Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 4 de setembro de 2015
Um dos mitos preferidos da cultura americana é o de que a Reforma protestante foi uma das fontes principais da liberdade religiosa, dos direitos individuais e da proteção contra os abusos de um governo central. Some-se a isso a falsa crença weberiana (ou semiweberiana) de que a “ética protestante” gerou o capitalismo, e a única conclusão possível é que o cidadão de hoje em dia deve a Lutero e Calvino, no fim das contas, praticamente todos os benefícios legais, políticos e econômicos de viver numa democracia moderna.
Mas tudo isso é propaganda, não História.
Desde logo, a supressão da autoridade política da Igreja – um dos objetivos declarados da Reforma, que nisso concordava perfeitamente com Maquiavel – liquidava toda mediação espiritual institucionalizada entre o governo e o povo, reduzindo a sociedade a um campo de disputa entre duas forças apenas: de um lado, uma poeira dispersa de consciências individuais com suas crenças subjetivas infindavelmente variadas e variáveis; de outro, a vontade de ferro do governante, consolidada na doutrina da “Razão de Estado”, necessidade incontroversa à qual ninguém podia se furtar.
Não é preciso dizer qual dessas duas forças acabou por prevalecer. O clássico estudo de Bertrand de Jouvenel, Du Pouvoir, Histoire Naturelle de sa Croissance (1949), demonstrou de uma vez por todas que o crescimento do poder do Estado, com a consequente atrofia das liberdades individuais, é a mais nítida constante da História ocidental moderna, pouco importando se falamos de “democracias” ou de “ditaduras”.
Mesmo na mais louvada das democracias, o Estado é hoje o mediador e juiz soberano de todas as ações e relações humanas, até as mais particulares e íntimas, com uma sanha controladora e uma prepotência invasiva desconhecidas em todas as sociedades anteriores – com uma única exceção, a ditadura de João Calvino em Genebra, o que não é de maneira alguma uma coincidência.
A experiência tem provado que os direitos e garantias individuais, assegurados verbalmente na Constituição americana e no Bill of Rights, nada podem contra a expansão avassaladora dos controles burocráticos amparados numa complexa tecnologia, mesmo no caso em que estes se voltam patentemente contra os interesses nacionais mais óbvios, como é o caso de tantas medidas do governo Obama.
Não cabe sequer alegar que essa exaltação abusiva do poder estatal foi apenas – para usar a expressão de Weber – um “resultado impremeditado” da Reforma, já que Lutero, a contrapelo da doutrina tomista que proclamava o direito de rebelião contra injustiças em geral, advogava ostensivamente a submissão total e incondicional dos cidadãos ao governante, admitindo a revolta só no caso específico de o Estado interferir em questões de religião.
Essa dupla exigência – a submissão integral ao Estado e a abstinência deste em matéria religiosa – forma o perfil claro do “Estado laico” moderno, onde necessariamente o argumento religioso perde toda força contra a racionalidade “neutra” da vontade estatal e acaba sendo banido do cenário político, quando não de toda a vida pública.
O processo culmina no “politicamente correto”, onde qualquer desejinho sexual, por mais vulgar e tolo, se cobre da proteção legal de um tremendo aparato repressivo e se coroa de um prestígio intocável, beatificante, superior aos mais altos valores morais da religião.
Por uma ironia aliás bastante compreensível, as igrejas protestantes sofrem as consequências disso tanto quanto ou mais que a católica, à qual hoje têm de se juntar num front comum para fazer face a perigos temíveis que nunca teriam chegado a existir sem a ajuda solícita de Lutero e Calvino.
Em páginas memoráveis da sua History of Political Ideas, vol. IV (22 das Collected Works), Eric Voegelin, alias ele próprio um luterano, explica que nem o monge de Wittemberg nem o doutrinário genebrino compreendiam as grandes questões políticas nas quais interferiam ousadamente com sua boa consciência de “eleitos”.
O lado católico, representado não só pelo Vaticano como mais diretamente pelo polemista antiluterano Johann Eck (1486-1543), não as compreendia tampouco, donde resultou uma herança de confusões inextricáveis nas quais até hoje nos debatemos.
Mas tudo isso é propaganda, não História.
Desde logo, a supressão da autoridade política da Igreja – um dos objetivos declarados da Reforma, que nisso concordava perfeitamente com Maquiavel – liquidava toda mediação espiritual institucionalizada entre o governo e o povo, reduzindo a sociedade a um campo de disputa entre duas forças apenas: de um lado, uma poeira dispersa de consciências individuais com suas crenças subjetivas infindavelmente variadas e variáveis; de outro, a vontade de ferro do governante, consolidada na doutrina da “Razão de Estado”, necessidade incontroversa à qual ninguém podia se furtar.
Não é preciso dizer qual dessas duas forças acabou por prevalecer. O clássico estudo de Bertrand de Jouvenel, Du Pouvoir, Histoire Naturelle de sa Croissance (1949), demonstrou de uma vez por todas que o crescimento do poder do Estado, com a consequente atrofia das liberdades individuais, é a mais nítida constante da História ocidental moderna, pouco importando se falamos de “democracias” ou de “ditaduras”.
Mesmo na mais louvada das democracias, o Estado é hoje o mediador e juiz soberano de todas as ações e relações humanas, até as mais particulares e íntimas, com uma sanha controladora e uma prepotência invasiva desconhecidas em todas as sociedades anteriores – com uma única exceção, a ditadura de João Calvino em Genebra, o que não é de maneira alguma uma coincidência.
A experiência tem provado que os direitos e garantias individuais, assegurados verbalmente na Constituição americana e no Bill of Rights, nada podem contra a expansão avassaladora dos controles burocráticos amparados numa complexa tecnologia, mesmo no caso em que estes se voltam patentemente contra os interesses nacionais mais óbvios, como é o caso de tantas medidas do governo Obama.
Não cabe sequer alegar que essa exaltação abusiva do poder estatal foi apenas – para usar a expressão de Weber – um “resultado impremeditado” da Reforma, já que Lutero, a contrapelo da doutrina tomista que proclamava o direito de rebelião contra injustiças em geral, advogava ostensivamente a submissão total e incondicional dos cidadãos ao governante, admitindo a revolta só no caso específico de o Estado interferir em questões de religião.
Essa dupla exigência – a submissão integral ao Estado e a abstinência deste em matéria religiosa – forma o perfil claro do “Estado laico” moderno, onde necessariamente o argumento religioso perde toda força contra a racionalidade “neutra” da vontade estatal e acaba sendo banido do cenário político, quando não de toda a vida pública.
O processo culmina no “politicamente correto”, onde qualquer desejinho sexual, por mais vulgar e tolo, se cobre da proteção legal de um tremendo aparato repressivo e se coroa de um prestígio intocável, beatificante, superior aos mais altos valores morais da religião.
Por uma ironia aliás bastante compreensível, as igrejas protestantes sofrem as consequências disso tanto quanto ou mais que a católica, à qual hoje têm de se juntar num front comum para fazer face a perigos temíveis que nunca teriam chegado a existir sem a ajuda solícita de Lutero e Calvino.
Em páginas memoráveis da sua History of Political Ideas, vol. IV (22 das Collected Works), Eric Voegelin, alias ele próprio um luterano, explica que nem o monge de Wittemberg nem o doutrinário genebrino compreendiam as grandes questões políticas nas quais interferiam ousadamente com sua boa consciência de “eleitos”.
O lado católico, representado não só pelo Vaticano como mais diretamente pelo polemista antiluterano Johann Eck (1486-1543), não as compreendia tampouco, donde resultou uma herança de confusões inextricáveis nas quais até hoje nos debatemos.