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Bode expiatório – II

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de outubro de 2011

Falando em Era Lula, também não faz sentido louvar o governo petista por ampliar a participação popular no mercado interno (à custa, diga-se em passant, de um endividamento nacional suicida) e ao mesmo tempo reclamar contra a avidez com que os novos consumidores se lançam à conquista de bens a que antes não tinham acesso. Ninguém sai comprando tudo quanto é bugiganga eletrônica só para se vingar de uma ditadura da qual mal ouviu falar.

Aliás, no tempo dos militares ocorreu ascensão social idêntica (o então chamado “milagre brasileiro”), resultando em idêntica febre de consumo. Mas, na ocasião, os porta-vozes da esquerda não se lembraram de festejar a inclusão social maciça que isso representava (maior, proporcionalmente, do que tudo o que os tão badalados programas sociais do governo Lula viriam a realizar). Ao contrário: concentraram suas baterias no ataque moralista ao “consumismo”, como se fosse causa sui e não efeito da melhor distribuição de renda. Quando o mesmo fenômeno se repete em pleno apogeu do lulismo, como fazer para louvar a distribuição de renda sem culpar o governo pelo consumismo resultante? É fácil: desvincule a causa do efeito e debite este último na conta de um governo de trinta anos atrás. Se isso é sociologia, eu sou o José de Souza Martins em pessoa. E olhem que, dos sociólogos uspianos, ele não é o pior.

Até os exemplos que o emérito escolhe para ilustrar a maldade dos corações brasileiros são erros de perspectiva. Motoristas que atropelam pessoas e só tratam de evadir-se da punição legal, sem a mínima piedade pelas vítimas, são decerto tipos execráveis, mas sua insensibilidade é titica de galinha num país onde de quarenta a cinqüenta mil pessoas são assassinadas anualmente com a ajuda de organizações queridinhas do partido governante e não se ouve sequer um debate a respeito. Nossos “intelectuais” esbravejaram mais contra 25 mil baixas na guerra do Iraque do que contra violência mortífera duplamente maior que se comete contra seus próprios compatriotas a cada 365 dias. Será demasiado concluir que seu ódio aos EUA é infinitamente mais intenso que seu amor ao povo brasileiro? E por que raios uma geração de pessoas educadas nessa mentalidade deveria ser um primor de bons sentimentos?

O prof. Martins reclama: “Falta uma bolsa de valores sociais, que meça diariamente quanto perdemos de nós mesmos, de nossa dignidade, de nossa autoestima, da estima e do respeito pelo outro.” Tem razão, mas a medição diária é impossível sem uma escala constante do valor que se mede. Ao longo da história brasileira, essa escala foi uma só e a mesma, desde a chegada de Pedro Álvares Cabral até o advento da “Nova República”: o cristianismo.

O prof. Martins talvez acredite em moralidade sem religião, mas há de reconhecer que uma civilização integralmente “laica” (termo errado, mas usual) é uma hipótese futura, não uma realidade historicamente constatável. E, no caso brasileiro, nem toda a sociologia da USP somada pode ocultar a obviedade de que a manifesta descristianização da sociedade, da educação, da mídia e da cultura tem algo a ver com o aumento da violência, da crueldade, do egoísmo e da insensibilidade.

Para fugir às suas responsabilidades históricas, os “intelectuais” tapam os olhos até às conseqüências mais óbvias e patentes das escolhas a que se entregam com todo o furor entusiástico da paixão militante. Numa época em que a mera fantasia sexual é considerada oficialmente mais valiosa, mais digna, mais merecedora da proteção estatal do que o sentimento religioso da população, é ridículo esperar que o senso dos valores não acabe se dissolvendo numa névoa turbulenta e a confusão resultante não se traduza em atos de maldade cotidiana cada vez mais aceitos como normais e improblemáticos. E não é preciso nenhuma bolsa de valores para saber de onde vem a perda: o Brasil que escandaliza os sentimentos do prof. Martins é criação exclusiva da sua geração de “intelectuais”. Qualquer reclamação que venha dessa fonte é mera camuflagem de culpas, é mero sacrifício ritual de um bode expiatório prêt-à-porter.

A culpa dos outros: Cabeça de uspiano – 2

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de junho de 2009

Deixando de lado agora a referência lacaniana e examinando a contribuição pessoal do prof. Safatle ao entendimento dessas pérfidas astúcias do “capitalismo tardio”, observo, desde logo, que não é metodologicamente admissível atribuir ações de transformação social a entidades genéricas abstratas sem ter na mínima conta os agentes individuais e grupais concretos envolvidos no processo. O autor da transformação assinalada pelo prof. Safatle não é “o capitalismo tardio”, mas sim a classe publicitária. Foram publicitários – e não uma assembléia de acionistas, muito menos o “espírito do capitalismo”, diretamente ou em ectoplasma – que escolheram as novas imagens de gente com cara chupada, olheiras e barba por fazer que se substituíram aos saudáveis papais e mamães e às beldades esfuziantes dos anos 60. Para saber por que um grupo social fez isto ou aquilo, é preciso investigar suas idéias e crenças dominantes. Por que os publicitários mudaram assim o teor das imagens? Que tipo de idéias esses profissionais adquiriram nas faculdades de comunicações? Teriam sido suas mentalidades moldadas segundo a lógica dos “novos processos de mercantilização” ou segundo os cânones da crítica cultural, da destruição lacaniana do corpo? Emergiram eles dos bancos escolares imbuídos da “lógica do lucro” ou do ódio revolucionário à sociedade, à cultura, a tudo quanto existe? O prof. Safatle deveria conhecer melhor seus próprios alunos. Se há uma coisa óbvia neste mundo é que poucas classes odeiam o capitalismo tanto quanto o proletariado elegante da indústria cultural. Então, das duas uma: ou esses infelizes foram obrigados por astutos patrões a abdicar da pureza da sua crítica e a transformá-la em instrumento de dominação capitalista, ou, ao contrário, a mudança assinalada pelo prof. Safatle reflete exatamente o oposto do que ele diz – em vez da malícia capitalista que instrumentaliza a destruição, é a destruição que se apodera dos instrumentos da cultura de massas para impor-se como padrão dominante a toda sociedade.

Aqui observa-se o mesmo fenômeno de delírio autoprojetivo que já assinalei em Pierre Bourdieu (v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/090204dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/090212dc.html): para que os capitalistas dominassem hegemonicamente a crítica cultural ao ponto de poder neutralizá-la por uma estratégia como a sugerida pelo prof. Safatle, seria preciso que, em cima da classe dos revoltados produtores culturais, houvesse uma outra classe intelectual mais esperta ainda que, a serviço do capitalismo, escravizasse sutilmente essas pobres vítimas, obrigando-as a trabalhar pelo contrário do que desejam, fomentando a economia em vez da destruição. Para isso, seria necessário que esta classe de super-intelectuais tomasse a totalidade da crítica cultural como objeto de análise, produzindo uma bibliografia científica pelo menos tão vasta quanto ela mesma, acrescida de complexos planos estratégicos para o seu aproveitamento inverso. Em vão o prof. Safatle procurará na bibliografia acadêmica ou em qualquer outra parte do universo os sinais de estudos dessa natureza. Essa coisa simplesmente não existe. O que existe, sim, é uma biblioteca mastodôntica de “estudos culturais” com ataques furibundos à cultura do capitalismo – e, evidentemente, aos estereótipos mercantis de beleza corporal. Então, das duas uma: ou o gênio maligno do capitalismo produziu toda essa estratégia e a colocou em ação de maneira totalmente imaterial e invisível, por meios telepáticos, sem precisar de estudos, de análises, de planejamentos estratégicos ou de qualquer outro recurso usual nas ações sociais, ou então o fenômeno de mercantilização da revolta tal como o prof. Safatle o descreve simplesmente não aconteceu.

O que aconteceu, em vez disso, foi que milhares ou milhões de estudantes universitários intoxicados de crítica cultural, de frankfurtismo e de lacanismo saíram da faculdade, ocuparam os postos altos e baixos da indústria publicitária e aí injetaram sua ideologia da destruição. O próprio prof. Safatle, embora não seja profissionalmente um homem de publicidade, é um estudioso da área e portanto faz parte dessa classe. Ele mesmo foi um dos agentes do processo. Não é a imagem do corpo que é sempre dos outros: é a culpa pelas ações dos intelectuais enragés.

A pretensa análise que o prof. Safatle faz das transformações da publicidade é um exemplo claro de paralaxe cognitiva – deslocamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real – levada ao extremo da inversão total de sujeito e objeto, na qual uma classe agente e militante atribui suas próprias ações mais óbvias à autoria da entidade genérica e abstrata que ela imagina combater: o “capitalismo tardio”.

Como é exatamente a prática reiterada e obsessiva dessa inversão que o prof. Safatle ensina a seus alunos na USP, não espanta que, quando eles se põem a quebrar tudo e a atemorizar seus colegas, ele os veja como empenhados na mais alta e nobre das ocupações humanas, sem declarar – já que está escrevendo para um público de fora do grêmio – que essa ocupação é simplesmente… a destruição. Quem quer que tente impedi-los de entregar-se a essa mimosa atividade é um agente da opressão capitalista, com o agravante de nem mesmo praticá-la com a astúcia maquiavélica dos instrumentalizadores da crítica cultural, mas sim com abominável “brutalidade securitária”, porca miséria. Com exceções que desconheço se existem, o que os professores de filosofia e ciências humanas fazem na USP é simplesmente moldar as cabeças dos alunos segundo o padrão da sua própria alienação da realidade, do próprio divórcio entre suas pomposas construções verbais e sua existência concreta de sujeitos agentes. Isso não é de maneira alguma uma atividade respeitável: é uma sem-vergonhice patética.

Inversão psicótica: Cabeça de uspiano – 1

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de junho de 2009

Os exemplos da inversão psicótica de sujeito e objeto são tão abundantes na produção escrita da intelectualidade revolucionária, que a única dificuldade para encontrá-los é o embarras de choix. O caso que vou comentar aqui é interessante porque ilustra esse mecanismo em dois níveis ao mesmo tempo: na reação de um professor de filosofia aos acontecimentos imediatos e na sua análise de transformações sociais mais duráveis e profundas.

Quando os alunos da USP, pela milésima vez, ocuparam o prédio da instituição, depredando o que podiam e intimidando seus colegas e professores para que interrompessem as aulas e aderissem ao quebra-quebra – ações que a profª. Olgária Matos, muito significativamente, definiu como “manifestação pacífica” –, outro professor da Faculdade de Filosofia, Vladimir Safatle, protestou contra a intervenção policial que pôs fim ao ataque, rotulando-a de “brutalidade securitária”. Se com isso ele não provou nada em favor dos manifestantes, ao menos demonstrou não saber distinguir, na escolha do seu vocabulário, entre a segurança pública e a indústria de seguros. Depois dessa performance literária quase presidencial, ele ainda se julgou habilitado a avaliar o desempenho intelectual dos estudantes, jurando que não eram simples arruaceiros, mas alunos aplicados, empenhados em altas tarefas científicas. Tendo examinado alguns trabalhos acadêmicos do referido, concluí que ele tem toda a razão ao qualificar de bons alunos os depredadores, pois correspondem às expectativas do mestre.

A título de amostra, examinemos o estudo “Certas Metamorfoses da Sedução: Destruição e Reconfiguração do Corpo na Publicidade Mundial dos Anos 90”, reproduzido no site do autor, http://www.geocities.com/vladimirsafatle/, entre outras efusões do seu – como direi? – intelecto. Sem exigir-lhe cobardemente uma filosofia, coisa que nenhum membro do seu departamento jamais teve e que é totalmente dispensável para ali ser havido como filósofo, vejamos como o professor se sai na numa área bem mais modesta do conhecimento, a sociologia da publicidade,

Ele começa por observar que, no período mencionado, a imagem do corpo humano nos anúncios publicitários mudou muito. Em vez do corpo como imagem estável e positiva da pessoa, apareciam agora duas novidades: de um lado, o corpo como entidade fluida e mutável, sujeita a toda sorte de alterações (piercings, pinturas extravagantes e até mutilações); de outro, o corpo como imagem da sua própria destruição – pessoas desalinhadas, mulheres pálidas com roupas de luto, homens com aparência de doentes, de cocainômanos, de aidéticos, de moribundos e até de cadáveres. Para dizer isso, ele leva mais de dez páginas, naquele estilo posado, tipicamente uspiano, com razoável dose de erros de gramática e farto uso de uma terminologia forçada que deve lhe parecer muito científica. E olhem que Safatle é uma das criaturas mais inteligentes que já passaram por aquela subseção do Instituto Butantã. Mas o interessante vem quando ele passa a explicar as causas do fenômeno. Para ele, a destruição do corpo na publicidade reflete um astuto mecanismo da lógica do mercado que, vendo esgotado o potencial das imagens estereotipadas de beleza e integridade corporal usuais nos anos 60, decidiu incorporar os elementos de rebelião e inconformismo, de modo a neutralizá-los mediante “rupturas internas controladas” e colocá-los a serviço de “novos processos de mercantilização da negatividade”.

Para chegar a essa conclusão, ele confessa que usou métodos lacanianos de investigação, segundo os quais a imagem corporal de cada um é construída por introjeção de padrões estereotipados vindos do exterior, da maldita sociedade. “Isto significa fundamentalmente que a experiência de produzir uma imagem corporal é alienação de si no sentido de submissão da referência-a-si à referência-a-outro…” (frase maravilhosa na qual eu mesmo, fazendo-me de co-autor, tive de colocar a crase para que se tornasse inteligível). “Não há – prossegue Safatle – nada de próprio na imagem do corpo. Lacan dirá que o corpo próprio, na verdade, é corpo do Outro.” Quando a repetição das imagens corporais positivas “transformou a publicidade em alvo maior da crítica à ideologia da sociedade de massa,… esta crítica foi logo assumida pela própria publicidade. Tratava-se de uma publicidade que ridicularizava a própria publicidade e certos aspectos da cultura de consumo…”.

Os dois elementos em jogo são aí a cultura de massas do “capitalismo tardio”, com sua estereotipagem positiva das imagens corporais, e a crítica cultural que se volta contra esses estereótipos com um radicalismo que, seguindo o exemplo de Lacan, não hesita em destruir a própria noção de corpo pessoal, acusada de ser uma camuflagem da dominação psíquica imposta pelo Outro ao infeliz morador do corpo. Dessa oposição resulta, segundo Safatle, a síntese que nos anos 90 absorve e instrumentaliza a destruição do corpo, transformando o que era inicialmente crítica cultural em “novos processos de mercantilização”.

Essa análise pode funcionar como exemplo daquilo que, na USP, passa como alta manifestação de inteligência e até como “trabalho científico”. Mas os conceitos lacanianos usados na análise já são, por si, exemplos claros de inversão psicótica. Dizer que a imagem do eu se forma por introjeção de padrões exteriores e que isto configura uma “alienação” é obviamente autocontraditório. Se a imagem do eu não existe antes da introjeção, não há nada que esta possa “alienar”. Ou a introjeção dos padrões exteriores é a própria origem da imagem, ou é a sua alienação: as duas coisas ao mesmo tempo ela não pode ser de maneira alguma, a não ser na hipótese de que exista um eu substancial metafísico anterior à sua própria construção como auto-imagem – hipótese que todo materialista como Lacan e Safatle tem de rejeitar in limine.

Partindo do princípio de que a imagem corporal é alienação, a única coisa decente que resta a fazer é destruí-la, evidentemente. Pode-se fazer isso com piercings, mutilações, ou com ataques lacanianos à sociedade malvada que impingiu ao sujeito aquilo que, no seu isolamento de menino-lobo, ele não poderia adquirir de maneira alguma: um eu. Mas destruir para quê? Para que da destruição da imagem estereotipada pudesse surgir um “verdadeiro eu”, seria preciso que este existisse antes e independentemente da introjeção, com o que voltamos à hipótese metafísica lacanianamente inaceitável. Mas, se a destruição não visa a desenterrar da massa dos estereótipos um impossível “eu autêntico”, então é claro que a destruição só tem como objetivo a própria destruição – um mecanismo que Hegel já previra com muita antecedência (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html). No legado da escola de Frankfurt, mais ainda quando enfeitado de lacanismo, a destruição é, com efeito, a única ocupação decente a que, no inferno geral do “capitalismo tardio”, se podem entregar as pessoas boas e inteligentes como o prof. Vladimir Safatle e seus aplicados alunos da USP. O que o professor não suporta é que tão boas intenções tenham sido maquiavelicamente absorvidas e instrumentalizadas pelo “capitalismo tardio” e transformadas em meios de incentivar o consumo, aumentar a produção e espalhar riquezas. Isso é mesmo um insulto intolerável.

[Continua.]

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