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Lindeza moral incomum

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 9 de fevereiro de 2006

Quando em 2001 a elite petista de São Paulo se mobilizou para proteger Mauricio Norambuena, seqüestrador do publicitário Washington Olivetto, ela tratou de alardear que o seqüestro não fôra crime político, que seus autores não pertenciam mais ao MIR (braço armado do Partido Comunista chileno), que eram apenas ex-militantes agindo em proveito próprio. Mas, se Norambuena não tinha mais conexões políticas, por que tantos políticos se interessavam pelo seu destino? A pergunta já vinha respondida antes de formulada: era tudo uma simples iniciativa de direitos humanos, tão desprovida de teor político quanto o próprio seqüestro. Para tornar essa noção mais verossímil, os porta-vozes da campanha davam a entender que não gostavam nem um pouco dos seqüestradores, tipinhos egoístas que tinham abandonado a luta e agora se aproveitavam, para lucro pessoal, da prática adquirida em heróicos seqüestros políticos.

Na época, fiquei maravilhado com a destreza desse golpe de teatro que, por meio de premissas implícitas e elipses mentais, trazia embutidas cinco mensagens falsas e contraditórias de uma só vez, tão compactadamente que o público mal tinha tempo de separá-las e julgá-las uma a uma:

1 – Seqüestrar é feio, mas em proveito da esquerda é bonito.

2 – A esquerda continental já não se dedicava a essas truculências meritórias. Tornara-se pacífica, inofensiva e legalista como uma estátua de Rui Barbosa.

3 – Por louváveis que fossem, os seqüestros já não eram necessários politicamente e tinham sido abandonados, o que, embora fosse pura mudança de tática, devia ser considerado ainda mais louvável.

4 – Depois disso, a esquerda se tornara vítima de seus ex-militantes, que, perdidos seus ideais, se deixaram infectar de mentalidade capitalista e delinqüiam por lucro pessoal.

5 – Mas tão elevados eram os padrões éticos da coitadinha, que ela sobrepunha ao justo ressentimento a consideração dos direitos humanos desses traidores e, sem nenhum interesse político, se dispunha a defendê-los.

Era mesmo uma coisa linda. São Francisco e Madre Teresa, juntos, não fariam tanta caridade.

Agora vejamos os fatos e a lógica por trás da boniteza:

Fato 1: Os seqüestradores de Olivetto trabalhavam, sim, para o MIR chileno e não por conta própria. (Um deles, Cristián San Martín Morales, que em dezembro passado fugiu do cárcere de Temuco, Chile, acaba de afirmar isso claramente em mensagem à revista La Tercera, acompanhada de uma foto em que posa ao lado da bandeira da organização.)

Fato 2: A cúpula petista não podia ignorar isso, já que o PT, no Foro de São Paulo, tinha contato e estreita parceria com o MIR.

Lógica: Dada a unidade da estratégia revolucionária do Foro, a mobilização em favor de Norambuena não podia ter sido nenhuma iniciativa apolítica, mas a parte correspondente ao PT na divisão do trabalho entre duas organizações irmãs. Não se tratava de defender abstratamente direitos humanos, mas de reverter em proveito político e publicitário da esquerda a prisão do seqüestrador. Desde que existe esquerda no mundo, cada violência que ela pratica tem sempre na retaguarda uma organização legal pronta para, em caso de erro, entrar em ação por outros meios e tentar tirar vantagem do gerenciamento de danos.

A mobilização, em suma, foi um ato de cumplicidade com o seqüestro. Alguns dos medalhões utilizados para isso podiam ignorar o cálculo estratégico por tras da iniciativa, mas é impossível que todos o ignorassem.

Basta esse episódio para vocês verem que tipo de gente governa o país hoje em dia.

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Um coronel escreve ao JB reclamando que aquilo que eu disse dos oficiais nacionalisteiros não se refere só a eles, mas a todos os militares do Brasil, donde conclui que devo a eles uma retratação. Olhe aqui, coronel: se digo que um grupo está contra o espírito tradicional das Forças Armadas, não posso estar ao mesmo tempo acusando disso as próprias Forças Armadas. Aprenda a ler e não me amole.

Vampiros filosóficos

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 29 de dezembro de 2005

Expliquei num artigo anterior que a rígida separação de “ciência” e “fé” é uma fraude kantiana que a intelectualidade ativista endossou porque convinha a seus interesses, mais baixos e desprezíveis que os de qualquer investidor capitalista, já que este arrisca neles o seu próprio capital e ela o dos outros.

A filosofia kantiana inteira é um embuste, criado por um charlatão inconsciente que se imaginava honesto porque nem sabia o que era honestidade. Tanto não sabia, que achava uma intolerável improbidade a vítima mentir para o ladrão que pergunta onde está o dinheiro; e não via nada de mais em descumprir o prometido quando morre o infeliz a quem se fez a promessa. O sistema que consagra a obediência aos ladrões e o direito de ludibriar os moribundos é um caso de estupidez moral sublime.

Filosofias como as de Maquiavel, Kant, Hegel, Fichte, Rousseau, Marx, Nietzsche – as prediletas da modernidade –, mantêm você ocupado em destrinchar suas dificuldades internas, até você se dar conta de que elas são ainda mais confusas do que a realidade que alegam explicar. Fazem parte do problema e não da solução.

A diferença entre elas e as filosofias de Platão, Aristóteles, Sto. Tomás, Duns Scot, Leibniz ou mesmo Schelling, é que estas têm em si o princípio da sua própria inteligibilidade, ao passo que aquelas sempre exigem o apelo a razões exteriores que as elucidem, ou até a explicações biográficas que tornem psicologicamente digerível o que logicamente é inaceitável. Como esses enxertos divergem entre si, jamais podem resolver o problema e se torna necessário multiplicá-los ad infinitum , o que torna aquelas filosofias ainda mais enigmáticas. São filosofias parasitas, sanguessugas, que não dão nada ao estudioso mas nutrem-se da seiva vivificante que ele próprio injeta nelas. Por isso mesmo exercem sobre a mente do coitado um fascínio hipnótico irresistível: quanto maior o investimento psicológico no vazio, maior a relutância em admitir o prejuízo, portanto maior a tendência de redobrar a aposta depois de cada novo fracasso. É preciso um bocado de coragem para se libertar de um vampiro. Na falta dessa coragem, adorna-se com o rótulo paradoxal de “fecundidade” a capacidade que uma filosofia tem de suscitar tentativas estéreis de enxergar racionalidade no irracional.

Um dos efeitos incontornáveis desse fenômeno é que o estudo da filosofia se desvia do esforço de compreender a realidade para a curtição sem fim dos enigmas internos da “obra”, da “estrutura”, do “texto” etc. A filosofia torna-se um fetichismo pedante, perdendo em substância cognitiva o que ganha em riqueza de vocabulário esotérico, palavras-de-passe, rituais de agregação etc. O prestígio adquirido na freqüentação desses jogos iniciáticos pode em seguida ser reinvestido no apoio a causas políticas que, por isso mesmo, ficam a priori imunizadas contra qualquer tentativa de exame filosófico sério. Quanto mais imbecil um slogan partidário, tanto mais respeitável ele fica parecendo, porque se sabe que, à menor provocação, um vasto cabedal de argumentos elegantemente absurdos pode ser convocado para prestigiá-los, desencorajando tanto o adversário leigo que se vê incapaz de discuti-los quanto o estudioso que sabe que ali não há nada para ser discutido. As novecentas páginas que D. Marilena Chauí consagrou a fazer de Spinoza um cabo eleitoral do PT são o mais célebre exemplo nacional desse gênero de discurso. Sua eficácia publicitária esteia-se inteiramente na certeza de que ninguém jamais as lerá.

Antigamente, uma filosofia não resistia à demonstração da sua inconsistência. Na nossa época, a facilidade mesma com que Roger Scruton arrasa os “Thinkers of the New Left” ou Alan Sokal desmascara as “Imposturas Intelectuais” imuniza os acusados contra a perda de prestígio. Para que serve demonstrar a irrealidade de filosofias que jamais pretenderam ter algum contato com a realidade, exceto aquele, externo e retroativo, da serventia política que dão à imagem de seus autores?

Em tempo

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 27 de outubro de 2005

No artigo da semana passada, critiquei o manifesto dos clubes militares por ater-se à denúncia dos delitos mais vistosos e de menor gravidade, omitindo o crime de alta traição que o presidente da República confessou no seu discurso de 2 de julho (v. http://www.olavodecarvalho.org /semana/050926dc.htm ).

Isso não quer dizer, é claro, que eu discorde do documento nos demais aspectos. Ao contrário: tudo o que está dito ali é certo e merece apoio. Parece-me apenas que, se o partido governante e a esquerda como um todo têm o direito ao exercício da guerra ideológica, igual direito devem ter os brasileiros em geral, militares ou civis, em vez de acomodar-se à camisa-de-força do legalismo ideologicamente “neutro” que lhes restou depois de três décadas de “revolução cultural” gramsciana.

O que nos levou à situação presente foi a conivência de todos com a ditadura mental imposta à mídia e ao sistema educacional pelo ativismo comunista discreto ou ostensivo. Todo anticomunismo foi banido desses canais desde há mais de trinta anos, enquanto a louvação descarada de assassinos e terroristas de esquerda foi ganhando espaço até tornar-se parte essencial e obrigatória da cultura elegante.

O PT não é criminoso só porque rouba. É criminoso porque é comunista, porque conspira com ditadores e narcotraficantes para espalhar o regime chavista-fidelista por toda a América Latina e para transformar o continente inteiro numa arma de guerra a serviço do que existe de pior no mundo.

Se até oficiais das Forças Armadas se sentem inibidos de denunciar isso, é porque a cultura esquerdista dominante obteve sucesso em moldar a consciência de seus inimigos, limitando seu discurso a pontos insuscetíveis de controvérsia ideológica. A corrupção pandêmica que o PT espalhou no país foi o resultado do excesso de poder advindo da hegemonia cultural. O próprio José Dirceu não teria podido transformar-se no invencível capomafioso do petismo se não fosse, acima de tudo, um agente do serviço secreto cubano e o oficial de ligação entre Lula e Fidel Castro. Podar as ervas daninhas sem arrancar suas raízes ideológicas e estratégicas é dar ao povo a ilusão de que existe comunismo honesto, é convidar o Brasil a cair de novo no mesmo engodo.

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Quando se quer difamar alguém ante uma platéia intelectualmente fraca, páginas e páginas de acusações não funcionam tão bem quanto uma insinuação breve, de sentido vago e incerto, disparada no ar sem nenhuma explicação. Sempre haverá no auditório idiotas que, na ânsia de fingir que sabem do que o orador está falando, a preencherão imediatamente com algum significado arbitrário e sairão alardeando que se trata de informação segura e arqui-comprovada. Cada novo receptor da mensagem, não desejando confessar que está por fora de tão importante matéria, lhe acrescentará de bom grado seu próprio aval, de modo que o acúmulo de credulidades beócias transformará em moeda corrente aquilo que, na origem, era apenas um malicioso nada.

O comentarista econômico Luís Nassif acaba de usar contra mim esse artifício publicitário superlativamente porcino, rotulando de “fixação”, tout court , a minha insistência em divulgar certos fatos que a classe jornalística omite com insistência maior ainda. Ele não fez isso, é claro, por hostilidade à minha pessoa, mas só pelo desejo de mostrar serviço a quem pode lhe prestar serviço em troca. Ele não quis me esculhambar: quis apenas me usar de papel higiênico para poder exibir à sua clientela uma bundinha intelectual limpinha. Curiosamente, ele diz que “esperto” não é ele: são aqueles que me acompanham na luta inglória, trabalhando de graça para jornaizinhos eletrônicos ou escrevendo artigos de duzentos reais para a Folha de S. Paulo , só para vê-los diluídos num oceano de bem remunerada propaganda esquerdista. Mais estranhamente ainda, ele os chama também de “incultos”, mas se esquiva de citar o nome de um só deles, evitando assim um confronto de habilitações intelectuais que lhe seria fatalmente desastroso.

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