica-o com aquela candura perversa de quem conserva a consciência limpa porque não tem nenhum contato com ela.