Posts Tagged Teologia da Libertação

Um cadáver no poder (II)

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 29 de janeiro de 2015

 

Volto à análise da Teologia da Libertação.
Se a coisa e até o nome que a designa vieram prontos da KGB, isso não quer dizer que seus pais adotivos, Gutierrez, Boff e Frei Betto, não tenham tido nenhum mérito na sua disseminação pelo mundo. Ao contrário, eles desempenharam um papel crucial nas vitórias da TL e no mistério da sua longa sobrevivência.

Os três, mas principalmente os dois brasileiros, atuaram sempre e simultaneamente em dois planos. De um lado, produzindo artificiosas argumentações teológicas para uso do clero, dos intelectuais e da Cúria romana. De outro lado, espalhando sermões e discursos populares e devotando-se intensamente à criação da rede de militância que se notabilizaria com o nome de “comunidades eclesiais de base” e viria a constituir a semente do Partido dos Trabalhadores. “Base” é aliás o termo técnico usado tradicionalmente nos partidos comunistas para designar a militância, distinguindo-a dos líderes. Sua adoção pela TL não foi mera coincidência. Quando os pastores se transformaram em comissários políticos, o rebanho tinha mesmo de tornar-se “base”.

No seu livro E a Igreja se Fez Povo, de 1988, Boff confessa que foi tudo um “plano ousado”, concebido segundo as linhas da estratégia da lenta e sutil “ocupação de espaços” preconizada pelo fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Tratava-se de ir preenchendo aos poucos todos os postos decisivos nos seminários e nas universidades leigas, nas ordens religiosas, na mídia católica e na hierarquia eclesiástica, sem muito alarde, até chegar a época em que a grande revolução pudesse exibir-se a céu aberto.
Logo após o conclave que o elegeu, em 1978, o papa João Paulo I teve um encontro com vinte cardeais latino-americanos e ficou muito impressionado com o fato de que a maioria deles apoiava ostensivamente a Teologia da Libertação. Informaram-lhe, na ocasião, que já havia mais de cem mil “comunidades eclesiais de base” disseminando a propaganda revolucionária na América Latina. Até então, João Paulo I conhecia a TL apenas como especulação teórica. Nem de longe imaginava que ela pudesse ter se transformado numa força política de tais dimensões.

Em 1984, quando o cardeal Ratzinger começou a desmontar os argumentos teóricos da “Teologia da Libertação”, já fazia quatro anos que as “comunidades eclesiais de base” tinham se transfigurado num partido de massas, o Partido dos Trabalhadores, cuja militância ignora maciçamente quaisquer especulações teológicas, mas jura que Jesus Cristo era socialista porque assim dizem os líderes do partido.

Dito de outro modo, a pretensa argumentação teológica já tinha cumprido o seu papel de alimentar discussões e minar a autoridade da Igreja, e fora substituída, funcionalmente, pela pregação aberta do socialismo, onde o esforço aparentemente erudito de aproximar cristianismo e marxismo cedia o passo ao manejo de chavões baratos e jogos de palavras nos quais a militância não procurava nem encontrava uma argumentação racional, mas apenas os símbolos que expressavam e reforçavam a sua unidade grupal e o seu espírito de luta.
O sucesso deste segundo empreendimento foi proporcional ao fracasso do trio na esfera propriamente teológica. É possível que na Europa ou nos EUA um formador de opinião com pretensões de liderança não sobreviva à sua desmoralização intelectual, mas na América Latina, e especialmente no Brasil, a massa militante está a léguas de distância de qualquer preocupação intelectual e continuará dando credibilidade ao seu líder enquanto este dispuser de um suporte político-partidário suficiente.

No caso de Boff e Betto, esse suporte foi nada menos que formidável. Fracassadas as guerrilhas espalhadas em todo o continente pela OLAS, Organización Latino-Americana de Solidariedad, fundada por Fidel Castro em 1966, a militância se refugiou maciçamente nas organizações da esquerda não-militar, que iam colocando em prática as ideias de Antonio Gramsci sobre a “ocupação de espaços” e a “revolução cultural”. A estratégia de Gramsci usava a infiltração maciça de agentes comunistas em todos os órgãos da sociedade civil, especialmente ensino e mídia, para disseminar propostas comunistas pontuais, isoladas, sem rótulo de comunismo, de modo a obter pouco a pouco um efeito de conjunto no qual ninguém visse nada de propaganda comunista, mas no qual o Partido, ou organização equivalente, acabasse controlando mentalmente a sociedade com “o poder invisível e onipresente de um mandamento divino, de um imperativo categórico” (sic).

Nenhum instrumento se prestava melhor a esse fim do que as “comunidades eclesiais de base”, onde as propostas comunistas podiam ser vendidas com o rótulo de cristianismo. No Brasil, o crescimento avassalador dessas organizações resultou, em 1980, na fundação do Partido dos Trabalhadores, que se apresentou inicialmente como um inocente movimento sindicalista da esquerda cristã e só aos poucos foi revelando os seus vínculos profundos com o governo de Cuba e com várias organizações de guerrilheiros e narcotraficantes. O líder maior do Partido, Luís Inácio “Lula” da Silva, sempre reconheceu Boff e Betto como mentores da organização e dele próprio.

Nascido no bojo do comunismo latino-americano por intermédio das “comunidades eclesiais de base”, o Partido não demoraria a devolver o favor recebido, fundando, em 1990, uma entidade sob a denominação gramscianamente anódina de “Foro de São Paulo”, destinada a unificar as várias correntes de esquerda e a tornar-se o centro de comando estratégico do movimento comunista no continente.

Segundo depoimento do próprio Frei Betto, a decisão de criar o Foro de São Paulo foi tomada numa reunião entre ele, Lula e Fidel Castro, em Havana. Durante dezessete anos o Foro cresceu em segredo, chegando a reunir aproximadamente duzentas organizações filiadas, misturando partidos legalmente constituídos, grupos de sequestradores como o MIR chileno e quadrilhas de narcotraficantes como as Farc, que juravam nada ter com o tráfico de drogas mas então já costumavam trocar anualmente duzentas toneladas de cocaína colombiana por armas contrabandeadas do Líbano pelo traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar.

Quando Lula foi eleito presidente do Brasil, em 2002, o Foro de São Paulo já havia se tornado a maior e mais poderosa organização política em ação no território latino-americano em qualquer época, mas sua existência era totalmente desconhecida pela população e, quando denunciada por algum investigador, cinicamente negada. O bloqueio chegou ao seu ponto mais intenso quando, em 2005, o sr. Lula, já presidente do Brasil, confessou em detalhes a existência e as atividades do Foro de São Paulo. O discurso foi publicado na página oficial da Presidência da República, mas mesmo assim a grande mídia em peso insistiu em fingir que não sabia de nada.

Por fim, em 2007, o próprio Partido dos Trabalhadores, sentindo que o manto de segredo protetivo já não era necessário, passou a alardear aos quatro ventos os feitos do Foro de São Paulo, como se fossem coisa banal e arqui-sabida. Somente aí os jornais admitiram falar do assunto.

Por que o segredo podia agora ser revelado? Porque, no Brasil, toda oposição ideológica tinha sido eliminada, restando apenas sob o nome de “política” as disputas de cargos e as acusações de corrupção vindas de dentro da própria esquerda; ao passo que, na escala continental, os partidos membros do Foro de São Paulo já dominavam doze países. As “comunidades eclesiais de base” haviam chegado ao poder. Quem, a essa altura, iria se preocupar com discussões teológicas ou com objeções etéreas feitas vinte anos antes por um cardeal que levara a sério o sentido literal dos textos e mal chegara a arranhar a superfície política do problema?

Nos doze anos em que permaneceu no poder, o PT expulsou do cenário toda oposição conservadora, partilhando o espaço político com alguns aliados mais enragés e com uma branda oposição de centro-esquerda, e governou mediante compras de consciências, assassinatos de inconvenientes e a apropriação sistemática de verbas de empresas estatais para financiar o crescimento do partido.

A escalada da cleptocracia culminou no episódio da Petrobrás, onde o desvio subiu à escala dos trilhões de reais, configurando, segundo a mídia internacional, o maior caso de corrupção empresarial de todos os tempos. Essa sucessão de escândalos provocou algum mal-estar na própria esquerda e constantes reclamações na mídia, levando a intelligentsia petista a mobilizar-se em massa para defender o partido. Há mais de uma década os srs. Betto e Boff estão ocupados com essa atividade, na qual a teologia só entra como eventual fornecedora de figuras de linguagem para adornar a propaganda partidária. A TL havia assumido, finalmente, sua mais profunda vocação.

Quem quer que leia os escritos de Gutierrez, Boff e Betto descobre facilmente as suas múltiplas inconsistências e contradições. Elas revelam que esse material não resultou de nenhum esforço teorizante muito sério, mas do mero intuito de manter os teólogos de Roma ocupados em complexas refutações teológicas enquanto a rede militante se espalhava por toda a América Latina, atingindo sobretudo populações pobres desprovidas de qualquer interesse ou capacidade de acompanhar essas altas discussões.
Os boiadeiros chamam isso de “boi-de-piranha”: jogam um boi no rio para que os peixes carnívoros fiquem ocupados em devorá-lo, enquanto uns metros mais adiante a boiada atravessa as aguas em segurança.

Intelectualmente e teologicamente, a TL está morta há três décadas. Mas ela nunca foi um movimento intelectual e teológico. Foi e é um movimento político adornado por pretextos teológicos artificiosos e de uma leviandade sem par, lançados nas águas de Roma a título de “boi de piranha”. A boiada passou, dominou o território e não existem piranhas de terra firme que possam ameaçá-la.

Sim, a TL está morta, mas o seu cadáver, elevado ao posto mais alto da hierarquia de comando, pesa sobre todo um continente, oprimindo-o, sufocando-o e travando todos os seus movimentos. A América Latina é hoje governada por um defunto.

Um cadáver no poder (I)

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 15 de janeiro de 2015

 

Por que ainda há quem siga a Teologia da Libertação? Aparentemente nenhuma pessoa razoável deveria fazer isso. Do ponto de vista teológico, a  doutrina que o peruano Gustavo Gutierrez e o brasileiro Leonardo Boff espalharam pelo mundo já foi demolida em 1984 pelo então cardeal Joseph Ratzinger (“Liberation Theology”, 1984),  dois anos depois de condenada pelo Papa João Paulo II (v. Quentin L. Quade, ed., The Pope and Revolution: John Paul II Confronts Liberation Theology. Washington, D.C., Ethics and Public Policy Center, 1982). Em 1994 o teólogo Edward Lynch afirmava que ela já tinha se reduzido a uma mera curiosidade intelectual (“The retreat of Liberation Theology”, The Homiletic & Pastoral Review). Em 1996 o historiador espanhol Ricardo de la Cierva, que ninguém diria mal informado, dava-a por morta e enterrada (v. La Hoz y la Cruz. Auge y Caída del Marxismo y la Teología de la Liberación, Toledo, Fénix, 1996.)
Uma década e meia depois, ela é praticamente doutrina oficial em doze países da América Latina. Que foi que aconteceu? Tal é a pergunta que me faz um grupo de eminentes católicos americanos e que, com certeza, interessa também aos leitores brasileiros.
Para respondê-la é preciso analisar a questão sob três ângulos:
(1) A TL é uma doutrina católica influenciada por idéias marxistas ou é apenas um ardil comunista camuflado em linguagem católica?
(2) Como se articulam entre si a TL enquanto discurso teórico e a TL enquanto organização política militante?
(3) Respondidas essas duas perguntas pode-se então apreender a TL como fenômeno preciso e descrever a especial forma mentis dos seus teóricos por meio da análise estilística dos seus escritos.

À primeira pergunta tanto o prof. Lynch quanto o cardeal Ratzinger, bem como inumeráveis outros autores católicos (por exemplo, Hubert Lepargneur, A Teologia da Libertação. Uma Avaliação, São Paulo, Convívio, 1979, ou Sobral Pinto, Teologia da Libertação. O Materialismo Marxista na Teologia Espiritualista, Rio, Lidador, 1984), dão respostas notavelmente uniformes: partindo do princípio de que a TL se apresenta como doutrina católica, passam a examiná-la sob esse aspecto, louvando suas possíveis intenções justiceiras e humanitárias mas concluindo que, em essência, ela é incompatível com a doutrina tradicional da Igreja, e portanto herética em sentido estrito. Acrescentam a isso a denúncia de algumas contradições internas e a crítica das suas popostas sociais fundadas numa arqui desmoralizada economia marxista.
Daí partem para decretar a sua morte, assegurando, nos termos do prof. Lynch, que
“Embora ainda seja atraente para muitos estudiosos americanos e europeus, ela falhou naquilo que os liberacionistas sempre disseram ser a sua missão principal, a completa renovação do catolicismo latino-americano”.

Todo discurso ideológico revolucionário pode ser compreendido em pelo menos três níveis de significado, que é preciso primeiro distinguir pela análise e depois rearticular hierarquicamente conforme algum desses níveis se revele o mais decisivo na situação política concreta, subordinando os demais.

O primeiro é o nível descritivo, no qual ele apresenta um disgnóstico, descrição ou explicação da realidade ou uma interpretação de alguma doutrina anterior. Neste nível o discurso pode ser julgado pela sua veracidade, adequação ou fidelidade, seja aos fatos, seja ao estado dos conhecimentos disponíveis, seja à doutrina considerada. Quando o discurso traz uma proposta definida de ação, pode ser julgado pela viabilidade ou conveniência dessa ação.

O segundo é o da autodefinição ideológica, em que o teórico ou doutrinador expressa os símbolos nos quais o grupo interessado se reconhece e pelo qual ele distingue os de dentro e os de fora, os amigos e os inimigos. Neste nível ele pode ser julgado pela sua eficácia psicológica ou correspondência com as expectativas e anseios da platéia.

O terceiro é o da desinformação estratégica, que fornece falsas pistas para desorientar o adversário e desviar antecipadamente qualquer tentativa de bloquear a ação proposta ou de neutralizar outros efeitos visados pelo discurso.

No primeiro nível, o discurso dirige-se idealmente ao observador neutro, cuja adesão pretende ganhar pela persuasão. No segundo, ao adepto ou militante atual ou virtual, para reforçar sua adesão ao grupo e obter dele o máximo de colaboração possível. No terceiro, dirige-se ao adversário, ou alvo da operação.

Praticamente todas as críticas de intelectuais católicos à Teologia da Libertação limitaram-se a examiná-la no primeiro nível. Desmoralizaram-na intelectualmente, provaram o seu caráter de heresia e assinalaram nela os velhos vícios que tornam inviável e destrutiva toda proposta de remodelagem socialista da sociedade.
Se os mentores da TL fossem católicos sinceramente empenhados em “renovar o catolicismo latino-americano”, ainda que por meios contaminados de ideologia marxista, isso teria bastado para desativá-la por completo. Uma vez que esse tipo de análise crítica saiu das meras discussões intelectuais para tornar-se palavra oficial da Igreja, com o estudo do Cardeal Ratzinger em 1984, a TL podia considerar-se, sob esse ângulo, extinta e superada.

Leiam agora este depoimento do general Ion Mihai Pacepa, o oficial de mais alta patente da KGB que já desertou para o Ocidente, e começarão a entender por que a desmoralização intelectual e teológica não foi suficiente para dar cabo da TL (“Kremlin’s religious Crusade”, em Frontpage Magazine, junho de 2009,Lima: Centro de Estudios y Publicaciones). Em 1959, como chefe da espionagem romena na Alemanha Ocidental, o general Pacepa ouviu da própria boca de Nikita Kruschev: “Usaremos Cuba como trampolim para lançar uma religião concebida pela KGB na América Latina.”

O depoimento prossegue:
“Khrushchev nomeou ‘Teologia da Libertação’ a nova religião criada pela KGB. A inclinação dela para a ‘libertação’ foi herdada da KGB, que mais tarde criou a Organização para a ‘Libertação’ da Palestina (OLP), o Exército de ‘Libertação’ Nacional da Colômbia (ELN), e o Exército de ‘Libertação’ Nacional da Bolívia. A Romênia era um país latino, e Khrushchev queria nossa “visão latina” sobre sua nova guerra de “libertação” religiosa. Ele também nos queria para enviar alguns padres que eram cooptadores ou agentes disfarçados para a América Latina – queria ver como “nós” poderíamos tornar palatável para aquela parte do mundo a sua nova Teologia da Libertação.
“Naquele momento a KGB estava construindo uma nova organização religiosa internacional em Praga, chamada “Christian Peace Conference” (CPC), cujo objetivo seria espalhar a Teologia da Libertação pela América Latina.
“Em 1968, o CPC – criado pela KGB – foi capaz de dirigir um grupo de bispos esquerdistas sul-americanos na realização de uma Conferência de Bispos Latino-americanos em Medellín, na Colômbia. O propósito oficial da Conferência era superar a pobreza. O objetivo não declarado foi reconhecer um novo movimento religioso, que encorajasse o pobre a se rebelar contra a ‘violência da pobreza institucionalizada’, e recomendá-lo ao Conselho Mundial de Igrejas para aprovação oficial. A Conferência de Medellín fez as duas coisas. Também engoliu o nome de batismo dado pela KGB: ‘Teologia da Libertação.’”

Ou seja, em suas linhas essenciais, a idéia da TL veio pronta de Moscou três anos antes de que o jesuíta peruano Gustavo Gutierrez, com o livro Teología de la Liberación (Lima, Centro de Estudios y Publicaciones, 1971), se apresentasse como seu inventor original, decerto com a aprovação de seus verdadeiros criadores, que não tinham o menor interesse num reconhecimento público de paternidade. O tutor da criança, Leonardo Boff, entraria em cena ainda mais tarde, não antes de 1977. Até hoje as fontes populares, como por exemplo a Wikipedia, repetem como papagaios adestrados que o Pe. Gutierrez foi mesmo o gerador da coisa e o sr. Boff seu segundo pai.

Continuarei esta análise no próximo artigo.

Sem teologia nem libertação

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de janeiro de 2015

O estilo é o homem? Sim, e o é para o bem e para o mal. Para o bem, quando a análise revela, por trás das construções sintáticas e figuras de linguagem, a percepção viva de aspectos obscuros e dificilmente dizíveis da experiência humana, que assim emergem da nebulosidade hipnótica onde jaziam e se tornam objetos dóceis da meditação e da ação, transfigurando-se de fatores de escravidão em instrumentos da liberdade. Para o mal, quando nada mais se encontra por baixo da trama verbal senão o intuito perverso de construir uma “segunda realidade” à força de meras palavras, transportando o leitor do mundo real para um teatro de fantoches onde tudo e todos se movem sob as ordens do distinto autor, elevado assim às alturas de um pequeno demiurgo, criador de “outro mundo possível”.

Para demonstrá-lo, pedirei ao leitor a caridade de seguir até o fim esta exposição do sr. Leonardo Boff, conselheiro de governantes e, segundo se diz, até de um Papa, bem como, e sobretudo, porta-voz eminente de uma “teologia da libertação” onde não se encontra nenhuma teologia nem muito menos libertação:

“A pobreza não se restringe ao seu aspecto principal e dramático, aquele material, mas se desdobra em pobreza política pela exclusão da participação social, em pobreza cultural pela marginalização dos processos de produção dos bens simbólicos…

“A pauperização gera por sua vez a massificação dos seres humanos. O povo deixa de existir como aquele conjunto articulado de comunidades que elaboram sua consciência, conservam e aprofundam sua identidade, trabalham por um projeto coletivo e passa a ser um conglomerado de indivíduos desgarrados e desenraizados, um exército de mão-de-obra barata e manipulável consoante o projeto da acumulação ilimitada e desumana.

“Essa situação provoca um modelo político altamente autoritário… Somente mediante formas de governo autoritárias e ditatoriais se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que vêm da pobreza.”

O trecho é extraído do livro E a Igreja se Fez Povo (Círculo do Livro, 2011, p. 167). Tudo o que aí se descreve realmente aconteceu. São fatos, e fatos tão bem comprovados historicamente, que não teríamos como recusar ao sr. Boff um definitivo “Amém”, se não nos ocorresse a idéia horrível de perguntar: Aconteceu onde e quando?

O segundo parágrafo fala-nos de algo que aconteceu na Europa nas primeiras décadas do século XIX: massas de camponeses reduzidos à miséria pelo rateio dos seus parcos bens e obrigados a deixar suas terras para vir à cidade compor um “conglomerado de indivíduos desgarrados e desenraizados”,  reservatório de mão-de-obra barata para a prosperidade dos novos capitalistas. Karl Marx descreve em páginas que se tornaram clássicas a formação do proletariado urbano com os destroços do antigo campesinato, no começo da Revolução Industrial.

Mas justamente onde isso aconteceu não aconteceu nem pode ter acontecido o que se descreve no parágrafo anterior: a “pobreza política pela exclusão da participação social” e a “pobreza cultural pela marginalização dos processos de produção dos bens simbólicos”. Bem ao contrário, a vinda dos camponeses para as concentrações urbanas coincidiu com o advento das eleições gerais, não apenas convidando mas forçando a participação das massas numa política que lhes era totalmente desconhecida no tempo em que viviam no campo, isoladas dos grandes centros.

E coincidiu também com a criação da instrução escolar obrigatória, que extraía os filhos dos proletários das suas culturas locais provincianas para integrá-los na grande cultura urbana da razão, da ciência e da tecnologia, substancialmente a mesma cultura das classes altas, dos malditos capitalistas. Pode-se lamentar a dissolução das velhas culturas locais, mas ela não aconteceu pela exclusão e sim pela inclusão das massas na vida política e na cultura urbana.

A “exclusão da participação social” e a “marginalização dos processos de produção de bens simbólicos” aconteceram, sim, mas a centenas de milhares de quilômetros dali, em países da África, da Ásia e da América Latina que viriam a ser chamados de “Terceiro Mundo” justamente porque neles não houve Revolução Industrial nenhuma, nem portanto integração das massas, seja na política, seja na cultura urbana.

O sr. Boff cria a unidade fictícia de um espantalho  hediondo com recortes de processos históricos heterogêneos e incompatíveis, ocorridos em lugares enormemente distantes uns dos outros. A única realidade substantiva desse monstro de Frankenstein é o ódio que o sr. Boff desejaria instilar contra ele na alma do leitor.

Mas a fisionomia do monstro não estaria completa sem uma terceira peça, que o sr. Boff vai buscar em outro lugar ainda:
“Esta situação, diz ele, provoca um modelo político altamente autoritário… Somente mediante formas de governo autoritárias e ditatoriais se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que vêm da pobreza.”
Descontemos a imprecisão vocabular — “provocam” em vez de “produzem” – e a sintaxe subginasiana: “esta” em vez de “essa” e “se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos” em vez de “se pode produzir um mínimo de coesão e abafar os gritos”. Vamos direto aos ponto essencial: é verdade que para controlar as massas esfomeadas surgiram governos autoritários, mas não na Europa da Revolução Industrial nem nos EUA da mesma época, onde justamente iam triunfando as instituições democráticas junto com o capitalismo nascente, e sim, bem ao contrário, em países subdesenvolvidos (ou empobrecidos pela guerra), que, invejando a prosperidade das nações industrializadas, mas não dispondo de uma classe capitalista pujante e criativa, resolveram industrializar-se às pressas e à força  por via burocrática, desde cima, por meio do investimento estatal maciço e da economia planificada. Foi essa a fórmula econômica da Alemanha nazista, da Itália fascista e, obviamente, a de todas as nações socialistas queridinhas do sr. Boff. Foi também, pelas mesmíssimas razões, e embora em menor grau, a da ditadura Vargas e a do governo militar brasileiro.

Em suma, se fosse possível juntar o que há de mau nos países mais distantes, nos tempos mais diversos e nos regimes mais heterogêneos, teríamos aí o monstro ideal contra o qual o sr. Boff  deseja voltar a ira da platéia. O sr. Boff aposta na possibilidade de que o leitor não repare na superposição postiça de recortes e, impressionado pela soma de maldades, acredite piamente estar vivendo entre as garras do monstro, tirando daí a conclusão lógica de que deve deixar-se libertar pelo sr. Boff.
Nisso, e em nada mais, consiste a “teologia da libertação”. A técnica da superposição é, a rigor, o único procedimento estilístico e dialético do sr. Boff e o resumo quintessencial do seu, digamos, pensamento. Podemos encontrá-la, praticamente, em cada página da sua autoria, onde em vão procuraremos outra coisa.

Já poucas linhas adiante temos outro exemplo, no trecho em que ele usa a figura de são Francisco de Assis como protótipo do revolucionário que ele mesmo pretende ser. O leitor, paciente e bondoso, por favor, siga mais este paragrafinho:

“Tal atitude [a de S. Francisco ao rejeitar os bens do mundo] corresponde à do revolucionário e não a do reformador e do agente do sistema vigente. O reformador reproduz o sistema, introduzindo apenas correções aos abusos por meio de reformas… O que [Francisco] faz representa uma crítica radical às forças dominantes do tempo… Não optou simplesmente pelos pobres, mas pelos mais pobres entre os pobres, os leprosos, aos quais chamava carinhosamente ‘meus irmãos em Cristo’.”

Francisco aparece aí, pois, como o revolucionário que em vez de servir ao sistema vigente busca destruí-lo e substituí-lo por algo de totalmente diverso. Nem discuto a inverdade histórica, que é demasiado patente. São Francisco jamais se voltou contra o sistema hierárquico da Igreja, mas, ao contrário, fez da sua ordem mendicante o instrumento mais dócil e eficiente da autoridade papal. Para usar os termos do próprio Boff, corresponde rigorosamente à definição do “reformador” e não à do “revolucionário”.

Mas o ponto não é esse. A coisa mais linda é que, segundo o sr. Boff, quando Francisco se aproxima não somente dos pobres, mas “dos mais pobres entre os pobres”, isto é, dos leprosos, há nisso um claro protesto contra a hierarquia social. Mas desde quando a lepra escolhe suas vítimas por classe social? Não eram leprosos o rei de Jerusalém, Balduíno IV, e o rei da Alemanha, Henrique VII, filho do grande imperador Frederico II e de Constança de Aragão? Francisco recusaria o beijo ao leproso de família rica? Superpondo artificialmente a idéia da deformidade mórbida à da inferioridade econômica, que lhe é totalmente alheia, o sr. Boff faz do menos anti-social dos gestos de caridade cristã um símbolo do ódio revolucionário, e o leitor, estonteado pela imagem composta, nem percebe que foi feito de trouxa mais uma vez, engolindo como pura teologia católica a velha distinção marxista entre reforma e revolução. Desfeito pela análise o jogo de impressões, a “teologia da libertação” do sr. Boff revela-se nada mais que uma técnica de escravização mental.

Sim, o estilo é o homem. Uns escrevem para mostrar, outros para esconder e esconder-se, lançando, desde as sombras, a miragem de uma falsa luz.

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