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De quem é a festa?

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial), 5 de outubro de 2006

Se algo as eleições de domingo demonstraram, foi a monstruosa desproporção entre a esquerda e seus concorrentes, que se tornou cláusula pétrea da regra do jogo político entre nós. A diferença começa nos objetivos mesmos: a esquerda quer e faz tudo para destruir seus adversários, arruinar sua reputação, excluí-los da política, derrubá-los de sua posição social e econômica e assassiná-los psicologicamente, de modo que percam até o desejo de se reerguer um dia. Eles, em resposta, contentam-se com disputar votos muito polidamente, muito delicadamente, com todo o cuidado de não ferir a dignidade do concorrente esquerdista e de preservá-lo intacto para as eleições seguintes.

A esquerda, contra eles, usa tudo e mais alguma coisa. Eles, até quando têm nas mãos uma carga de TNT suficiente para fazer em cacos o prestígio esquerdista, tratam de fazê-la explodir em algum recinto limitado, onde não machuque a estrutura de poder da esquerda, muito menos as bases da sua hegemonia ideológica, mas apenas alvos individuais selecionados, sem dano para o conjunto. O pouco de maquiavelismo impiedoso que se usou contra políticos esquerdistas nos últimos vinte anos veio sempre do PSDB, no fim das contas, ele próprio um partido de esquerda, sem qualquer divergência ideológica séria com os demais que vieram do berço comum, a resistência esquerdista ao regime militar.

Pior ainda: a esquerda luta em todas as frentes, buscando e obtendo o total domínio cultural, moral e psicológico da sociedade, enquanto seus adversários abdicam de tudo isso e consentem docilmente em brincar de política como meninos bem comportados, num campo sociológico previamente delimitado pelo inimigo, de acordo com as regras estabelecidas por ele e amoldando-se passivamente (ou até inconscientemente) aos valores e metas que ele escolheu.

Qualquer vitória eleitoral, nessas condições, é uma bolha de sabão que se desfaz ao primeiro vento mais forte. Poder político sem hegemonia é castelo no ar, é fogo-fátuo, é aparência de poder sem fundamento na realidade social. Fernando Collor e Antonio Carlos Magalhães são exemplos notórios: confiantes na popularidade pessoal, julgavam-se indestrutíveis. Não resistiram ao primeiro soco. Caíram porque não tinham plano estratégico, substantividade ideológica e respaldo cultural. Tinham apenas uma boa propaganda eleitoral.

O bom-mocismo de Geraldo Alckmin, recusando-se a dizer uma palavra contra o Foro de São Paulo, é a imagem perfeita do descompromisso ideológico autocastrador que gera e destrói os Collors e os Magalhães. Alckmin pode até eleger-se, talvez, aproveitando-se de circunstâncias momentâneas que o favorecem. Seis meses depois, estará na lata de lixo da história ou lambendo os pés de seus inimigos em troca de uma sobrevivência.

Na verdade, tudo o que o PT perdeu nestas eleições, perdeu em favor de outros partidos de esquerda, inclinados no momento a ostentar distância da sujeira petista, mas que quase infalivelmente voltarão às boas com o lulismo ao primeiro sinal de perigo geral para a esquerda. On revient toujours à ses premiers amours e um divórcio de mero oportunismo, é ainda mais instável que um casamento de ocasião.

Quando uma população como a de São Paulo, repudiando o lulismo e até tendo o bom senso de dar ao candidato conservador Guilherme Afif uma votação expressiva, põe tudo a perder elegendo senador um mentecapto no qual só se pode votar por piedade, está na hora de a “direita” lembrar que antilulismo não é antipetismo, e antipetismo não é anti-esquerdismo. Do jeito que as coisas vão, até uma derrota de Lula pode representar no fim das contas uma vitória geral da esquerda. O luto político na casa de Dona Marisa pode ser festa no Foro de São Paulo.

Saindo do exílio

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 11 de maio de 2006

Por duas ou três décadas, a opinião esquerdista teve a hegemonia completa do espaço público brasileiro, ocupando as ruas, as cátedras, as colunas de jornal e o horário nobre da TV com uma empáfia fora do comum, sem encontrar a mínima resistência.

Tão incontestado foi seu monopólio, que suas miúdas divergências internas acabaram sendo consagradas como sinônimos de “oposição”, suprimindo a possibilidade mesma de uma oposição genuína. Expulsa, caricaturada, aviltada, achincalhada sem chance de defesa, a “direita” tornou-se tão estranha e impensável no ambiente nacional, que, quando o tucanato foi posto oficialmente no lugar dela, não havia mais ninguém capaz de notar a diferença.

Os próceres esquerdistas embriagaram-se de hegemonia ao ponto de acreditar mesmo que a livre discussão entre suas próprias facções era o suprassumo da diversidade e que qualquer opinião frontalmente oposta ao conjunto era uma ameaça às instituições democráticas, uma trama diabólica do Pentágono.      

Nas universidades, duas gerações de estudantes foram adestradas, como matilhas de cães, para zelar pela segurança de seus treinadores, arreganhando pavlovianamente os dentes à mera suspeita da presença de liberais e conservadores (“fascistas”, no seu vocabulário de reflexos condicionados).

Com subserviência abjeta, banqueiros, empresários, potentados da mídia e até políticos tidos como “conservadores” (no sentido brasileiro do termo, isto é, oportunistas sem convicção alguma) bajularam a presunção insana da liderança esquerdista e a alimentaram com dinheiro e cargos, na esperança estúpida de apaziguá-la, tremendo de medo por dentro mas fazendo cara de espertos e fingindo orgulho de ciscar as migalhas de poder caídas da mesa da nomenklatura (hoje estão todos na lista da Receita Federal, aguardando sua vez de ser transmutados em Paulo Salim Maluf, Luiz Estevão ou Eliana Tranchesi).

Nesse panorama, não é de espantar que os poucos remanescentes liberais e conservadores sinceros se isolassem até geograficamente, fazendo do Rio Grande do Sul o único Estado brasileiro no qual era permitido estar um pouco à direita do PSDB e no qual, por isso mesmo, a soberba petista acabou por ser derrubada para não se levantar, talvez, nunca mais.

Ano após ano, um valente grupo de empresários promoveu ali manifestações públicas de pró-capitalismo explícito inconcebíveis no resto do país: as memoráveis sessões do “Fórum da Liberdade” – uma arena democrática onde as estrelas esquerdistas abandonavam por momentos as delícias do monólogo triunfante e, expostas ao confronto aberto, saíam sempre de rabo entre as pernas.

Um ignóbil acordo espontâneo da mídia nacional, porém, ocultou sob total silêncio esses acontecimentos político-culturais de primeira grandeza, limitando ao território gaúcho o exercício obsceno da liberdade de divergir.

Daí a importância imensurável do seminário que a Associação Comercial de São Paulo vai realizar no Hotel Caesar Business, na capital paulista, nos dias 15 e 16 de maio, sob o título “Democracia, Liberdade e o Império das Leis”. Pela primeira vez em décadas, as idéias pró-capitalistas saem do heróico exílio gaúcho e ousam se exibir em público na própria terra natal do capitalismo brasileiro, de onde a covardia e a omissão de tantos beneficiários da liberdade de mercado as haviam banido em prol do oficialismo de ocasião e do puxa-saquismo masoquista.

Sendo eu mesmo um dos conferencistas (por vídeo), não posso expressar aqui toda a alegria libertadora que o acontecimento me infunde. Só posso dizer que, com a presença de estudiosos de primeiro escalão como Guy Sorman, Alejandro Chafuen, Tim Goeglein, Clifford May e Ives Gandra da Silva Martins, entre outros, o seminário promete mostrar um pouco da superioridade intelectual do pensamento pró-capitalista, fenômeno reconhecido mundialmente, que só continua a ser segredo num país que tem por presidente um semi-analfabeto de terno Armani e por ministro da Cultura um folião boboca.

Feliz Ano Novo? Que cinismo!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de dezembro de 2005

O Brasil entra em 2006 nas seguintes condições:

(1) O governo federal está nas mãos de um partido que, subindo ao poder sobre os cadáveres das reputações de seus adversários, usou de sua fama de restaurador da moralidade como camuflagem para poder criar o mais vasto e eficaz sistema de corrupção política já observado neste país.

(2) Ao longo de sua ascensão, apoiada na hegemonia previamente conquistada pela “revolução cultural” gramsciana, esse partido desarmou completamente seus possíveis adversários ideológicos, ao ponto de nas eleições presidenciais de 2002 seu candidato não ter de concorrer senão com imitadores do seu discurso, cada um tentando provar que era o mais esquerdista dos quatro. E tão completo era o domínio exercido pela esquerda sobre a mentalidade pública, que essa disputa em família, com total exclusão de discordância ideológica por mais mínima que fosse, foi celebrada por toda a mídia cúmplice como “a mais democrática de toda a nossa História”. Neurose, dizia um grande psicólogo que conheci, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. O Brasil continuará doente enquanto não recordar e desmascarar a farsa com que aceitou alegremente colaborar em 2002.

(3) O deslocamento do fiel da balança para a esquerda falseou todo o quadro das opções políticas, ao ponto de que hoje a hipótese mesma de um discurso de direita, na linha do Partido Republicano americano ou do Partido Conservador inglês, se tornou inviável e inconcebível no Brasil. O máximo de direitismo admitido é o do PSDB, partido pertencente à Internacional Socialista e comprometido a implantar no Brasil todas as mutações sociais e culturais defendidas pela esquerda mundial, como o abortismo, o casamento gay, o “direito alternativo” etc. Eliminada a possibilidade de divergências de fundo, sobraram apenas a disputa de cargos e o bombardeio mútuo de acusações de corrupção: a política reduziu-se a um bate-boca entre quadrilhas de ladrões. O PFL, que poderia ter representado a alternativa ideológica ao consenso socialista, abdicou de seu dever e acomodou-se à função de tropa auxiliar de uma das quadrilhas.

(4) Como nem a esquerda petista nem seus adversários tucanos conseguiram conceber nenhuma alternativa viável à política econômica “ortodoxa” do FMI, esta se mantém como orientação dominante desde o governo FHC, sem perspectiva de ser abandonada por qualquer das facções que suba ao poder. À sombra da estabilidade econômica, erigida em único bem digno de ser preservado, a máquina de subversão instalada no governo está livre para transformar o sistema judiciário em instrumento da luta de classes, o ensino público em pregação do ódio anticapitalista, as instituições de cultura em megafones do discurso comunista mais estúpido e grosseiro que o mundo já ouviu. Ninguém liga. A lepra socialista pode se alastrar por todo o corpo da sociedade, dominar as consciências, perverter todas as relações humanas. Enquanto não mexer diretamente nas contas bancárias dos senhores barões, estes continuarão achando tudo lindo. A classe chamada dominante já não domina nada há muito tempo, está cercada e acuada, reduzida a viver de favores mendigados à elite comunista, mas como ainda tem dinheiro para gastar em Londres e Nova York, mantém a pose. E se tentamos lhe explicar o perigo que corre, responde com a clássica reação do covarde orgulhoso: estrangula o mensageiro das más notícias.

(5) A criminalidade triunfante já ultrapassou de há muito os limites dentro dos quais podia ainda se considerar um problema corrigível. Tornou-se um fato consumado, uma constante da natureza, um modo de ser, uma instituição. Segundo dados oficiais da ONU, são 50 mil homicídios por ano. Segundo pesquisas locais do jornalista espanhol Luís Mir, 150 mil. A polícia, intimidada pela superioridade bélica dos narcotraficantes e sobretudo pelo temor que lhe inspira o olhar malicioso da classe jornalística, se ocupa apenas de sobreviver e mostrar-se o mais inofensiva possível. Enquanto isso, o governo continua de namoro com as FARC e a intelectualidade esquerdista clama pela libertação de qualquer agente da narcoguerrilha colombiana que por acaso vá parar na cadeia, onde aliás é poupado de qualquer pergunta comprometedora.

(6) As Forças Armadas, enfraquecidas por sucessivos cortes de verbas, humilhadas e aviltadas por mentiras escabrosas alardeadas na mídia, começam a reagir como vítimas da síndrome de Estocolmo: distribuem condecorações a seus acusadores e buscam lisonjeá-los mediante efusões de anti-americanismo pseudopatriótico (o brigadeiro Ferola e a ESG em geral são ótimos nisso), na esperança de desviar contra um inimigo comum a hostilidade do establishment esquerdista ante o qual generais de inumeráveis estrelas tremem como dozelas assustadas.

(7) Os tribunais são dominados por juízes semi-analfabetos que abertamente desprezam a lei em nome de suas convicções políticas improvisadas, achando que a mais alta missão da Justiça é punir os capitalistas como exploradores do proletariado e libertar os assassinos e narcotraficantes como vítimas da sociedade malvada.

(8) Curiosamente, a maioria da população permanece apegada aos ideais proibidos: moral judaico-cristã, propriedade privada, direito de portar armas etc. Mas já não há ninguém que fale em nome dessa maioria. Mesmo os que compartilham das crenças populares não ousam defendê-las abertamente. O imenso espaço que a decadência de tudo o mais abre para o ingresso de um autêntico partido conservador no cenário nacional não tem quem o preencha. Conservadorismo significa fidelidade, constância, firmeza. Não é coisa para homens de geléia.

(9) Culturalmente, o Brasil está morto e enterrado. Já não tem nada em comum com aquele país dos anos 30-60, que se espelhava numa geração de escritores, pensadores e artistas capazes de ombrear-se aos de qualquer nação do mundo. Na época, “cultura” significava Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Marques Rebelo, Annibal M. Machado, José Guilherme Merquior, Nelson Rodrigues, Heitor Villa-Lobos, Herberto Sales, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva, Mário Ferreira dos Santos, Otto Maria Carpeaux, Gustavo Corção. Álvaro Lins, Augusto Meyer. Hoje cultura é o sr. Gilberto Gil, um pseudo-intelectual de miolo mole segundo ele próprio admite, não sem certo orgulho. Os discípulos da grande geração – Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro – esgotam-se na indecisão entre a fidelidade à consciência literária, que requer a sinceridade das “impressões autênticas”, como as chamava Saul Bellow, e o desejo de agradar os amigos bem situados na vida. Escritores e poetas autênticos – Alberto da Cunha Melo, César Leal, Ângelo Monteiro — vegetam na província, mais ignorados nos grandes centros do que o seriam nos tempos da Colônia. E o gênio fulgurante de Bruno Tolentino, sumido dos debates públicos, desprezado por suplementeiros literários que não seriam dignos de lhe amarrar os sapatos, vai se conformando com um papel obscuro, esquecido da missão de educador literário do Brasil, que um dia lhe coube por natureza e direito.

(10) Espiritualmente, a alma nacional oscila entre o oportunismo sociopático transformado em Ersatz do senso prático e o ódio político transfigurado em sucedâneo da moralidade. Ensinado nas escolas a papaguear slogans politicamente corretos, obrigado por lei a considerar que o canibalismo, os sacrifícios humanos ou rituais para tornar os inimigos sexualmente impotentes são expressões religiosas tão respeitáveis quanto a fidelidade judaica e a piedade cristã, o povo ainda não abdicou de seus velhos sentimentos morais, mas só os vive na esfera dos sonhos, incapaz de lhes dar a menor expressão concreta na vida real. O Papa João Paulo II acertou na mosca quando disse que “os brasileiros são cristãos na emoção, mas não na fé”. Quando querem expressar sua emoção religiosa em atos e palavras, a única linguagem que lhes resta é a da teologia da libertação ou a daquela velha mistura, tipicamente brasileira, de mística positivista-evolucionista, ocultismo vulgar e pseudomessianismo nacionalisteiro.

O mais impressionante de tudo é que a chamada elite, diante dessa destruição completa das bases civilizacionais do país, se recusa a tomar consciência da gravidade da situação e se apega desesperadamente à ilusão de que tudo se resolverá por si, sem nenhuma ação da parte dela.

O cinismo brutal de um lado, a irresponsabilidade covarde de outro – eis os dois pilares da sociedade brasileira do futuro, na qual só mesmo os cínicos e os irresponsáveis podem esperar sentir-se bem.

Votos de Ano Novo? Ora, façam-me um favor! Quem pode fazer votos de que tudo o que está acontecendo pare de acontecer, de que tudo o que não acontece, mas deveria, comece a acontecer? O Brasil não precisa de um milagre. Precisa da mais extraordinária conjunção de milagres que se poderia imaginar. E milagres, mesmo individualmente, jamais acontecem quando os possíveis interessados estão pedindo exatamente o contrário.

Tarados

Um sintoma miúdo, mas revelador, pode ilustrar o estado presente da alma nacional, tal como descrito acima.

Há um grupo de tarados na comunidade Orkut, da internet , que já escreveram mais de trinta mil páginas contra mim e, para cúmulo, esperam que eu leia tudo — como se eu me achasse tão interessante quanto eles me imaginam. Não criticam propriamente minhas opiniões, pois não chegam a apreendê-las com clareza bastante para isso. Fixam-se em detalhes que, por motivos ignorados, os irritam e desconcertam, entre os quais o meu penteado, não sei se demasiado provocante ou inócuo, a minha idade, que consideram um vício moral revoltante, e o fato insólito de eu ter filhas bonitas sem preencher as condições ideológicas requeridas para isso. Descritos com abundância de minúcias, meus defeitos ali apontados abrangem aparentemente toda a gama das possibilidades humanas, pois apareço ao mesmo tempo como gay e homofóbico, anti-semita e fanático sionista, moralista auto-reprimido e putanheiro assanhado etc. etc. Tendo-me colocado assim no centro da coincidentia oppositorum , os redatores do site chegaram a um ponto em que já nada podiam dizer contra mim que não fosse desmentido por alguma acusação anterior. A solução encontrada para essa dificuldade foi inventar-me de novo, moldando a minha figura segundo os requisitos apropriados para uma esculhambação em regra, sem contradições ou ambigüidades. Criaram então uma página especial do Orkut, usando o meu nome e fotografia e fazendo-se passar por mim. Preencheram a página com uma confissão de nazismo e espalharam convites para que os trouxas a freqüentassem, constatando com seus próprios olhos e até cérebros, caso os tivessem, a minha militância nazista em ação. Ficou assim provado ser eu um completo F. D. P., quod erat demonstrandum . Com base em evidências tão sólidas, tornou-se mesmo imperativo reeditar ali uns velhos e já quases esquecidos apelos à supressão física da minha execrável pessoa, acompanhados de indicações, infelizmente um tanto desatualizadas, dos lugares onde os interessados na minha execução sumária podem mais facilmente me encontrar e me pegar de jeito.

Há mais de mil pessoas envolvidas nesse empreendimento, a maioria delas portadora de diplomas universitários e pertencente, destarte, à parcela mais esclarecida da população, pela qual não se chega sequer a formar uma vaga idéia do que poderiam ser as menos esclarecidas.

Nenhuma dá sinal de perceber algo de criminoso nas ações do grupo, e suspeito que muitas, ou quase todas, se informadas de que estão sujeitas às leis brasileiras como quaisquer outras criaturas residentes no país, se mostrariam sinceramente indignadas ante essa pretensão intolerável.

Bem ao contrário, todas se acreditam movidas pelos mais altos sentimentos humanos, pairando angelicamente acima de mesquinharias penais que só um grosseirão inconveniente como eu seria capaz de querer introduzir numa conversação tão sublime.

Somente umas duas ou três vezes examinei o material ali publicado, comentando-o da maneira que me pareceu esteticamente mais adequada ao ambiente, isto é, mediante qualquer gozação sarcástica e cabeluda que me ocorresse no momento.

Eu queria só que vocês vissem a expressão de susto e revolta com que aquelas almas delicadas reagiram às minhas vulgaridades! Nunca vi tanta dignidade ofendida, tanta santidade aviltada, tantas lágrimas de autopiedade coletiva, tantas efusões de consolação mútua, carinho reparador e juras de vingança acompanhadas de menções pejorativas aos membros da minha família. Uma coisa comovente mesmo.

Se eu quisesse inventar essa situação, não conseguiria. Não sou nenhum Franz Kafka, nenhum Karl Kraus, nenhum Eugène Ionesco para conceber personagens como esses. Só a realidade brasileira do momento, moldada por quatro décadas de “revolução cultural”, pode criá-los. E até a capacidade de descrevê-los me falta, como faltaria talvez até àqueles três autores, cuja imaginação do absurdo tinha limites.

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