Aula inaugural do novo curso do prof. Olavo de Carvalho
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Olavo de Carvalho
OrdemLivre.org, 1 de junho de 2011
Quando se pergunta qual o conceito que fazemos de uma sociedade justa, a palavra “conceito” entra aí com um sentido antes americano – pragmatista – do que greco-latino: em vez de designar apenas a fórmula verbal de uma essência ou ente, significa o esquema mental de um plano a ser realizado. Nesse sentido, evidentemente, não tenho conceito nenhum de sociedade justa, pois, persuadido de que não cabe a mim trazer ao mundo tão maravilhosa coisa, também não me parece ocupação proveitosa ficar inventando planos que não tenciono realizar.
O que está ao meu alcance, em vez disso, é analisar a ideia mesma de “sociedade justa” – o seu conceito no sentido greco-latino do termo – para ver se faz sentido e se tem alguma serventia.
Desde logo, os atributos de justiça e injustiça só se aplicam aos entes reais capazes de agir. Um ser humano pode agir, uma empresa pode agir, um grupo político pode agir, mas “a sociedade”, como um todo, não pode. Toda ação subentende a unidade da intenção que a determina, e nenhuma sociedade chega a ter jamais uma unidade de intenções que justifique apontá-la como sujeito concreto de uma ação determinada. A sociedade, como tal, não é um agente: é o terreno, a moldura onde as ações de milhares de agentes, movidos por intenções diversas, produzem resultados que não correspondem integralmente nem mesmo aos seus propósitos originais, quanto mais aos de um ente genérico chamado “a sociedade”!
“Sociedade justa” não é portanto um conceito descritivo. É uma figura de linguagem, uma metonímia. Por isso mesmo, tem necessariamente uma multiplicidade de sentidos que se superpõem e se mesclam numa confusão indeslindável. Isso basta para explicar por que os maiores crimes e injustiças do mundo foram praticados, precisamente, em nome da “sociedade justa”. Quando você adota como meta das suas ações uma figura de linguagem imaginando que é um conceito, isto é, quando você se propõe realizar uma coisa que não consegue nem mesmo definir, é fatal que acabe realizando algo de totalmente diverso do que esperava. Quando isso acontece há choro e ranger de dentes, mas quase sempre o autor da encrenca se esquiva de arcar com suas culpas, apegando-se com tenacidade de caranguejo a uma alegação de boas intenções que, justamente por não corresponderem a nenhuma realidade identificável, são o melhor analgésico para as consciências pouco exigentes.
Se a sociedade, em si, não pode ser justa ou injusta, toda sociedade abrange uma variedade de agentes conscientes que, estes sim, podem praticar ações justas ou injustas. Se algum significado substantivo pode ter a expressão “sociedade justa”, é o de uma sociedade onde os diversos agentes têm meios e disposição para ajudar uns aos outros a evitar atos injustos ou a repará-los quando não puderem ser evitados. Sociedade justa, no fim das contas, significa apenas uma sociedade onde a luta pela justiça é possível. Quando digo “meios”, isso quer dizer: poder. Poder legal, decerto, mas não só isso: se você não tem meios econômicos, políticos e culturais de fazer valer a justiça, pouco adianta a lei estar do seu lado. Para haver aquele mínimo de justiça sem o qual a expressão “sociedade justa” é apenas um belo adorno de crimes nefandos, é preciso que haja uma certa variedade e abundância de meios de poder espalhados pela população em vez de concentrados nas mãos de uma elite iluminada ou sortuda. Porém, se a população mesma não é capaz de criar esses meios e, em vez disso, confia num grupo revolucionário que promete tomá-los de seus atuais detentores e distribuí-los democraticamente, aí é que o reino da injustiça se instala de uma vez por todas. Para distribuir poderes, é preciso primeiro possuí-los: o futuro distribuidor de poderes tem de tornar-se, antes, o detentor monopolístico de todo o poder. E mesmo que depois venha a tentar cumprir sua promessa, a mera condição de distribuidor de poderes continuará fazendo dele, cada vez mais, o senhor absoluto do poder supremo.
Poderes, meios de agir, não podem ser tomados, nem dados, nem emprestados: têm de ser criados. Caso contrário, não são poderes: são símbolos de poder, usados para mascarar a falta de poder efetivo. Quem não tem o poder de criar meios de poder será sempre, na melhor das hipóteses, o escravo do doador ou distribuidor.
Na medida em que a expressão “sociedade justa” pode se transmutar de figura de linguagem em conceito descritivo razoável, torna-se claro que uma realidade correspondente a esse conceito só pode existir como obra de um povo dotado de iniciativa e criatividade – um povo cujos atos e empreendimentos sejam variados, inéditos e criativos o bastante para que não possam ser controlados por nenhuma elite, seja de oligarcas acomodados, seja de revolucionários ambiciosos.
A justiça não é um padrão abstrato, fixo, aplicável uniformemente a uma infinidade de situações padronizadas. É um equilíbrio sutil e precário, a ser descoberto de novo e de novo entre as mil e uma ambiguidades de cada situação particular e concreta. No filme de Sidney Lumet, “The Verdict” (1982), o advogado falido Frank Galvin, esplendidamente interpretado por Paul Newman, chega a uma conclusão óbvia após ter alcançado uma tardia e improvável vitória judicial: “Os tribunais não existem para fazer justiça, mas para nos dar uma oportunidade de lutar pela justiça”. Nunca me esqueci dessa lição de realismo. A única sociedade justa que pode existir na realidade, e não em sonhos, é aquela que, reconhecendo sua incapacidade de “fazer justiça” – sobretudo a de fazê-la de uma vez para sempre, perfeita e uniforme para todos –, não tira de cada cidadão a oportunidade de lutar pela modesta dose de justiça de que precisa a cada momento da vida.
Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 20 de julho de 2006
Uma revolução não consiste em “tomar o poder”. A tomada do poder é apenas um elo numa cadeia de transformações que começa muito antes e termina muito depois dela. Uma revolução é um processo complexo, que se estende por décadas e se desenrola com ritmos desiguais, entre fluxos e refluxos, às vezes simulando ter cessado por completo, às vezes precipitando-se em crises espasmódicas que parecem o fim do mundo. Durante muito tempo, a unidade do processo só é visível aos que o planejaram e a uns poucos observadores qualificados. O restante da população se deixa confundir pela variedade polimorfa dos acontecimentos, sem atinar com a lógica por trás da confusão aparente.
Uma das linhas de força essenciais que compõem uma revolução é a lenta e gradativa substituição da ordem legal por um novo critério legitimador, injetado sutilmente, de início, mas depois impondo-se de maneira cada vez mais descarada, até que o apelo à antiga norma se torne reconhecidamente impotente, reduzindo-se a objeto de chacota.
O MST poderia, sem dificuldade, ter-se registrado como ONG e solicitado legalmente a ajuda financeira do Estado. Se não o fez, não foi tanto para escapar à responsabilidade civil e penal, mas por um cálculo estratégico muito preciso: mais importante até do que instituir a violência e o terror como meios válidos de acesso à propriedade da terra era subjugar e usar o próprio Estado como instrumento legitimador do processo. Desde o momento em que o governo federal aceitou financiar com dinheiro dos impostos os crimes praticados por uma entidade legalmente inexistente, inimputável portanto, a antiga estrutura jurídica do Estado cessou de existir. Discreta e impercebida, mas nem por isso menos possante, a nova hierarquia legal que então passou a vigorar baseia-se na imposição tácita da ideologia revolucionária como fonte de todos os direitos e obrigações, revogadas as disposições em contrário. Essa inversão radical do critério de legitimidade é muito mais decisiva do que a subseqüente tomada do poder, que não faz senão dar expressão visível ao fato consumado.
Não há portanto nada de estranho em que um órgão tão representativo do pensamento das elites nacionais como a Escola Superior de Guerra se disponha a ouvir com humildade e respeito as lições do sr. João Pedro Stedile. O chefe do MST é algo mais do que mera autoridade: como primeiro cidadão oficialmente liberado pelo Estado para passar por acima das leis e remoldá-las à sua imagem e semelhança, ele é a célula-mãe, o símbolo gerador, o modelo vivo da nova ordem. A ESG tem mesmo é de bater-lhe continência e, se possível, beijar-lhe os pés, se conseguir erguer-se para alcançá-los.
Em contraste com esse auto-aviltamento masoquista, o brigadeiro Ivan Frota, ao tomar posse na presidência do Clube da Aeronáutica, advertia dias atrás contra “grupos paramilitares extremados, travestidos de ‘movimentos sociais’, desencadeando uma orquestrada programação de vandalismo indiscriminado, ante a inação e até o velado apoio de autoridades governamentais do mais alto escalão”. É sinal auspicioso de que nem todos, nas Forças Armadas, estão contentinhos de viver no “mundo às avessas”.
Mas, no mundo civil, proliferam os sinais de adaptação feliz à ordem invertida. O juiz Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara Federal, por exemplo, induzido pelo governo a soltar os 32 baderneiros do MLST, baixou sentença alegando que a culpa pela depredação da Câmara não foi deles, e sim da própria Câmara, que, advertida da chegada dos militantes, não se preveniu contra o ataque.
Pela lógica do magistrado, se eu publicar aqui um aviso de que vou lhe fazer uma visita e ele não contratar de imediato um segurança para proteger sua cabeça oca, estarei no direito de rachá-la a pauladas com plenas garantias de que semelhante truculência não me será imputada judicialmente. A sorte de S. Excia. é que não há nada na sua caixa craniana que valha o esforço de quebrá-la.