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Palpiteiros

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de setembro de 2008

Poder concordar com o sr. presidente da República, ainda que uma só vez na vida, é um prazer indescritível para este modesto escriba que há anos tem procurado em vão alguma verdade, mesmo pequenininha, nas palavras daquele ilustre mandatário.

S. Excia. tem toda a razão em fazer troça dos palpiteiros internacionais falidos, que não souberam aplicar a si próprios os conselhos de economia que davam ao Brasil. Maus conselheiros são mesmo o diabo. Por princípio, não acredito em economista pobre, pintor cego, escritor analfabeto e médico doente. Banqueiro quebrado, então, nem se fala. Fujo disso como da peste. Quando o sujeito pratica o “faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”, é melhor não fazer nem o que ele diz nem o que ele faz.

Mas, já que S. Excia. decidiu julgar as pessoas pelos resultados de seus atos em vez de deixar-se guiar por suas belas palavras, sugiro que aproveite a ocasião para examinar também a performance dos seguintes palpiteiros, cujos conselhos tem seguido respeitosamente:

1. Fidel Castro. Subiu ao poder com apoio americano, o dinheiro dos gringos poderia ter chovido na horta cubana. Bastava cumprir a promessa de democracia e liberdade. Fidel preferiu fazer negócio com os russos, fuzilar 17 mil compatriotas e espalhar oitocentos presídios políticos pelo país, que chegaram a abrigar cem mil detentos de uma só vez, acusados de delitos hediondos como fazer piadas contra El Comandante ou possuir uma casa. Esvaziou as prateleiras dos supermercados e as barrigas de seus concidadãos, dos quais a sexta parte preferiu enfrentar os tubarões no mar do Caribe para ir submeter-se aos horrores do capitalismo em Miami. Eu jamais perguntaria a um sujeito desses o que fazer com o meu país. A não que estivesse mesmo a fim de ferrar com tudo.

2. Paulo Freire. Dizem que foi o maior educador do mundo, mas nunca vi uma só pessoa de carne e osso que tivesse sido alfabetizada por ele e chegasse, digamos, ao nível de chofer de táxi ou ascensorista. Algum de seus ministros, Sr. presidente, foi alfabetizado pelo método Paulo Freire? Claro que não. O senhor não é muito inteligente mas também não é idiota a esse ponto. Aliás, acabo de ler uma carta indignada que a viúva do referido enviou à revista Veja e noto que o grande alfabetizador devia ser homem ocupadíssimo, já que não teve tempo de alfabetizar a própria esposa. Ou teve e alfabetizou? Não, não quero pensar nessa hipótese abominável. Vejam só como aquela senhora escreve: “enodoar pessoas as quais deveríamos nos orgulhar” (em vez de “das quais”), “embora, para desgosto deles, estamos conseguindo” (em vez de “embora estejamos”), “investida sobre” (em vez de “investida contra”). E paro por aqui, antes que ela me acuse, como acusou a revista, de “cata às bruxas” (sic).

3. Frei Betto. Sabendo que por decreto papal os católicos que se associem com governos e partidos comunistas estão automaticamente excomungados, esse devoto religioso, quando co-redator da Constituição cubana, introduziu ali um artigo que acabava com a discriminação dos católicos… dando-lhes o direito de inscrever-se no Partido Comunista! Devo aceitar guiamento espiritual de um sujeito que me põe fora da Igreja sem nem mesmo me avisar disso e ainda jura que está me ajudando? Foi decerto por acreditar nele que V. Excia. acabou por se dizer homem sem pecados no instante mesmo em que, comungando sem confessar, cometia mais um e, fazendo essa declaração, mais outro. “Estar no inferno – dizia Simone Weil – é acreditar por engano que se está no céu.” Isto resume a vida de Frei Betto. Talvez também a sua, sr. presidente.

4. Emir Sader. O dr. Emir é tão falso que mente até nas traduções. Na edição brasileira do livro de Alain Besançon, A Infelicidade do Século, ele trocou “hipermnésia” (recordar demais) por “hiper-amnésia” (não recordar jamais coisíssima nenhuma), fazendo o autor dizer o contrário do que dissera. Pior: mostrando que não se tratava de mero lapso de revisão, voltou a insistir na tal hiper-amnésia nas orelhas do livro, praticamente surrando o infeliz Besançon para forçá-lo a ser tão mentiroso quanto ele. Mas hiper-amnésia teve mesmo o próprio Emir Sader, ao assegurar que jamais polemizou comigo, quando o fizera pelo menos quatro vezes. V. Excia. pode mantê-lo na sua lista de palpiteiros de estimação, se quiser, contanto que faça com ele o que ele fez com o professor francês, trocando preventivamente, em qualquer conselho que ele lhe dê, o sim por não e o não por sim.

O bicho-síntese

Olavo de Carvalho

Bravo!, outubro de 1999

James Bryce, no fim do século passado, observou que para a elite brasileira as palavras eram mais reais do que as coisas. Transcorrido um século da visita do diplomata inglês, temos de admitir que o verbalismo assinalado por ele não é apenas o hábito de um grupo social localizado. O culto das palavras, uma hipersensibilidade às harmonias sonoras que chega a distrair do curso do pensamento, a idolatria da técnica verbal vista como o supremo sinal de inteligência a despeito do conteúdo ralo ou nenhum são constantes da mentalidade brasileira, independentes dos grupos e classes, das épocas e situações.

Quem hoje em dia assista na televisão a entrevistas de intelectuais e políticos se surpreenderá — caso não esteja ele próprio contaminado ao ponto de não notar nisto nada de anormal — com o fato de que seja possível criar tantas opiniões com tão poucas idéias. Mais surpreendente ainda é a capacidade que essas criaturas têm de reproduzir os mais tontos lugares-comuns com a fisionomia concentrada de um pensador que impusesse a seu cérebro as provações dolorosas de uma sondagem intelectual profundíssima. Abaixando o volume e contemplando esses senhores na pureza da sua expressão visível, diríamos que cada um deles é um Leibniz a enunciar as sutilezas do cálculo infinitesimal ou um Swedenborg a surpreender os incrédulos com a descrição dos mundos celestes. Aumentamos o volume, e percebemos que estão apenas falando mal ou bem do governo. Um dia vi na TV Cultura o sapientíssimo Paulo Freire. Tinha o cenho franzido, as mãos em garra, o olhar fixo na distância como quem divisasse no horizonte uma verdade longamente buscada. Tudo isso para soltar esta jóia: “Devemos ser tolerantes — mas não com os nossos inimigos”. Mesmo ouvida com a maior boa vontade, essa frase nada mais significa senão que devemos chamar a intolerância de tolerância.

O que mais impressiona nesse fenômeno é a precisão, a arte, mesmo, com que no Brasil quem não tem nada a dizer sabe imitar, na entonação das frases e no suporte gestual, o estilo dos sábios e profetas.

Um sintoma característico é o modo nacional de ler poesia. O teste decisivo do valor poético é a paráfrase em prosa, a explicitação do sentido (ou sentidos) do verso. Um só verso deve conter muitas sentenças em prosa, compactadas na unidade indissolúvel de música e significado. “Life is but a walking shadow” ou “Transforma-se o amador na coisa amada” contêm filosofias inteiras. Um público universitário não poderia prosternar-se de adoração devota ante um verso como “Amor morto motor da saudade”, se notasse que significa apenas que o poeta sente falta de sua ex-namorada — e, pior ainda, se percebesse que um sentimento banal não se torna mais valioso por vir empacotado na aliteração tô-tô-mô-mô. Portanto ele evita notar isto. Contorna a questão do valor poético recusando-se a fazer a paráfrase desmistificadora e, para sustentar a ilusão, atribui à poesia o estatuto de um mistério excelso que não deve ser profanado pelo exame racional — sendo a palavra “racional”, aí, pronunciada em tom de infinito desprezo. O puro jogo sonoro, a coceirinha nos ouvidos, torna-se o emblema de uma ciência secreta, inacessível ao comum dos mortais. A mistificação nada pode sem a ajuda da automistificação.

Diante de semelhante fenômeno, um observador severo e isento diagnosticaria na classe letrada nacional um caso de psitacismo endêmico. Erraria, no entanto. A habilidade dos psitacídeos esgota-se no mimetismo sonoro, ao passo que o fato aqui mencionado comporta igualmente uma essencial componente muscular e gestual, sobretudo no que concerne à reprodução das expressões mais finas do rosto humano. Isto não há papagaio que faça. Para chegar a tanto, é preciso acrescentar às potências vocais dessa ave a desenvoltura cênica e malabarística do outro animal emblemático da fauna mental brasileira: o macaco. Sim, a arte nacional da imitação é tão rica, que não pode ser simbolizada por um animal só, mas exige um bicho composto, macaco e papagaio ao mesmo tempo: o papaco ou macagaio, também chamado papamaco, pacagaio ou mapapaco. O nome pode variar tanto quanto as manifestações onímodas da criatura mesma. Deixo-o aos cuidados dos cultores de combinações sonoras não substancialmente mais lindas que tô-tô-mô-mô, e resumo meu argumento declarando que, qualquer que seja o caso, o sentido da maior parte dos ditos e escritos em circulação no país só pode ser apreendido mediante um conceito que sintetize, num termo único, macaquice e papagaiada.

8 de setembro de 1999

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