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Um caso exemplar

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de dezembro de 2013

          

O episódio do estudante de Santa Catarina que provocou uma onda de protestos com uma foto-caricatura considerada racista (v. aqui) é um condensado simbólico de toda a loucura nacional. Vale a pena desmembrá-lo analiticamente nos seus elementos constitutivos:
1. O autor da piada jura não ter tido intenção racista, mas a foto é objetivamente ofensiva. A oferta de bananas em lugar de flores reduz o amor do casal negro a uma paixão entre macacos. A comparação remonta ao século XIX, quando o sucesso da concepção darwiniana do ser humano que se destacava progressivamente de seus ancestrais símios, fundindo-se com a visão do atraso e barbarismo do continente africano, espalhou entre os brancos europeus a ilusão de uma superioridade racial tanto mais persuasiva quanto mais confirmada, aparentemente, pelos testemunhos convergentes da ciência e dos viajantes. O sentido da cena remonta portanto a uma tradição cultural inconfundível, da qual nenhum estudante universitário pode razoavelmente alegar ignorância.
2. Subjetivamente, a mesma figura pode ser usada com graus diversos de intenção ofensiva, desde o gracejo inócuo entre amigos até a afirmação franca e brutal de um programa ideológico assumido. Como a foto foi publicada, em vez de circular apenas num grupo privado, ela já não está, obviamente, no primeiro grau dessa escala, mas também não chega ao último, pois o autor parece sincero ao negar que seja ideologicamente racista e ao dizer-se perplexo ante a reação hostil da coletividade negra local. Não sendo nem uma brincadeira inocente nem uma tomada de posição ideológica, o ato só pode ser explicado como um caso de inocência perversa, o mal crônico da sociedade histérica baseada no auto-engano geral. É preciso uma boa dose de ilusão histérica para um sujeito achar que pode fazer bonito com um estereótipo racial, em público, sem parecer racista. O histérico não sente o que percebe, mas o que imagina.
3. Alguma reação indignada dos seus colegas negros era, portanto, não somente razoável, mas inevitável. A coisa escapou da psicologia normal, porém, a partir do instante em que a militância negra recusou ouvir um pedido formal de desculpas e preferiu partir para o protesto coletivo organizado e a exigência de punição administrativa. Essa decisão evidencia o desejo de forçar o senso das proporções para dar ao caso uma dimensão que ele por si não tem, transformando um erro individual momentâneo numa atitude política que devia ser respondida com outra atitude política. Isso também é pura histeria. O histérico não reage proporcionalmente aos estímulos, mas avalia “ex post facto” o estímulo pela intensidade da sua reação. Por exemplo, se morre de medo de um gato, persuade-se de que ele é perigoso como um tigre, ou, se tem uma explosão de cólera ante uma pequena ofensa, imagina que ela foi brutal e imperdoável. É compreensível que, num reflexo automático de autojustificação, ele então deseje instilar a mesma reação nos outros, produzindo uma resposta desproporcional para espalhar a impressão de que o estímulo foi maior do que realmente foi. Essa conduta é tanto mais irresistível quando não se trata de mera reação individual, mas de um contágio coletivo. A gritaria da massa passa então a ser a unidade de medida do motivo que alegadamente a provocou. A elite revolucionária, que não se constitui de histéricos mas de psicopatas, conhece perfeitamente bem esse mecanismo e sabe desencadeá-lo repetidas vezes até que, num meio social altamente carregado de paixões ideológicas, ele se torne automático e rotineiro. Praticamente todos os “movimentos sociais”, hoje em dia, vivem disso. No caso de Santa Catarina, forçar um protesto coletivo a contrapelo do pedido de desculpas que o tornava desnecessário foi o meio encontrado para dar a um miúdo desatino individual o alcance postiço de um sinal de racismo organizado, endêmico, ameaçador.
4. Objetivamente, uma sociedade onde a única manifestação pública de racismo observada em muitos anos foi apenas uma piada é, com toda evidência, uma sociedade sem racismo praticamente nenhum. Mas o senso de identidade da militância negra depende, em grande parte, da expectativa comum de estar permanentemente ameaçada por uma militância igual e contrária, por um racismo antinegro endêmico e perigoso. A reação à foto-piada foi produzida exclusivamente por essa predisposição, totalmente alheia à gravidade maior ou menor dessa ofensa em particular. Uma vez desencadeada, era preciso portanto dar à ofensa as dimensões de um perigo iminente e grave contra o qual era obrigatório defender a todo custo a integridade do grupo. A reação desproporcional visou precisamente a dar a impressão de racismo generalizado, de modo a justificar novas e mais violentas reações. É estímulo a um racismo negro em resposta a um racismo branco praticamente inexistente ou inofensivo, que se deseja pintar como uma ameaça temível para daí tirar vantagem psicológica e política: reforçar a identidade do grupo e ao mesmo tempo ganhar para ele o apoio da opinião pública.
As lições do psiquiatra polonês Andrew Lobaczewski  em “Political Ponerology: A Science on the Nature of Evil Adjusted for Political Purposes” (Red Pill Press, 2007) são ilustradas diariamente pelo noticiário nacional. A esse jogo abjeto de intercontaminação histérica reduz-se a política de um país governado por psicopatas.

Inventando certezas: Brasil-Mentira V

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de abril de 2009

No mesmo Observatório, Luciano Martins Costa pontifica: “Ditaduras são ditaduras… Fazer a conta da ditadura pelo número de mortos nas masmorras oficiais é vilipendiar a história. É coisa de alienados.” Contestando as comparações usuais que contrastam as trezentas e poucas vítimas da polícia política brasileira com as cem mil da ditadura cubana, o Sr. Costa lança à conta do nosso regime militar dois delitos extras que, segundo ele, deveriam entrar no cálculo. De um lado, “a corrupção que se consolidou durante os vinte e poucos anos da ditadura militar”. De outro, “a violência policial não diretamente política” porque, diz ele, “a polícia brasileira, em todos os estados, foi transformada durante a ditadura militar num perverso e incontrolável instrumento de controle social, que foi treinado para ‘identificar’ e punir preventivamente os supostos objetores do regime e acabou produzindo uma lógica toda especial segundo a qual todo jovem de pele relativamente escura é um inimigo potencial da ordem pública”.

Textos como esse ou os dois de Alberto Dines já citados são até difíceis de analisar, tal a mixórdia psicótica de erros, confusões e impropriedades lógicas que neles se compacta. Normalmente serviriam apenas de amostras de como o fanatismo enlouquece. O significativo é que nenhum de seus autores é conhecido publicamente como um fanático. Ambos passam como profissionais equilibrados, idôneos, capacitados a julgar a qualidade do jornalismo alheio. E é justamente isso a prova de que não se trata de distúrbios pessoais, mas de um mal endêmico nas classes falantes do Brasil: a absoluta incapacidade ou recusa de julgar as coisas com um mínimo de equanimidade, o radicalismo cego de um parti pris que ao inflamar-se masturbatoriamente e apelar aos subterfúgios mais unilaterais e artificiosos, acredita piamente, tranquilamente, fazer justiça.

O Sr. Costa, indignado de que a truculência das ditaduras só se calcule pela violência política direta, pergunta: “Quem estabeleceu os critérios desse ranking? O departamento de infográficos da Folha?” Ele não pergunta se quem estabeleceu a diferença entre a proporção de negros e mulatos mortos antes e durante a ditadura foi o seu próprio departamento de infográficos mentais. Nenhuma pesquisa histórica ou estatística prova que antes de 1964 a polícia, composta ela própria de maciços contingentes de negros e mulatos, fosse mais bondosa para com os chamados afrodescendentes. Louco de ódio, ele inventa sem a mais mínima prova um racismo crescente, e julga baseado nisso.

Quanto à alegada corrupção da ditadura, é falso, em primeiro lugar, que ela não fosse denunciada na época. Na mesma medida em que reprimiam certo tipo de notícias políticas, os militares aceitavam e apreciavam denúncias de corrupção, que os ajudavam, segundo eles, a manter sob controle uma classe política viciada. Eu mesmo trabalhava num dos jornais mais visados pela censura – o Jornal da Tarde – e posso garantir que, se várias matérias minhas viraram receitas de bolo, o mesmo não aconteceu com nenhuma acusação feita a políticos corruptos. Que os próprios militares no alto comando da nação fossem ladrões, é algo de que o Sr. Costa não cita nem poderia citar um único exemplo, visto que nenhum desses homens, na presidência ou em ministérios, prosperou tanto quanto o Sr. Lula ou o Sr. José Dirceu, nem muito menos – para dar um exemplo característico do regime deposto em 1964 – tanto quanto o Sr. Tião Maia, o amigo do presidente Goulart, que saiu do Brasil com dinheiro suficiente para comprar a vigésima parte do território australiano e, interrogado sobre como conseguiu isso, respondeu singelamente: “O Banco do Brasil foi uma mãe para mim”.

Houve sim, casos de corrupção no governo militar. Nenhum deles maior que o das “polonetas”, o empréstimo ilícito feito ao governo comunista da Polônia pelos esquerdistas que então infestavam o Ministério de Relações Exteriores de Geisel, contra os quais nem o Sr. Costa nem qualquer de seus congêneres diz a mais mínima palavra. E, entre os feitos de violência do regime, nenhum se compara à ajuda fornecida pelo mesmo governo Geisel para a ditadura cubana invadir Angola e aí matar, em poucos meses, pelo menos quinze mil pessoas. Também disso o Sr. Costa não diz nada.

Não há sinal de que, na ditadura Vargas, a violência social da polícia fosse menor do que se tornou depois ou de que fosse menos racialmente orientada. Simplesmente não é possível estudar o fator racial na conduta da polícia sem estudá-lo simultaneamente no próprio fenômeno da criminalidade. Até hoje ninguém provou que o número de “afrodescendentes” oprimidos ou assassinados pela polícia seja maior, proporcionalmente, do que o número deles no contingente de criminosos ou, mais ainda, na própria composição racial das tropas policiais. Sem essa prova, falar em racismo policial é calúnia pura e simples. Abolir metade do fenômeno para usar a outra metade como prova de racismo e, sem o mais mínimo fundamento comparativo, proclamar que esse racismo aumentou durante a ditadura militar (como se a própria noção de “aumentar” não fosse comparativa) é simplesmente expelir ódio por meio de mentiras.

Mas o Sr. Costa, repito, não tem fama de fanático odiento. Se tivesse, estaria tudo normal. Ninguém diz que o Sr. Costa é um agitador de extrema-esquerda. Ao contrário, a linguagem dos agitadores de extrema-esquerda tornou-se normativa, obrigatória e mainstream na mídia brasileira e nas classes falantes em geral – de tal modo que basta você resmungar um pouquinho contra ela e você é que é instantaneamente apontado como um perigoso extremista de direita, sem precisar para isso ter advogado jamais qualquer medida extrema contra quem quer que fosse.

Mais ainda, o Sr. Costa, na mesma medida em que abomina comparações e as faz no mesmo instante, ressaltando unilateralmente o horror da ditadura brasileira para fazê-la parecer ainda pior do que a argentina ou a cubana, nos sonega, novamente, um dos termos da comparação. Quantos entre os prisioneiros políticos de Cuba eram e são negros e mulatos? Quantos no Brasil? Quantos o eram entre os 17 mil fuzilados do regime cubano? Quantos entre os trezentos terroristas mortos pela nossa ditadura? Condenar comparações e em seguida fazê-las da maneira mais parcial, sectária e deformada é coisa de uma vigarice tão flagrante que em outras épocas qualquer esquerdista normal se recusaria a uma trapaça desse calibre. Mas o Sr. Costa não é um esquerdista normal. Ele é um esquerdista do ano 2009 no Brasil. E isso é muito diferente de sê-lo em qualquer outra parte do mundo e em qualquer outra época. No mínimo, essa condição basta para apagar, na mente do sujeito, esta obviedade gritante: se não é lícito dizer que uma ditadura foi pior que outra, também não pode sê-lo dizer que ela foi pior que ela mesma.

Nas origens do morticínio

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 26 de junho de 2008

Qual a maior causa de violência, morticínio, opressão e tirania que já se conheceu ao longo de toda a História humana?

Se fizermos essa pergunta ao cidadão comum, as respostas mais freqüentes apontarão o desejo de riquezas, a paixão nacionalista, o expansionismo imperialista, o fanatismo religioso ou ideológico, os preconceitos de raça etc.

Todas essas causas mataram pessoas e oprimiram povos, mas não o fizeram sempre.

1) Desejar riquezas não é o mesmo que extorqui-las à força; na maior parte dos casos esse desejo não só se realiza por meios inofensivos, mas ele precisa da paz e da ordem jurídica para alcançar suas metas. Não pode ser pura coincidência que os países mais ricos e prósperos sejam os menos agressivos e os mais democráticos. Também não pode ser mero acaso que jamais tenha havido uma guerra entre duas democracias capitalistas.

2) Todos os povos têm alguma paixão nacionalista, mas só um número pequeno dentre eles agride seus vizinhos em nome dela. Na maior parte dos casos, o nacionalismo exprime-se por meios culturais perfeitamente incruentos, isto quando não é apenas uma reação passiva de autodefesa psicológica contra ameaças de fora.

3) O fanatismo religioso, especialmente islâmico, é bastante demonizado pela mídia, mas, se somarmos o número de vítimas que ele fez desde o início do século, veremos que é irrisório em comparação com as mortes causadas pelas ideologias anti-religiosas. Na modernidade, o fanatismo religioso pode ser causa de conflitos, mas não de genocídio. Apontá-lo como tal é um chavão midiático sem nenhuma base na realidade.

Mesmo as guerras de religião que sacudiram o Ocidente e o Oriente desde a Antigüidade até o fim da Idade Média não produziram um número de vítimas que se comparasse aos das guerras e revoluções modernas sem causa religiosa.

4) O racismo, por fim, parece uma resposta adequada, por estar entre as causas da II Guerra Mundial e do Holocausto. Mas por que, entre tantos racismos que existem no mundo, um único chegou a desencadear uma catástrofe dessas proporções, enquanto os outros produziram somente efeitos locais bem mais modestos, isto quanto não se limitaram a cristalizar-se num estado permanente de hostilidade incruenta entre grupos raciais, tomando a forma da discriminação, do preconceito etc.? Em vez de confundir a parte com o todo, explicando a barbárie nazista pelo “racismo”, é preciso perguntar justamente o que o racismo alemão tinha de diferente dos outros racismos, para que chegasse a produzir resultados tão descomunais.

5) A expansão imperialista causou guerras, revoluções e repressões, mas muitas vezes – a maior parte delas – conseguiu realizar-sepor meios comerciais e culturais inofensivos, não raro levando a paz e a ordem a regiões conturbadas.

Cada uma dessas respostas resvala na verdade mas não chega sequer a tocá-la. Cada um dos fatores apontados pode produzir violência, morticínio, opressão e tirania, mas não o faz sempre ou necessariamente, não o faz por um movimento autônomo, pela mera exteriorização da sua dialética interna, e sobretudo não o faz sem a intervenção de um outro fator, geralmente não mencionado na lista dos demônios populares. Esse fator não só investe os outros de uma força mortífera que eles não têm por si próprios, mas ele por si mesmo, agindo sozinho e com pouca ou nenhuma ajuda deles, pode produzir e tem produzido os mesmos efeitos letais que produziu ao fundir-se com eles.

A maior causa de violência, morticínio, opressão e tirania é a crença de que é possível inventar um futuro melhor para toda a humanidade ou para uma parte significativa dela e realizá-lo através do poder político. Sem somar-se a essa crença, nenhuma das causas antes mencionadas teria um milésimo do seu potencial mortífero. Sem a promessa utópica, não atrairia multidões de militantes. Sem a concentração do poder político, não teria meios de ação. Poder concentrado em torno de uma promessa de futuro: eis a fórmula infalível do genocídio.

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