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Da estupidez auto-infligida

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 8 de agosto de 2008

A sã inteligência humana é como a boa poesia: é difícil dizer o que ela é, mas pode-se mostrar o que ela não é. Isso é assim não só porque o contraste desperta a intuição quase que automaticamente, poupando horas de explicações aproximativas, mas porque o número de maus exemplos é bem grande. Um fenômeno que se pode ilustrar com a maior facilidade – pois seu repertório de amostras é praticamente inesgotável – é que, onde entra a inversão revolucionária, mesmo em dose mínima, a inteligência se retrai e definha até ao ponto de desaparecer quase por completo. Pessoas que a natureza dotou de um cérebro normal e até de um QI apropriado aos mais altos vôos do espírito acabam, pela força do hábito culturalmente absorvido, descendo ao nível de uma estupidez anfíbia, incapazes de erguer os olhos para enxergar o lodaçal de vexames intelectuais em que rastejam.

O raciocínio de analogia, por exemplo, é um dos mais simples que existem, um dos primeiros que uma criança aprende. Praticamente todos os conhecimentos humanos nascem de alguma analogia, que, abrindo para o observador um leque de relações e articulações possíveis, lhe indica o caminho para transitar das meras semelhanças à identidade, aos nexos efetivos entre coisa e coisa. Só que, para isso, a analogia tem de ser razoável em si mesma, apropriada às formas e proporções do fato descrito. Uma analogia não é mera semelhança, é uma articulação lógica de semelhanças e diferenças. Semelhanças, até um protozoário percebe. O que um protozoário não pode fazer, o que nem animais relativamente hábeis como um gato ou um chimpanzé podem fazer, é notar que duas coisas são idênticas e diferentes ao mesmo tempo, conforme os vários ângulos abstrativos por onde se examinem. A capacidade de fazer isso, e de fazê-lo com grande exatidão, é uma das marcas distintivas da inteligência humana, é não só essa capacidade é uma das primeiras que se revelam nas crianças, como sua perda ou atrofia posterior é um desastre imensurável, capaz de arruinar os melhores cérebros ao ponto de condená-los à inépcia mais deplorável.

A propensão às analogias forçadas, impróprias, capengas, revela no seu autor a falta daquele senso imediato das formas e proporções, que é a base de todas as construções mais complexas da inteligência. Suprimida essa base, o que quer que se construa em cima não pode senão afastar-se cada vez mais da realidade, culminando enfim no “delírio de interpretação” descrito pelo dr. Paul Sérieux, onde a mera burrice se transfigura em demência explícita.

Quando digo que a inversão revolucionária produz esse efeito necessariamente, é porque há décadas venho colhendo amostras do fenômeno e hoje posso assegurar que, em certos ideólogos e tagarelas de profissão, a analogia forçada é não somente um obstinado vício de pensamento, mas o seu procedimento estilístico essencial e quase único, a chave da sua visão psicótica do mundo. Não hesito em enquadrar nessa categoria os srs. Frei Betto, Leonardo Boff e principalmente o dr. Emir Sader, do qual jamais li um texto que não fosse, de alto abaixo, pura analogia forçada.

Aos textos da sra. Eliane Cantanhede confesso que jamais prestei nenhuma atenção, até que um amigo me enviou o artigo “Chifre em cabeça de cavalo”, onde a autora esguicha analogias impróprias com tanta veemência, com tanta convicção emocionada, que sou levado a suspeitar que seu cérebro já não consegue articular semelhanças e diferenças com a precisão natural de uma criança de três anos.

Se o país pode dar asilo político ao ditador paraguaio Alfredo Stroessner, pergunta ela, por que não pode dá-lo também ao agente das Farc, Olivério Medina?

Notem bem. Uma analogia, toda analogia, por mais tosca que seja, tem uma séria razão de ser, uma “ratio analogandi”, como a chamavam os escolásticos. Ela não mostra uma semelhança direta entre coisas, mas uma semelhança entre semelhanças, formando uma estrutura matemática, uma equação do tipo a/b = x/y. Quer dizer que duas coisas são semelhantes entre si porque duas outras coisas, que de algum modo as explicam, também o são. Por exemplo, o leão está para os outros animais como o rei está para os súditos, ou (pausa para um comercial do meu bichinho de estimação), o English Mastiff está para os outros cães como o leão está para os gatos. Aí a “ratio analogandi” é a força, o poder descomunal.

Qual a “ratio analogandi” entre dois casos de asilo político? A lei de asilo político, é claro. Essa lei não quer saber se, de dois postulantes ao asilo, um é um anjo e o outro é uma peste ou se ambos são igualmente pestes, como aliás parece ser precisamente o caso dos exemplos citados. Tudo o que ela quer saber é (1) se são perseguidos nos seus países por motivos políticos e (2) se estão limpos perante a justiça brasileira. Admitamos, só para simplificar, que no primeiro quesito Stroessner e Medina sejam idênticos. No segundo não há comparação possível: o general pode ter feito tanta malvadeza no Paraguai quanto as Farc fizeram na Colômbia, mas nunca espalhou duzentas toneladas de cocaína no mercado brasileiro, nem deu armas e treinamento para o PCC sair pelas ruas matando nossos compatriotas. O problema não é o mal que os dois fizeram aos seus respectivos países, mas o mal que um deles fez – e o outro não fez – ao mesmo país ao qual pede asilo.

Mais adiante a sra. Cantanhede revela espanto ante a indignação de tantos brasileiros com o emprego público dado pela ministra Dilma Roussef à esposa do mesmo Olivério Medina. Então a coitada – pergunta a colunista – não teria o direito de trabalhar? Sim, é claro, todos têm o direito de trabalhar, mas nem todos têm o direito a um emprego público obtido, sem concurso, mediante a proteção de um companheiro de ideologia encastelado num cargo ministerial. Aí a única “ratio analogandi” é a confusão verbal da sra. Cantanhede, que mistura o direito ao trabalho com o direito a favores estatais, e os direitos dos cidadãos brasileiros com os direitos dos familiares de delinqüentes estrangeiros sob investigação.

Num artigo de vinte e poucas linhas, essa dose de analogias erradas já bastaria para ilustrar o que eu vinha dizendo. Mas a sra. Cantanhede não se contenta com meter o sorvete na testa, como o retardado mental daquela piada cruel: esfrega-o com força, para exibir controle motor. Os e-mails das Farc citando brasileiros, proclama ela, não provam nada, muito menos participação na guerrilha, em contrabando de armas e cocaína, exportação de revoluções. Deixo de lado este último ponto, porque aí não se trata de falsa analogia e sim de mentira pura e simples, uma habilidade que nem mesmo um cérebro arruinado como o da sra. Cantanhede jamais perde por completo. Exportar a revolução comunista a toda a América Latina foi e é a ocupação única, explícita e constante do Foro de São Paulo desde 1990, e para prová-lo não é preciso encontrar nenhum laptop na selva: dezoito anos de atas de assembléias e grupos de trabalho, sem contar vinte e um número da revista “America Libre”, não falam de outra coisa senão de revolução continental. Os detalhes registrados no laptop, aliás, não fazem nenhum sentido fora desse quadro. E é precisamente olhando-os fora dele que a sra. Cantanhede pode concluir que esses detalhes “não provam nada, muito menos participação na guerrilha, em contrabando de armas e cocaína”. Se ao construir cada uma de suas falsa analogias ela faz apelo a uma “ratio analogandi” deslocada, ao negar a existência de uma relação efetiva ela simplesmente dá sumiço à “ratio analogandi” existente, isto à, à conexão estratégica e tática entre os personagens envolvidos, daí tirando a conclusão maravilhosa de que dar proteção política ao crime não é crime, como se a essência mesma da subversão revolucionária não consistisse na articulação sistemática de política e crime.

Não, não pensem que eu esteja contestando a sra. Cantanhede. Não discuto com pessoas intelectualmente lesadas, mesmo quando são culpadas de infligir a lesão a si mesmas mediante o hábito continuado da inversão revolucionária. Limito-me a exibi-las ao público, como o dr. Charcot exibia histéricos e esquizofrênicos aos seus alunos no anfiteatro da Pitié-Salpêtrière. Com a diferença de que aqui não se trata de neurologia, mas de saúde pública: não espero que meus leitores se tornem médicos, mas apenas que se preservem de uma deformidade mental epidêmica. Essa deformidade, notem bem, não afeta as funções mais altas da inteligência, o raciocínio abstrato, a criação artística, o gênio matemático: afeta apenas a base humilde que todas elas têm na capacidade analogante, e assim transforma essas sublimes capacidades em instrumentos de estupidificação.

Forçando as analogias

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 7 de agosto de 2008

O raciocínio de analogia é um dos mais simples que existem, um dos primeiros que uma criança aprende. A propensão às analogias forçadas, impróprias, capengas, revela no seu autor a falta daquele senso imediato das formas e proporções, que é a base de todas as construções mais complexas da inteligência. Suprimida essa base, o que quer que se construa em cima não pode senão afastar-se da realidade, culminando enfim no delírio de interpretação, descrito pelo dr. Paul Sérieux, onde a mera burrice se transfigura em demência explícita.

Quando digo que a inversão revolucionária produz esse efeito necessariamente, é porque há décadas venho colhendo amostras do fenômeno e hoje posso assegurar que, em certos ideólogos e tagarelas de profissão, a analogia forçada é não somente um obstinado vício de pensamento, mas o seu procedimento estilístico quase único, a chave da sua visão psicótica do mundo. Não hesito em enquadrar nessa categoria os srs. Frei Betto, Leonardo Boff e, principalmente, o dr. Emir Sader, do qual jamais li um texto que não fosse, de alto abaixo, pura analogia forçada.

Aos textos da sra. Eliane Cantanhede confesso que jamais prestei nenhuma atenção, até que um amigo me enviou o artigo Chifre em cabeça de cavalo, onde a autora esguicha analogias impróprias com tanta veemência, com tanta convicção emocionada, que sou levado a suspeitar que seu cérebro já não consegue articular semelhanças e diferenças com a precisão natural de uma criança de três anos. Se o País pode dar asilo político ao ditador paraguaio Alfredo Stroessner, pergunta ela, por que não pode dá-lo também ao agente das FARC, Olivério Medina?

Os escolásticos já ensinavam que entre os termos de uma analogia tem de haver um terceiro termo comum que dá a razão da sua semelhança, a sua ratio analogandi. Qual a ratio analogandi entre dois casos de asilo político? A lei de asilo político, é claro. Essa lei não quer saber se, de dois postulantes ao asilo, um é um anjo e o outro é uma peste. Tudo o que ela quer saber é (1) se são perseguidos nos seus países por motivos políticos e (2) se estão limpos perante a Justiça brasileira. Admitamos, só para simplificar, que no primeiro quesito Stroessner e Medina sejam idênticos. No segundo, não há comparação possível: o general pode ter feito tanta malvadeza no Paraguai quanto as FARC fizeram na Colômbia, mas nunca espalhou 200 toneladas de cocaína no País, nem deu armas e treinamento para o PCC. O problema não é o mal que os dois fizeram aos seus respectivos países, mas o mal que um deles fez – e o outro não fez – ao país ao qual pede asilo.

Mais adiante, a sra. Cantanhede revela espanto ante a indignação de tantos brasileiros com o emprego público dado pela ministra Dilma Roussef à esposa do mesmo Oliverio Medina. Então a coitada – pergunta a colunista – não teria o direito de trabalhar? Sim, é claro, todos têm o direito de trabalhar, mas nem todos têm o direito a um emprego público obtido, sem concurso, mediante a proteção de um companheiro de ideologia encastelado num cargo ministerial.

Aí a única ratio analogandi é a confusão verbal da sra. Cantanhede, que mistura o direito ao trabalho com o direito a favores estatais, e os direitos dos cidadãos brasileiros com os direitos dos familiares de delinqüentes estrangeiros sob investigação. Os e-mails das FARC citando brasileiros, proclama ela, não provam nada, muito menos participação na guerrilha, em contrabando de armas e cocaína, exportação de revoluções. Neste último ponto não há falsa analogia e sim de mentira pura e simples.

Exportar a revolução comunista a toda a América Latina foi e é a ocupação única, explícita e constante do Foro de São Paulo desde 1990, e para prová-lo não é preciso encontrar nenhum laptop na selva: dezoito anos de atas de assembléias e grupos de trabalho, sem contar vinte e um números da revista America Libre não falam de outra coisa senão de revolução continental. Os detalhes registrados no laptop, aliás, não fazem nenhum sentido fora desse quadro.

E é precisamente olhando-os fora dele que a sra. Cantanhede pode concluir que esses detalhes “não provam nada, muito menos participação na guerrilha, em contrabando de armas e cocaína”. Se ao construir cada uma de suas falsas analogias ela faz apelo a uma ratio analogandi deslocada, ao negar a existência de uma relação efetiva ela simplesmente dá sumiço à ratio analogandi existente, isto é, à conexão estratégica e tática entre os personagens envolvidos, daí tirando a conclusão maravilhosa de que dar proteção política ao crime não é crime, como se a essência mesma da subversão revolucionária não consistisse na articulação sistemática de política e crime.

 

Aritmética do engodo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de maio de 2008

Desde que o assassinato da menina Isabella apareceu na mídia, o comentário esquerdista do episódio tem sido invariavelmente o mesmo: é imoral fazer alarde em torno de uma só criança assassinada, num país onde os menores de idade vítimas de homicídio se contam aos milhares.

A nuance ideológica aí subentendida é que o individualismo burguês reserva sua compaixão para o caso singular para não ter de enxergar o problema social por trás dele.

Jamais ocorre a esses sapientíssimos denunciadores da alienação capitalista a hipótese de que o caso singular desperte a violenta emoção coletiva justamente por ser um símbolo condensado do problema social, a gritaria em torno dele expressando portanto um estado de consciência alerta e não de alienação.

Intelectuais de esquerda jamais hesitam em torcer a realidade como se fosse roupa no tanque, para extrair dela um pouco de água suja que possam mostrar ao mundo como prova da maldade burguesa e, en passant , da sua própria superioridade moral.

Por isso mesmo não me surpreendi nem um pouco ao ler, na Folha Online , que, segundo Jean Pierre Langellier, articulista de Le Monde , os brasileiros, um povo malvado que “bate os recordes de violência com 50 mil homicídios por ano”, derrama lágrimas de crocodilo por uma criança enquanto a cada dez minutos um menor de 14 anos é assassinado neste país. Fazendo as contas — seis crianças por hora, 144 por dia, 52.560 por ano – tínhamos aí um fenômeno aritmético assombroso: anualmente, morriam assassinados 50.000 brasileiros, dos quais 52.560 eram crianças. Diante disso, pensei seriamente em voltar atrás nas críticas que um dia fizera à teoria do matemático alemão Georg Cantor segundo a qual existem infinitos maiores e menores. Pelo menos no Brasil, segundo a Folha Online , um subconjunto podia ser maior do que o conjunto que o abrange. Com o detalhe especialmente notável de que adultos, velhos e adolescentes maiores de 14 anos jamais eram assassinados nesta parte do universo. Todos escapavam ilesos à violência geral, e as criancinhas ainda tinham um superavit de 2.560 cadáveres.

Horas depois, veio o desmentido: a Folha confessava o erro, admitindo que o pobre Langellier não dissera “a cada dez minutos”, mas “a cada dez horas”. O número de crianças assassinadas por ano baixava drasticamente de 52.560 para 876.

Isso era certamente um alívio para o leitor, mas não melhorava em nada a situação do articulista do Monde nem da Folha Online . O sentido geral do artigo seguia a linha oficial do argumento esquerdista: enfatizar a “violência doméstica”, minimizando o papel dos quadrilheiros armados na produção nacional de cadáveres. Esse mote foi posto em circulação pela campanha do desarmamento civil, mas, falhado o seu objetivo originário, tem servido para uma infinidade de objetivos suplementares, entre os quais abortar preventivamente a possibilidade de uma revolta popular contra o banditismo e os agentes do Foro de São Paulo que o acobertam. Lançando as culpas da violência na “elite branca racista” e na maldita instituição da família, esse discurso prepara o terreno para a implantação de leis raciais e do casamento gay , sugerindo implicitamente – e às vezes explicitamente – que entre outros inumeráveis benefícios essas medidas trarão a paz a um país atormentado pela violência e pelo crime. Tão natural esse modo de pensar pareceu ao redator da Folha Online , que um automatismo inconsciente o levou a multiplicar por sessenta o número de crianças assassinadas, enfatizando o caráter eminentemente homicida da instituição familiar, mesmo ao preço de estourar as leis da aritmética.

Mas, embora realizada com uma aritmética menos louca, a mesma intenção já estava no artigo original de Langellier. Ao confrontar o número de crianças assassinadas com o total dos homicídios brasileiros, ele enfatizava que a maior parte da primeira cifra era produzida pela “violência doméstica”, sugerindo que esta desempenhava um papel essencial, dramático, no quadro da criminalidade brasileira. Mas façam as contas. Dos 50 mil brasileiros assassinados anualmente, 876 são crianças. Segundo o Censo de 2000 (v. www.ibge.gov.br), os menores até 14 anos no Brasil são 50.266.123: um terço da população nacional. Ora, se o grupo etário que constitui um terço da população nacional fornece a quinquagésima-sétima parte do total de vítimas de homicídios, está claro que esse grupo não é, de maneira alguma, um alvo preferencial de violência no conjunto da criminalidade nacional, não é nem mesmo um alvo estatisticamente significativo. Mesmo se aquelas 876 vítimas tivessem sido todas assassinadas por seus pais – o que está longe de ser o caso –, seria ainda monstruosamente desproporcional atribuir à brutalidade da família contra as crianças um papel relevante no quadro da violência nacional. Ainda que o assassinato de uma só criança seja em si mais revoltante do que quaisquer crimes cometidos contra adultos – e o escândalo em torno do caso Isabela é expressão natural dessa revolta –, isso só torna ainda mais injusto e insultuoso retratar a família brasileira como um ambiente de terror assassino, como se o perigo maior viesse dela e não de bandidos treinados e armados pelas Farc.

Esse mesmo intuito de desviar para “a sociedade” as culpas que pertencem ao banditismo organizado e ao esquema revolucionário latino-americano que o protege apareceu, da maneira mais visível, onde, em condições normais, menos se esperaria encontrá-lo: no ato público promovido pela ONG “Comunidade Cidadã” no dia 16, nominalmente para homenagear as vítimas da onda de terror espalhada pelo PCC nas ruas de São Paulo em maio de 2006 (v. Carta aberta à sociedade paulistana).

Após um velório realizado ante 493 caixões de defunto, o ponto culminante do evento foi a entrega de um Manifesto da entidade aos representantes do poder público. Ao longo desse documento, altamente significativo da mentalidade ativista em nossos dias, não aparece nem uma única vez a expressão “PCC” nem se faz qualquer menção aos autores do crime. Em compensação, fala-se muito da “exclusão”, da “exploração dos negros pelos brancos” e da malvada sociedade adulta que “tem medo dos jovens” e se dedica a extingui-los, sobretudo, é claro, quando são de raça negra. Em seguida pede-se a punição “dos culpados”, sem distinguir nem de longe entre os culpados daquele crime em especial e os de tudo o mais que a “Comunidade Cidadã” detesta.

A conclusão, implícita mas altamente eloqüente, é que não houve nenhum massacre de brasileiros pelos bandidos do PCC: houve, sim, a matança de negros pelos brancos, de pobres pelos ricos e privilegiados, de jovens progressistas por adultos conservadores e reacionários.

Quando uma facção política tem a hegemonia cultural e ao mesmo tempo o domínio do Estado, isto é, o controle simultâneo da circulação de idéias e dos meios de ação política, ela pode fazer milagres, agindo unificadamente sobre toda a sociedade por meio de uma rede de conexões tão sólida quanto invisível, de modo que todas as correntes de causas, indo para qualquer lado que seja, levem sempre a água ao mesmo moinho, façam rodar sempre a mesma engrenagem, fortaleçam sempre quem já é o mais forte: um grupo de organizações esquerdistas promove a solidariedade continental às Farc, as Farc armam o PCC, o PCC mata 493 pessoas inocentes e, fechando o círculo, outras organizações esquerdistas íntimamente associadas às primeiras tiram proveito publicitário do massacre, debitando as culpas das ações da esquerda na conta de um bode expiatório atônito, que por medo e por humanitarismo sonso ainda consente em colaborar paternalmente com o empreendimento, como um Judas de sábado de aleluia que, para se fazer de simpático, se malhasse a si próprio.

A articulação da violência com a sua exploração ideológica em favor dos seus próprios mentores e controladores é prática usual no movimento revolucionário pelo menos desde o século XVIII. Sempre que a operação se repete, o fator decisivo para o seu sucesso é a credulidade sonsa de uma sociedade que se deixa passivamente inculpar pelo mal que o próprio acusador lhe faz.

Até quando os líderes políticos e empresariais nominalmente não esquerdistas ou até anti-esquerdistas consentirão em participar dessa farsa masoquista? Quando perceberão que estão sendo manipulados por indivíduos amorais, maquiavélicos, sem princípios nem o mais mínimo sentimento de honra?

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