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Mais sábios que Deus

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 28 de novembro de 2005

Ao chegar à América em 1623, o governador William Bradford encontrou a colônia de Plymouth numa situação desesperadora: magros, doentes, em farrapos, sem atividade econômica organizada, os peregrinos estavam à beira da extinção. Muitos, depois de vender aos índios todas as suas roupas e demais bens pessoais, tinham lhes vendido sua liberdade: eram escravos, vivendo de cortar lenha e carregar água em troca de uma tigela de milho e um abrigo contra o frio.

Interrogando os líderes da comunidade em busca da causa de tão deplorável estado de coisas, Bradford descobriu que a origem dos males tinha um nome bem característico. Chamava-se “socialismo”.

Os habitantes de Plymouth, revolucionários puritanos exilados, trouxeram para a América as idéias sociais esplêndidas que os haviam tornado insuportáveis na Inglaterra, e tentaram construir seu paraíso coletivista no Novo Mundo. As terras eram propriedade comunitária, a divisão do trabalho era decidida em assembléia e a colheita se dividia igualitariamente entre todas as bocas. O sistema havia resultado em confusão geral, a lavoura não produzia o suficiente e aos poucos a miséria havia se transformado naturalmente em anarquia e ódio de todos contra todos.

A um passo do extermínio, a comunidade aceitou então a sugestão de mudar de rumo, voltando ao execrável sistema de propriedade privada da terra. “Isso teve muito bons resultados”, relata Bradford. “Muito mais milho foi plantado e até as mulheres iam voluntariamente trabalhar no campo, levando suas crianças para ajudar.” O surto de prosperidade que se seguiu é bem conhecido historicamente: ele permitiu que os colonos fincassem raízes na América e começassem a construir o país mais rico do mundo.

Homem de fé, Bradford não atribuiu a salvação da colônia aos méritos dela ou dele próprio, mas à mão da providência divina. O sucesso do sistema capitalista, escreveu ele, “bem mostra a vaidade daquela presunção de que tomar as propriedades pode tornar os homens mais felizes e prósperos, como se fossem mais sábios que Deus”.

Encontrei essa história na coluna de Mike Franc no semanário Human Events . Para mim ela era novidade completa, mas depois descobri que por aqui até os meninos de escola a conhecem. O documento clássico a respeito é o livro do próprio Bradford, Of Plymouth Plantation, 1620—1647 . Uma edição confiável é a de Samuel Eliot Morison (New York, Modern Library, 1967).

A experiência socialista em dose mínima teve no corpo da América o efeito de uma imunização homeopática. A arraigada ojeriza do povo americano às experiências coletivistas dura até os dias de hoje, malgrado as tentativas cíclicas de reintroduzi-las subrepticiamente por meio de manobras burocráticas que escapam ao controle do eleitorado, as quais terminam sempre no fracasso geral e no subseqüente retorno à constatação de Bradford: “Deus, na sua sabedoria, viu um outro rumo melhor para os homens.”

Há muita gente que, não gostando do socialismo, se curva de bom grado à sua pretensa necessidade histórica, sob a alegação de que o povo “precisa passar por isso” para aprender com a experiência. Uma das poucas coisas de que me gabo é nunca ter apelado a essa desculpa idiota para justificar meus erros. Adotei como divisa a máxima atribuída pelo povo gaiato ao ex-presidente Jânio Quadros — “Fi-lo porque qui-lo” — e, sem nada conceder ao fatalismo retroativo, considero-me o único autor de minhas próprias cacas (afinal, a gente tem de se orgulhar de alguma coisa na vida).

O problema com a experiência é a dose: a quantidade de veneno de cobra numa vacina não é a mesma da mordida real. O que educa não é propriamente a experiência, mas a rememoração meditativa depois dela. A condição para isso é que você saia da experiência vivo e não muito danificado. Uma coisa é a miniatura de socialismo numa colônia de peregrinos. Outra são décadas de ditadura socialista em extensões territoriais continentais como a da Rússia e a da China. O Brasil ainda não chegou a esse ponto, mas já passou muito além do limite em que a experiência pode ensinar alguma coisa em vez de lesar o aprendiz para sempre. O vício estatista e coletivista é muito antigo e pertinaz, a intromissão do Estado na economia é muito vasta e profunda para que se possa simplesmente parar tudo de uma hora para a outra e meditar sobre o fracasso da experiência. Nem se pode designar com esse nome o que já se tornou um estilo de vida, uma cosmovisão, uma religião, um imperativo categórico investido de fatalidade quase cósmica: um empresário brasileiro sem subsídio estatal se sente tão desamparado quanto um inglês sem guarda-chuva, um russo sem vodca ou um italiano sem mãe. Inversa e complementarmente, não chegou a ser uma experiência a tentação de capitalismo liberal do brevíssimo governo Collor, punida exemplarmente pelo superego estatista sob o pretexto de crimes jamais provados e abortada na gestão subseqüente pelo escândalo das pseudo-liberalizações monopolistas, que um presidente socialista, patrono da revolução no campo e membro de carteirinha da Internacional temporariamente disfarçado em adepto da liberdade econômica, forçou para dar a seus correligionários o pretexto que queriam para voltar correndo aos braços do Estado-babá.

A imersão do Brasil na poção miraculosa do estatismo já durou tempo demais para que um mergulho ainda mais profundo e duradouro possa valer como experiência didática, exceto no sentido em que é didático trancar-se numa jaula com um tigre faminto para averiguar se come gente.

Mas até essa advertência é tardia: já demos esse mergulho, já estamos dentro da jaula. O tigre já está lambendo os beiços. Os que quiserem esperar para só tirar conclusões quando ele começar a palitar os dentes não terão tempo para isso, pois estarão espetados no palito, reduzidos à condição de fiapos de si mesmos.

Não há covardia mais torpe que a covardia da inteligência, a burrice voluntária, a recusa de juntar os pontos e enxergar o sentido geral dos fatos. Toda a chamada “oposição” nacional é culpada desse pecado que terminará por matá-la. Não faltam aí políticos e intelectuais que protestem contra afrontas isoladas, mas não há um só que consinta em apreender a unidade estratégica por trás delas, clara e manifesta, no entanto, para quem tenha algum estudo, por modesto que seja, da técnica das revoluções sociais.

Muitos são os que se sentem insultados pela proposta indecente de cursos especiais para o MST em universidades públicas, com concessão de diploma superior e dispensa de exame escrito, tendo em vista o direito dos doutores ao analfabetismo, já consagrado como um mérito na pessoa do sr. presidente da República e em parte na do próprio ministro da Cultura (seja isto lá o que for). Mais ainda são os que se revoltam contra a obstinada impossibilidade de punir qualquer mandatário petista, mesmo com provas cabais de crimes incomparavelmente superiores ao de um juiz Lalau, de um Maluf e de um P. C. Farias, todos somados.

O que não percebem é que, em ambos os casos, se trata da aplicação de um mesmo princípio básico da estratégia revolucionária, que é a progressiva substituição do sistema de legitimidades vigente por um novo sistema fundado na solidariedade partidária mafiosa. Não se trata nem de sugar vantagens ocasionais para o MST, nem de proteger improvisadamente um criminoso vermelho de colarinho branco. Estas são apenas oportunidades para a aplicação do princípio. Ao postular abertamente vantagens ilícitas para seus protegidos ou festejar descaradamente a impunidade do corrupto-mor, o esquema esquerdista dominante está enviando à nação uma mesma mensagem, que os analistas de plantão podem não perceber, mas que cala fundo no subconsciente do povo e impõe, com a força do fato consumado, o império da nova lei. Traduzida em palavras, a mensagem diz: “A velha ordem constitucional acabou. O Partido-Príncipe está acima de todas as leis. Ele é a fonte única de todos os direitos e obrigações.”

Em todas as revoluções socialistas, essa mudança do eixo da autoridade é ao mesmo tempo o mecanismo básico e o objetivo essencial. Na Rússia, anos de boicote à administração oficial e de parasitagem das suas prerrogativas pelos sovietes antecederam a proclamação explícita de Lênin ao voltar do exílio: “Todo o poder aos sovietes”. Há décadas o MST, que tem uma estrutura e composição interna absolutamente idênticas às dos sovietes – não constituindo uma organização agrícola, mas um todo político-militar complexo, com especialistas em todas as áreas, do marketing à técnica de guerrilhas – já vem habituando a opinião pública a aceitar passivamente a sua cínica usurpação de direitos auto-legados, passando por cima da lei. Desde o instante em que o governo do sr. Fernando Henrique Cardoso – cúmplice consciente de um processo que ele conhece mais do que ninguém – aceitou alimentar com uma pletora de verbas públicas uma entidade legalmente inexistente, estava instaurado o direito à ilegalidade em nome da superior legalidade revolucionária. Destruindo voluntariamente a ordem estabelecida, o sr. Cardoso teria sido objeto de impeachment se sua pantomima de “neoliberal” não tivesse entorpecido as lideranças políticas e empresariais hipoteticamente direitistas, tornando-as insensíveis ao desmantelamento da ordem, porque era preferível que viesse “de um de nós” em vez do espantalho petista. Cardoso elegeu-se com o simples endosso da frase “Esqueçam o que eu escrevi”. Poucos meses depois, seu conluio com o MST trouxe a prova de que ele próprio não se esquecera de nada.

Com a ajuda de uma popularíssima novela da Globo, as invasões de terras foram então legitimadas: a entidade sem registro recebia o registro daquilo que roubava. Muito mais importante do que a posse das terras era, para o MST, essa imposição da sua vontade como força superior às leis. Era, já, a transferência tácita do poder aos sovietes.

As terras podiam não servir de grande coisa, excluída a sua posição estratégica ao longo das estradas, nem sempre boa para o plantio, mas apta a paralisar o país numa futura e talvez até desnecessária hipótese insurrecional. Usá-las para plantar jamais entrou em consideração exceto no mínimo suficiente para jogar areia nos olhos da opinião pública. A prova é que, transformado pelo roubo oficializado no maior proprietário de terras que já houve neste país, o MST não produz sequer o necessário ao sustento dos seus membros, que se nutrem de alimento muito mais substancioso: verbas públicas, direitos usurpados, ocupação do espaço aberto pela legalidade acovardada que recua.

Quanto à impunidade do sr. José Dirceu, é extensão lógica da transformação do STF em assessoria jurídica do Partido-Príncipe. Não é um improviso espertalhão: é um capítulo previsível da história da imposição do poder revolucionário pelos meios esquivos e anestésicos concebidos por Antonio Gramsci mais de sete décadas atrás. Desde 1993 venho tentando chamar a atenção do empresariado, das Forças Armadas dos intelectuais não comprometidos com o poder esquerdista para a obviedade da aplicação do esquema gramsciano não só pelo PT, mas pelo conjunto dos partidos esquerdistas aglomerados no Foro de São Paulo. Passo por passo, etapa por etapa, anunciei antecipadamente cada novo lance da implementação da estratégia. Em vão. Excetuando cinco ou seis homens sensatos que compartilharam imediatamente das minhas preocupações, mas cujo número e poder eram inversamente proporcionais ao mérito da sua coragem intelectual, a resposta que recebi foi sempre a mesma, vinda das mais variadas fontes. Neste país de gente pomposa e burra, o estudo mais extenso, o conhecimento mais preciso dos fatos, a descrição mais exata do seu encadeamento racional nada valem diante do apelo a um chavão tranqüilizante. Despediam-se do problema por meio do rótulo “teoria da conspiração” — e iam descansar seus traseiros gordos e suas consciências balofas no leito macio da traição passiva. Não perdôo ninguém: ricaços presunçosos, generais perfumados, senadores de musical pornô. E não me venham com patacoadas pseudo-evangélicas: Jesus ordenou perdoar as ofensas feitas a nós pessoalmente; jamais nos deu procuração para perdoar as ofensas feitas a terceiros, muito menos a uma nação inteira. Por isso lhes digo: vocês todos são culpados da degradação sem fim que este país está sofrendo. Tão culpados quanto qualquer José Dirceu. E nem falo daqueles que, percebendo claramente a debacle, se adaptaram gostosamente a ela, distribuindo medalhas a criminosos, subsídios a vigaristas, afagos a quem só não os mata porque não chegou a hora. Esses não pecaram por omissão: ao contrário, nunca agiram tanto. Alguns já colheram o fruto amargo da bajulação: foram esmagados sob o peso dos sacos que puxavam. Outros não perdem por esperar. Quando a injustiça se eleva ao estatuto de norma geral, ironicamente sobra sempre um pouco de justiça nos detalhes.

Mas, cavando um pouco mais fundo no estudo dos fenômenos acima apontados, descobre-se que a imposição cínica de direitos auto-arrogados não é nem mesmo um simples instrumento da estratégia de tomada do poder: é um traço constante e uniforme da mentalidade revolucionária, nascido muito antes de que esse instrumento fosse concebido por Lênin no contexto da via insurrecional e adaptado por Gramsci à estratégia capciosa da revolução anestésica.

Norman Cohn, em The Pursuit of the Millenium (Oxford University, 1961), assinala uma característica proeminente de certas seitas gnósticas medievais: seus adeptos sentiam-se tão intimamente unidos a Deus que se imaginavam libertos da possibilidade de pecar. “Isto, por sua vez, os liberava de toda restrição. Cada impulso que sentiam era vivenciado como uma ordem divina. Então podiam mentir, roubar ou fornicar sem problemas de consciência.”

Enquanto essas seitas se refugiavam em círculos estreitos de iniciados esotéricos, a pretensão de imunidade essencial ao pecado não passou de um delírio de auto-adoração grupal. Na entrada da modernidade, porém, como observou Eric Voegelin em The New Science of Politics (University of Chicago, 1952), essas seitas se exteriorizaram em poderosos movimentos de massas. Foi quando começou a Era das Revoluções. Transposta para a esfera da ação política, a autobeatificação permissiva deu origem à moral revolucionária que isenta o militante de todos os deveres morais para com a sociedade existente, santificando as suas mentiras e seus crimes em nome dos méritos de um estado social futuro que ele se autoriza a exibir desde o presente como salvo-conduto para praticar o mal em nome do bem.

Uma das primeiras manifestações dessa transmutação de uma falsa sabedoria esotérica em movimento revolucionário de massas foi, precisamente, a Revolução Puritana na Inglaterra. Nela já estão presentes todos os elementos da autobeatificação petista – e não só petista, mas esquerdista em geral, com especial destaque para a “teologia da libertação”: a absoluta insensibilidade moral aliada à reivindicação de méritos sublimes; a idealização do “pobre” como portador de uma sabedoria excelsa não apesar mas em razão de sua incultura mesma; a vontade férrea de impor seu próprio critério grupal de justiça acima de toda consideração pelos direitos dos outros; o mito da propriedade coletiva; a pseudomística de um Juízo Final terrestrializado e identificado com o tribunal revolucionário.

Pois bem, foram esses mesmos puritanos que, fracassado o intento revolucionário na Inglaterra, vieram criar seu simulacro de paraíso no Novo Mundo. A resistência da sociedade, que encontraram na Europa, ainda podia ser explicada como obstinação dos maus que não se rendiam à autoridade dos “Santos”. Mas o que os “Santos” encontraram do outro lado do oceano não foi nenhuma discordância humana: foi a resistência implacável da natureza material, a estrutura da realidade — ou, em linguagem teológica, a vontade de Deus. A ela souberam no entanto conformar-se, diante da segunda derrota, os teimosos puritanos. Trocando seu orgulho pela humildade que lhes ensinava o sábio Bradford, tornaram-se mansos e herdaram a Terra.

No Brasil, a soberba dos revolucionários, alimentada pela covardia geral e pela cumplicidade de muitos Cardosos, ainda vai levar muito tempo para se chocar de encontro aos limites da realidade. Comparadas as proporções entre a experiência dos puritanos e a deles, não é provável que isso aconteça sem uma dose de sofrimento superior àquela da qual pode resultar algum aprendizado.

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Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 8 de setembro de 2005

Nos países comunistas, não existe jornalismo propriamente dito. Existe a imprensa oficial, que é parte integrante dos serviços de inteligência. O jornalista estrangeiro que ocupe qualquer cargo na mídia de um desses países está lá por ser pessoa de confiança do serviço secreto local, e nenhum serviço secreto que se preze tem confiança senão em seus agentes pagos ou em indivíduos que de algum outro modo estejam sob o seu controle.

Quando esse jornalista volta para o seu país de origem, volta como voltou o sr. José Dirceu, que nunca explicou como veio a operar o milagre de “desligar-se” da inteligência cubana, da qual ninguém antes dele jamais saiu senão pelas vias estreitas da aposentadoria vigiada, da deserção ou da morte.

Assim como o sr. Dirceu decerto apenas mudou de posto, do mesmo modo o jornalista brasileiro que retorne à terra natal depois de ter trabalhado na Rádio Havana, na Rádio Praga, na Agência Tass, no jornal Granma ou em instituições similares volta em geral a serviço do mesmo governo comunista, apenas com função diferente. Dadas as suas qualificações profissionais, o mais razoável é que se torne um agente de influência.

“Agente de influência” é termo técnico. Designa o oficial encarregado de (des)orientar a opinião pública conforme as necessidades da estratégia revolucionária. No Brasil, quase ninguém sabe da diferença entre agentes de influência e meros jornalistas de esquerda. Mas o critério distintivo é bem simples: verifique se o sujeito trabalhou na mídia de algum governo comunista e se, uma vez no Brasil, continua agindo em prol do comunismo. A possibilidade de que esses dois capítulos entrem numa mesma biografia por mera coincidência é tão pequena que não vale o cálculo.

No momento, as duas prioridades máximas da estratégia comunista na América Latina, fora a aposta periclitante na transição pacífica do Brasil para o socialismo, são a “revolução bolivariana” do sr. Hugo Chávez e a narcoguerrilha colombiana que financia atividades subversivas no continente. Quanto a este último ponto, qualquer navegante da internet pode observar a pressa desesperada com que se montou um esquema mundial de proteção ao sr. Olivério Medina, para apresentá-lo como vítima de uma conspiração americana e impedir que a polícia obtenha dele alguma prova do auxílio criminoso que, segundo ele mesmo declarou numa festa de políticos, as FARC deram à campanha eleitoral do PT em 2002. O movimento é protagonizado por entidades estreitamente vinculadas às Farc através do Foro de São Paulo, isto é, beneficiárias ao menos políticas, se não também financeiras, das atividades do sr. Medina.

Quanto à revolução venezuelana, seus feitos mais escandalosos, que os exilados divulgam nos EUA, jamais saem nos nossos jornais e TVs, entidades cuja circunspecção nesses assuntos é um exemplo edificante para a juventude desbocada dos nossos dias. Mas o silêncio obsequioso da maioria não satisfaz a quem exige rendição total. A Associação Brasileira de Imprensa, por exemplo, acaba de aprovar uma moção de repúdio ao antichavismo obsessivo da mídia brasileira, o qual, embora jamais tenha sido notado por nenhum leitor ou telespectador, deve ser mesmo de uma onipresença brutal e constante, já que sustentado por “espúrios interesses” ianques e servido, segundo a moção, por “muitos jornalistas” nesta parte do planeta. Como os antichavistas no jornalismo nacional são meia dúzia e me acontece ser um deles, agradeço a honrosa multiplicação imaginária do nosso contingente, coloco meus extratos bancários à disposição dos interessados em saber das forças ocultas que me subsidiam (pedindo que me informem caso descubram alguma, para eu poder mandar a conta), e aproveito a ocasião para informar que o autor da moção é o sr. Mário Augusto Jacobskind, ex-editor da revista estatal cubanaPrismas . Em caso de dúvida quanto ao significado possível desta informação, clique back to top.

Absurdo monumental

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de agosto de 2005

Enquanto o povo inteiro se emociona com a mirabolante sucessão de escândalos do Mensalão, outros acontecimentos, mais discretos porém ainda mais reveladores da ruína moral e intelectual da nação, podem passar totalmente despercebidos.

Escolhi este porque é, em si, um monumento ao desastre.

O leitor sabe que quem torce pelo Flamengo é flamenguista, quem vota no Maluf é malufista, quem se dói de amores por Lula é lulista, quem quer ver o comunismo implantado no mundo é comunista. Mas, segundo decisão unânime da Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais do DF, quem defende a prática do aborto não pode ser chamado de abortista. Ah, isso não. O Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, do Pró-Vida de Anápolis, SP, entidade que luta contra a legalização do aborto, foi condenado a pagar R$ 4.250,00 de multa por ter designado com esse termo uma notória defensora (bem subsidiada pela fundação MacArthur, é claro) do direito de matar bebês no ventre de suas mães, em quantidade ilimitada, a mero pedido das ditas cujas. Pior: o sacerdote foi informado pela autoridade judicial de que doravante deve abster-se de usar a palavra proibida não só ao falar da mencionada senhora, ou senhorita, mas de qualquer outra pessoa, por mais abor(CENSURADO)ista que seja.

Não sei o nome dos juízes que compõem a Turma. Mas sei que das duas uma: ou a proibição que baixaram se aplica a todos os cidadãos brasileiros ou exclusivamente ao Pe. Lodi. Na primeira hipótese, os signatários dessa nojeira ultrapassaram formidavelmente suas atribuições de magistrados e se autopromoveram a legisladores, com o agravante de que usaram dessa inexistente prerrogativa para instaurar, pela primeira vez na História universal da jurisprudência, a proibição de palavras (e logo de um termo banal do idioma, consagrado em dicionários e em pelo menos 24 mil citações no Google). Na segunda, terão negado a um cidadão em particular o direito de livre expressão desfrutado por todos os demais, configurando o mais descarado episódio de discriminação pessoal já registrado nos anais do hospício judicial brasileiro.

Num caso, usurpam a autoridade do Congresso e a usam para baixar uma lei digna da Rainha de Copas. Noutro, infringem a Constituição que lhes incumbe defender.

Bem, uma ordem que tem dois significados possíveis, antagônicos entre si e cada um absurdo em si mesmo, é, com toda a evidência, uma ordem sem significado nenhum.

Como obedecê-la, portanto? Obedecer a uma ordem é traduzir o seu significado em atos. Não havendo significado, a obediência é impossível. Ninguém pode se curvar a ela sem anular, no ato, os princípios constitucionais e legais que fundamentam a autoridade mesma de quem a emitiu.

Aos juízes da Turma Recursal cabe, portanto, a invenção desta novidade jurídica absoluta: a sentença auto-anulatória.

Se pretendem seriamente que ela seja cumprida, portanto, os magistrados brasilienses violam não somente um dos princípios fundamentais do Direito, que reza “ad impossibilia nemo tenetur” (ninguém é obrigado a fazer o impossível), mas também as leis da lógica elementar, a ordem causal da ação humana e, enfim, a estrutura inteira da realidade. Perto disso, aquele famoso prefeito de cidade do interior que mandou revogar a lei da gravidade foi um primor de modéstia, já que suspendeu somente uma das leis da mecânica clássica, deixando o resto da ordem universal em paz. O próprio Deus jamais sonhou remexer tão fundo os pilares do cosmos como o pretenderam os meritíssimos, já que anunciou desfazer no Juízo Final tão-somente o universo corpóreo presentemente conhecido, conservando intactos o princípio de identidade e os nexos de causa e efeito, sem o que não poderia julgar os vivos e muito menos os mortos. Sto. Tomás de Aquino ensinava que a onipotência divina não tem limites externos mas os tem internos: não pode anular-se a si própria, decretando uma absurdidade intrínseca. Para os juízes da Turma Recursal, isso não é obstáculo de maneira alguma.

Se os leitores pensam que a comédia parou por aí, enganam-se. Uma sentença que não tem sentido lógico requer interpretação psicológica. Mas quando tentamos sondar a obscuridade mental de onde suas excelências extraíram o fruto patético de suas caraminholações, defrontamo-nos com uma dificuldade insuperável: ou esses juízes compreendem o sentido do que assinaram, ou então assinaram a esmo, de supetão, num arrebatamento paroxístico que só poderia alegar em defesa própria o atenuante da insanidade. No primeiro caso, são um grupo revolucionário místico-gnóstico pelo menos tão perigoso quanto o de Jim Jones, empenhado em corrigir os erros do Todo-Poderoso mediante a supressão da realidade. No segundo, estão absolutamente incapacitados para a função judicial ou aliás para qualquer outra, sendo obrigação da corregedoria removê-los imediatamente do cargo e devolvê-los aos cuidados de suas respectivas mães, para que estas apliquem nos seus bumbuns os corretivos requeridos em casos de molecagem intolerável.

Incapaz de atinar com algum sentido lógico ou psicológico na enormidade judiciária brasiliense, acredito no entanto que posso encontrar para ela uma explicação sociológica: Suas Excelências são o produto acabado da universidade brasileira. Quatro décadas de desconstrucionismo, multiculturalismo, “direito alternativo”, teologia da libertação e slogans politicamente corretos, sem nenhum contrapeso de racionalidade científica e educação clássica, bastam para infundir em pessoas clinicamente sãs a doença espiritual do irracionalismo anticósmico, de modo que, continuando a agir de maneira normal no dia a dia, são subitamente atacadas de autodivinização aguda quando no exercício de alguma função que lhes pareça ter relevância ideológica. Aí, sem a menor hesitação de consciência, passam a exigir que dois mais dois dêem cinco, que os pássaros voem para trás, que as vacas produzam vinho francês em vez de leite e que a soma dos ângulos internos dos triângulos dê 127,5. E fazem tudo isso acreditando cumprir uma alta missão ético-social. Já vamos para a terceira geração de estudantes brasileiros afetados por essa grotesca deformidade do espírito. Não é de espantar que, elevados ao cargo de magistrados, esses meninos tenham alguma dificuldade de discernir entre a toga judicial e a capa do Super-Homem.

Pompeius Minimus

Como não há nenhuma direita politicamente atuante no país, a esquerda a toda hora inventa uma, para lançar sobre ela as culpas de seus próprios crimes ou simplesmente para não ter de confessar que não tem antagonistas, que todo o seu heroísmo consiste em brandir uma espada de papelão contra sua própria sombra, num palco vazio. Mas, sendo difícil apontar nomes representativos de uma corrente política inexistente, é natural que, ao selecionar suas vítimas pré-alvejadas, ela dê preferência aos personagens mais execrados do dia, atribuindo postiçamente um sentido ideológico a atos cometidos em mero interesse próprio, de modo que a direita assim surgida ex nihilo pareça não somente existir como também ser algo de indiscutivelmente ruim. Às vezes, porém, o truque falha – pois é difícil fazer o povo enxergar algum conteúdo doutrinal nas mesquinhas bandalhices de um João Alves ou do Juiz Lalau. Nesses casos, a esquerda apela ao recurso extremo de usar alguns de seus próprios membros como palha para estufar o espantalho direitista, como fez com a família Sarney, com a socialdemocracia tucana e por fim com a mídia inteira. Essa ingratidão dos diabos, que num instante atira ao lixo pais, protetores, amigos e cúmplices de uma vida inteira, também traz algum benefício secundário, na medida em que prepara a opinião pública, sutilmente, para acostumar-se à idéia de viver no futuro paraíso socialista, onde as únicas correntes políticas existentes serão a esquerda da esquerda, o centro da esquerda e a direita da esquerda, tudo isso reunido sob o nome de “democracia aprofundada”.

Em qualquer das duas opções, porém, a verossimilhança do boneco falhava num ponto. Que raio de direita era aquela, que nunca aparecia numa manifestação pública, que não tinha um jornal ou revista para leitura de seus militantes, que não fazia uma assembléia, uma reunião, um debate interno sequer? Como era possível que uma força onipotente, causadora de todos os males do país, só pudesse ser designada por seus efeitos remotos, sem jamais ser vista fisicamente em parte alguma?

Como era possível que figuras tão inconexas como, por exemplo, Paulo Maluf, José Serra, Jair Bolsonaro, o embaixador dos EUA e até eu, que nunca nos falamos nem tivemos motivo para isso, compuséssemos, sem sabê-lo, uma força política coesa, organizada, capaz de bloquear maldosamente a marcha das forças populares em direção à glória final do socialismo? Que laço misterioso, que magnetismo desconhecido nos reunia em algum salão secreto da terra do nunca, tomava decisões em nosso nome sem nos avisar, baixava instruções aos esquadrões etéreos de nossos militantes compostos de pura antimatéria e, assim, impunha por toda parte o poder temível da “direita”?

Não, não era possível continuar assim. Algum sinal físico da existência da maldita direita tinha de ser inventado. A oportunidade para isso apareceu por pura sorte, faz uma semana.

Foi o seguinte:

Gostem ou não gostem, o deputado Roberto Jefferson é a principal atração do circo nacional. Todos querem vê-lo, ouvi-lo, decifar o enigma do herói-patife que mandou para o beleléu a própria carreira política pelo simples prazer — sublime, admito — de fazer em cacos a indústria petista do crime. A Associação Comercial de São Paulo não escapou à curiosidade geral. Cometeu a imprudência de convidar seus membros e o público em geral para tirar as dúvidas numa conversa direta com o personagem. Mal sabia ela, com todos os seus cento e tantos anos de experiência, que a malícia esquerdista consegue transformar qualquer coisa em qualquer outra coisa e ainda chamar isso de “jornalismo”. Encarrega-se da mágica, desta vez, Roberto Pompeu de Toledo, tardio homônimo do general romano Pompeius Magnus, que não enfrentou as legiões de César mas realiza semanalmente proeza ainda mais dificultosa, provando que é possível fazer sucesso no jornalismo opinando com desenvoltura e segurança sobre assuntos dos quais não tem a mínima idéia. Nas mãos desse enrolador emérito, o encontro realizado no Hotel Jaraguá transmuta-se – por fim! – numa manifestação política da “direita”, com o deputado Jefferson transfigurado no Newt Gingrich brasileiro e a platéia casual, com todos os seus Pompeus de Toledo inclusos, numa massa de militantes a delirar de “entusiasmo adolescente” (sic) ante as propostas maquiavélicas de um plano de ação reacionário.

Uma vez provada assim a existência da direita organizada, Pompeius Minimus passa à etapa seguinte: desmoralizar o inimigo antes de lhe dar tempo de passar da hipótese à realidade. Nada melhor, para esse fim, do que imputar-lhe conteúdos ideológicos inexistentes, criados por simples inversão dos méritos auto-atribuídos da esquerda. Assim, pois, se esta se alardeia a rainha da justiça social, a direita tem de ser, naturalmente, a apologista das desigualdades. Pouco importa a Pompeius Parvus que só o capitalismo tenha conseguido dar aos pobres alguma existência digna, ou que a distância econômica entre pobres e ricos, no socialismo, seja consolidada pela exclusão política dos descontentes, tornando oficial e definitiva a barreira entre as classes. Tratando-se de tomar palavras por coisas, o simples contraste semântico entre os termos “igual” e “desigual” basta como prova da infinita superioridade moral do socialismo.

Num giro verbal ainda mais suíno, Pompeius Minor atribui aos conspiradores da direita a intenção de queimar a reputação dos esquerdistas por meio do argumento retoricamente suicida de declarar que “eles são tão ruins quanto nós”. Quem lê jornal sabe que apelar ao equivalentismo moral tem sido o último recurso do partido governista surpreendido com as calças na mão. Por meio desse expediente, ele procura atenuar as diferenças brutais entre a corrupção avulsa e incruenta de seus antecessores e o império petista do crime com todo o seu envolvimento em homicídios, conspiração com narcoterroristas internacionais e suborno maciço da classe política praticamente inteira. Pompeius Infimus eleva à enésima potência a eficácia desse truque infame, colocando-o na boca dos próprios difamados. Se ele pensa que engana a alguém com essa porcaria, deve ter razão. O Brasil está tão maluco que o pessoal já não se contenta com acreditar em duendes, mulas sem cabeça, extraterrestres, cachaça diet e propaganda petista: acredita em Roberto Pompeu de Toledo.

Em tempo

1) Tal como anunciei aqui, George W. Bush acaba de nomear Thomas Shannon para o lugar do mocorongo Roger Noriega. Péssima notícia para Hugo Chavez.

2) A mídia nacional não está prestando atenção ao acontecimento mais importante do momento: as manobras militares conjuntas da China e da Rússia. O grande eixo do mal, quebrado pelo ex-presidente Reagan, começa a soldar-se de novo.

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