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O direitista ideal

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de maio de 2014

          

Entre os direitistas chiques no Brasil de hoje, a maior das virtudes é a pusilanimidade: nunca diga nada com que a mídia já não tenha concordado, nunca cite o Olavo de Carvalho ao repetir o que ele dizia dez anos antes, e sobretudo capriche na moderação ao ponto de não parecer mais direitista do que o compatível com a admiração pelas grandes figuras do esquerdismo internacional, especialmente Barack Hussein Obama.

Nelson Mandela, então, nem se fala. Afinal, quem sintetiza melhor os ideais da “zé-lite” do que um comunista vendido aos Rockefellers? (Melhor que isso, só o Lula, homenageado na mesma semana, em Davos e em Havana, por sua conversão ao capitalismo e por sua fidelidade ao comunismo.) Sem dizer pelo menos umas quinze palavrinhas em louvor desse grande homem, ninguém no Brasil adquire o salvo-conduto para ser um direitista de respeito.

Se ao criticar alguma idéia do Frei Betto você puder chamá-lo de “meu querido”, você será, no consenso da mídia, o direitista perfeito. Afinal, só pessoas de mentalidade truculenta, reencarnações talvez do nefando Dr. Fleury, podem imaginar que os comunistas têm más intenções.

Assegure a seus leitores e ouvintes que a diferença entre esquerda e direita é só a preferência pelo intervencionismo estatal ou pela economia de mercado; e, quando um comunista aparecer fazendo a apologia do livre comércio – como, em seu tempo, já o fizeram Karl Marx e Lênin, sem que você o saiba –, elogie-o por ser um esquerdista esclarecido, “aberto à modernidade”.

E nunca esqueça de dizer que quem não foi comunista aos dezoito anos não tem coração. Mediante essa frase maravilhosa, você provará superior moderação e equilíbrio, dividindo o universo em duas partes iguais e concedendo ao comunismo o monopólio da virtude moral, ao capitalismo o da eficiência econômica. Se puder, cite em apoio dessa tese a Fábula das Abelhas de Bernard de Mandeville ou alguma coisinha de Ayn Rand.

Sobretudo, nunca tenha a menor consciência de que, ao fazer isso, você é o bilionésimo que consagra como uma fatalidade metafísica o abismo entre o ideal e o real, o qual um século e meio atrás Karl Marx já identificou como um chavão infalível do pensamento burguês.

Em suma: seja um burguês, pense como um burguês, fale como um burguês. Seja aquele adversário padrão do qual a esquerda jamais tem de esperar alguma surpresa.

Ah, em tempo: ao falar do PT, chame-o de “jurássico”. Isso não pode faltar. O primeiro a chamar a esquerda de “jurássica” foi Roberto Campos, nos anos 70 do século 20. Naquele momento, foi um achado. Entre os meus modestos títulos de glória literária, está o de jamais ter copiado essa expressão. Mas há pessoas que, quando a empregam hoje em dia, sentem um orgasmo de originalidade estilística. E seus leitores acreditam piamente que aí reside o argumento mais devastador contra o petismo. Use esse termo repetidamente e obterá um lugar no conselho consultivo de alguma entidade liberal.

Quando alguém lhe mostrar algum sinal patente da hegemonia gramsciana nas universidades ou no show business, responda que isso é paranóia, já que indícios similares aparecem de montão nos EUA, país onde, como todo mundo sabe, não existem comunistas. Afinal, o ex-ou-futuro-presidente Lula já não nos ensinou que (sic) “Não existe nada de mais anticomunista do que o cinema americano”?

Se por acaso ouvir falar da invasão muçulmana no Ocidente, diga, com ares de superior tranquilidade olímpica, que nada disso existe, que o terrorismo islâmico é puro atraso cultural e fundamentalismo religioso, coisas já superadas no nosso mundo de progresso científico-tecnológico.

E se algum engraçadinho vier lembrar que em 2002 você assegurou que a vitória do PT era impossível; que você um dia jurou que o Foro de São Paulo não existia; que uns anos atrás você dizia que a ligação PT-Farc era invencionice de adeptos da ditadura; que você acreditou que Barack Hussein Obama era a salvação dos EUA; que a idéia de a Rússia invadir países em torno sempre lhe pareceu loucura de saudosistas da Guerra Fria; e que, em suma, você nunca acertou uma previsão ou análise política ao longo de toda sua porca vida, faça como todos os seus iguais. Diga: “o que vem de baixo não me atinge”, e continue, impávido colosso, treinando diante do espelho essa esplêndida aparência de normalidade, maturidade e equilíbrio, que tem sido o segredo do seu sucesso na existência.

Consciência limpa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de setembro de 2010

Já tendo demonstrado que Vladimir Safatle possui a quota de burrice requerida para o preenchimento do cargo de professor de filosofia na USP (v. “Cabeça de uspiano” em http://www.olavodecarvalho.org/semana/090618dc.html e http://www.olavodecarvalho.org/semana/090623dc.html), não me espanta que ele agora apareça clamando pela implantação de um regime totalitário no Brasil, nem muito menos que o faça com o ar inocente de quem defendesse, com isso, a mais pura normalidade democrática.

Não o acuso de ser fingido, hipócrita, manipulador. Ele não usa da língua dupla orwelliana para nos enganar. Ao contrário, ele deixou-se introxicar de doublespeak ao ponto de que, em vez de usá-la, é usado por ela, ecoando, com a inimputabilidade mecânica de um boneco de ventríloquo, o que quer que ela lhe instile na caixa craniana. Não imaginem portanto que ele tente nos vender, maquiavelicamente, o totalitarismo com o nome de democracia. Não! Ele acredita mesmo, com pia sinceridade, que totalitarismo é democracia, democracia é totalitarismo. Almas caridosas podem nutrir a esperança de que um dia ele venha a tornar-se capaz de distinguir ao menos um pouquinho essas duas coisas, mas para tanto ele necessitará de umas mil reencarnações, e eu não acredito em reencarnação. Safatleza não tem cura.

Em artigo recém-publicado na Folha (onde mais poderia ser?), ele critica os candidatos do PSDB por terem se permitido, na campanha eleitoral, dizer duas ou três coisas que estão um tanto à direita da linha oficial petista. O partido de José Serra e Índio da Costa, proclama o referido, “só teria alguma chance se tivesse ensaiado uma reorientação programática a partir de um discurso mais voltado à esquerda”.

Com toda a evidência, a democracia dos sonhos do prof. Safatle consiste na livre concorrência entre vários partidos iguais ao PT. Insisto: não creio que ele tenha o intuito de ludibriar a platéia ao usar a palavra “democracia” para designar o que é, em substância, um totalitarismo mal e porcamente camuflado – o regime de um partido único com nomes diversos. Ao contrário, ele acha mesmo que democracia é isso e nunca lhe ocorreu nem ocorrerá que possa ser outra coisa, tão funda, natural e espontânea é a sua crença de que à direita da esquerda só existe o inferno. E na cabeça dele – há indícios de que possui uma –, essa crença não é nem um pouco maniqueísta, pois maniqueísmo é coisa da direita, não é?

Eu sempre disse que o PT não era um partido normal, que aceitasse o rodízio de poder com outros partidos de direita ou de esquerda. O PT, repito há duas décadas, é um partido revolucionário, totalitário, firmemente decidido a banir da vida política tudo o que não seja ele próprio ou igual a ele próprio. O fato de que venha realizando esse programa com discrição homeopática e obstinada lentidão, em vez de fazê-lo aos gritos e estampidos como o partido governante da Venezuela, só torna Lula diferente de Chávez desde o ponto de vista estético: cada um é feio a seu modo. Lula é até um pouco mais, porque à força de facadas anestésicas logrou persuadir a direita a deixar-se morrer sem dizer um “ai”, ao passo que sua equivalente venezuelana não só continua gemendo mas de vez em quando arranca uns gemidos do próprio Chávez. O prof. Safatle sente-se inconformado de que a uniformização esquerdista do cenário eleitoral brasileiro não tenha alcançado aquele cume de perfeição em que nenhuma ínfima partícula de direitismo residual pode aparecer nem mesmo por equívoco, nem mesmo por lapso de atenção da parte de esquerdistas leais.

Tanto é assim que, ao chamar de “errática” a campanha de José Serra, assinalando a incoerência entre a denúncia das ligações PT-Farc e os elogios concomitantes – até exagerados – do candidato oposicionista à pessoa do sr. Presidente da República, em qual dessas atitudes vê ele um erro imperdoável? Em acusar o criminoso com provas factuais sobrantes ou em louvá-lo com base na mera opinião pessoal? Adivinhem. No entender do prof. Safatle, o sr. Serra, para ser um candidato sério, honesto, consistente, deveria, ao falar de Lula, ocultar os fatos desabonadores que conhece e mencionar somente as belas qualidades que imagina. O sr. Serra só mereceria o respeito do Prof. Safatle caso resistisse à tentação da sinceridade e se ativesse ao nobre exercício de um coerente puxa-saquismo.

Esse raciocínio não é nada estranho, no fundo. Um sujeito que concebe a democracia como eliminação de toda oposição ideológica só pode mesmo chamar de honestidade e seriedade aquilo que o restante da espécie humana entende por leviandade, vigarice e hipocrisia.

Quando digo que a mentalidade revolucionária enxerga tudo invertido, é disso que estou falando. O prof. Safatle exemplifica-o com aquela candura perversa de quem conserva a consciência limpa porque não tem nenhum contato com ela.

Respostas infalíveis

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de agosto de 2010

Em 2002, tivemos uma disputa presidencial entre quatro candidatos que em uníssono alardeavam a condição de esquerdistas como o seu mais elevado título de glória. Tão perfeita homogeneidade ideológica, que nem mesmo os militares tinham ousado impor ao cenário político nacional, só se vira, antes, nas eleições soviéticas ou chinesas, mas a “grande mídia” inteira fez questão de abafar a estranheza do fenômeno e, com aquela mistura de cinismo e estupidez genuína que tão bem a caracteriza, celebrou o pleito como uma apoteose da democracia.

Em 2006, o candidato tido como de direita por seu adversário rejeitava esse rótulo e, provando-se bom menino, evitava qualquer demonstração de anti-esquerdismo, por tímida que fosse. O simples fato de que ele tampouco se declarasse esquerdista foi aceito universalmente como prova cabal de “pluralismo”. Quod erat demonstrandum.

Finalmente, em 2010, chegamos ao ponto em que todas as precauções retóricas já se revelam desnecessárias: o próprio presidente da República sente-se à vontade para proclamar a completa ausência de direitistas entre os candidatos à sucessão como sinal de perfeição democrática. A democracia, segundo S. Excia. e a unanimidade das mentes iluminadas que nos guiam, consiste portanto numa assembléia de esquerdistas que se xingam uns aos outros de direitistas. That’s all. Que mais se poderia desejar? Toda aspiração diversa é extremismo, saudades da ditadura, racismo, fanatismo genocida ou, como na velha União Soviética, sintoma de desequilíbrio mental. Um momento. Eu disse “aspiração”? Não é preciso nem isso. Basta que você, sem nenhuma divergência ideológica, se sinta um pouco incomodado com a aliança PT-Farc, e todo o repertório dos insultos autoprobantes será despejado sobre a sua cabeça, sem que lhe reste, diante de tão irrespondíveis argumentos, senão o último recurso dos bate-bocas infantis: macaquear a ofensa, chamar o acusador de direitista.

Se a administração estatal logrou controlar a economia ao ponto de emitir notas fiscais antes que algum comerciante tenha a ousadia de fazê-lo, o aparato político-ideológico da esquerda conseguiu dominar tão bem o universo mental da nacionalidade que já ninguém, dentro do território pátrio, pode desviar-se um só milímetro da semântica oficial, ou ao menos não pode fazê-lo sem o sentimento constrangedor de ter cometido uma gafe imperdoável, talvez um crime hediondo.

Para maior felicidade geral, o fato de que esse estado de coisas coincida, no tempo, com a prosperidade dos grandes grupos econômicos que têm negócios com o governo é festejado como prova de sucesso do capitalismo nacional, embora, na ciência econômica e no são entendimento humano, ele defina precisamente o socialismo. Mas os brasileiros já se habituaram tão confortavelmente a chamar as coisas pelos nomes inversos que já nem reparam nesse detalhe. Por exemplo: decorridos vinte anos da fundação do Foro de São Paulo, o fato de que esse monstrengo domine uma dúzia de países e ocupe a presidência da OEA é evidência irrefutável de que ele é apenas um bando de velhinhos saudosistas, sem força ou periculosidade que mereçam atenção. Experimente lançar dúvida sobre essa certeza augusta num encontro de empresários, e agüente, se puder, os olhares de desprezo.

Nada, nenhuma demonstração lógica, evidência factual ou desgraça espetacular – nem mesmo a tragédia rotineira dos cinqüenta mil brasileiros assassinados por ano – parece capaz de despertar as nossas classes rechonchudas do seu otimismo beócio, sustentado nos quatro pilares da ortodoxia elegante, quatro fórmulas infalíveis que a tudo respondem como se tivessem saído fresquinhas da oficina literária de Bouvard e Pécuchet:

1. “Lula mudou.”

2. “O comunismo acabou.”

3. “Direita e esquerda não existem.”

4. “Você quer voltar aos tempos da Guerra Fria.”

Quem, diante de tamanha sapiência, ousaria discutir?

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