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Jornalistas contra a aritmética

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 5 de junho de 2009

Não há mentira completa. Até o mais ingênuo e instintivo dos mentirosos, ao compor suas invencionices, usa retalhos da realidade, mudando apenas as proporções e relações. Quanto mais não fará uso desse procedimento o fingidor tarimbado, técnico, profissional, como aqueles que superlotam as redações de jornais, canais de TV e agências de notícias. Mais ainda – é claro – os militantes e ongueiros a serviço de causas soi disant idealistas e humanitárias que legitimam a mentira como instrumento normal e meritório de luta política.

Na maior parte dos casos, os elementos de comparação que permitiriam restituir aos fatos sua verdadeira medida são totalmente suprimidos, tornando impossível o exercício do juízo crítico e limitando a reação do leitor, na melhor das hipóteses, a uma dúvida genérica e abstrata, que, como todas as dúvidas, não destrói a mentira de todo mas deixa uma porta aberta para que ela passe como verdade.

Um exemplo característico são as notícias sobre a tortura nas prisões de Guantánamo e Abu-Ghraib. Como em geral nada se noticia na “grande mídia” sobre as crueldades físicas monstruosas praticadas diariamente contra meros prisioneiros de consciência nos cárceres da China, da Coréia do Norte, de Cuba e dos países islâmicos, a impressão que resta na mente do público é que o afogamento simulado de terroristas é um caso máximo de crime hediondo. Mesmo quando não são totalmente ignorados, os fatos principais recuam para um fundo mais ou menos inconsciente, tornando-se nebulosos e irrelevantes em comparação com as picuinhas às quais se deseja dar ares de tragédia mundial. Só o que resta a fazer, nesses casos, é usar a internet e toda outra forma de mídia alternativa para realçar aquilo que a classe jornalística, empenhada em transformar o mundo em vez de retratá-lo, preferiu amortecer.

Às vezes, porém, o profissional da mentira se trai, deixando à mostra os dados comparativos, apenas oferecidos sem ordem nem conexão, de tal modo que o público passe sobre eles sem perceber que dizem o contrário do que parecem dizer. Isso acontece sobretudo em notícias que envolvem números. Com freqüência, aí o texto já traz em si seu próprio desmentido, bastando que o leitor se lembre de fazer as contas.

Colho no Globo Online o exemplo mais lindo da semana (v. http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2009/05/20/relatorio-confirma-abuso-de-milhares-de-criancas-por-parte-da-igreja-catolica-da-irlanda-755949622.asp,http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1161142-5602,00-INQUERITO+DENUNCIA+ABUSO+SEXUAL+ENDEMICO+DE+MENINOS+NA+IRLANDA.html e http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1161468-5602,00.html).

Não digo que o Globo seja o único autor da façanha. Teve a colaboração de agências internacionais, de organizações militantes e de toda a indústria mundial dos bons sentimentos. Naquelas três notas, publicadas com o destaque esperado em tais circunstâncias, somos informados de que uma comissão de alto nível, presidida por um juiz da Suprema Corte da Irlanda, investigando exaustivamente os fatos, concluiu ser a Igreja Católica daquele país a culpada de nada menos de doze mil – sim, doze mil – casos de abusos cometidos contra crianças em instituições religiosas. A denúncia saiu num relatório de 2600 páginas. Legitimando com pressa obscena a veracidade das acusações em vez de assumir a defesa da acusada, que oficialmente ele representa, o cardeal-arcebispo da Irlanda, Sean Brady, já saiu pedindo desculpas e jurando que o relatório “documenta um catálogo vergonhoso de crueldade, abandono, abusos físicos, sexuais e emocionais”. Depois dessa admissão de culpa, parece nada mais haver a discutir.

Nada, exceto os números. O Globo fornece os seguintes:

1) A comissão disse ter obtido os dados entrevistando 1.090 homens e mulheres, já em idade avançada, que na infância teriam sofrido aqueles horrores.

2) Os casos ocorreram em aproximadamente 250 instituições católicas, do começo dos anos 30 até o final da década de 90.

Se o leitor tiver a prudência de fazer os cálculos, concluirá imediatamente, da primeira informação, que cada vítima denunciou, além do seu próprio caso, outros onze, cujas vítimas não foram interrogadas, nem citadas nominalmente, e dos quais ninguém mais relatou coisíssima nenhuma. Do total de doze mil crimes, temos portanto onze mil crimes sem vítimas, conhecidos só por alusões de terceiros. Mesmo supondo-se que as 1.090 testemunhas dissessem a verdade quanto à sua própria experiência, teríamos no máximo um total de exatamente 1.090 crimes comprovados, ampliados para doze mil por extrapolação imaginativa, para mero efeito publicitário. O cardeal Sean Brady poderia ter ao menos alegado isso em defesa da sua Igreja, mas, alma cristianíssima, decerto não quis incorrer em semelhante extremismo de direita.

Da segunda informação, decorre, pela aritmética elementar, que 1.090 casos ocorridos em 250 instituições correspondem a 4,36 casos por instituição. Distribuídos ao longo de sete décadas, são 0,06 casos por ano para cada instituição, isto é, um caso a cada dezesseis anos aproximadamente. Mesmo que todos esses casos fossem de pura pedofilia, nada aí se parece nem de longe com o “abuso sexual endêmico” denunciado pelo Globo. Porém a maior parte dos episódios relatados não tem nada a ver com abusos sexuais, limitando-se a castigos corporais que, mesmo na hipótese de severidade extrema, não constituem motivo de grave escândalo quando se sabe – e o próprio Globoo reconhece – que grande parte das crianças recolhidas àquelas instituições era constituída de delinqüentes. Se você comprime bandidos menores de idade num internato e a cada dezesseis anos um deles aparece surrado ou estuprado, a coisa é evidentemente deplorável, mas não há nela nada que se compare ao que aconteceu no Sudão, onde, no curso de um só ano, vinte crianças, não criminosas, mas inocentes, refugiadas de guerra, afirmaram ter sofrido abuso sexual nas mãos de funcionários da santíssima ONU, contra a qual o Globo jamais disse uma só palavra.

Só o ódio cego à Igreja Católica explica que o sentido geral dado a uma notícia seja o contrário daquilo que afirmam os próprios dados numéricos nela publicados.

Por isso, saiba o prezado leitor que só leio a “grande mídia” por obrigação profissional de analisá-la, como se analisam fezes num laboratório, e que jamais o faria se estivesse em busca de informação.

Truque besta

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 10 de março de 2009

O sr. presidente da República mostra-se escandalizado, chocado, abalado até o fundo de seus sentimentos éticos mais nobres quando a Igreja discorda de sua singela opinião de que para proteger uma criança deve-se matar duas.

Se ele fosse ateu, budista ou membro da Seicho-no-Ie, tudo o que os católicos poderiam fazer diante de seu discurso abortista seria resmungar. Mas ao defender o aborto como dever moral ele insiste em enfatizar que o faz “como cristão e católico”, o que o enquadra, sem a mais mínima possibilidade de dúvida, na categoria dos heresiarcas. Heresia, para quem não sabe, não é qualquer doutrina adversa à da Igreja: é falsa doutrina católica vendida como católica – exatamente como o discurso presidencial contra Dom José Cardoso Sobrinho.

Mas, no fundo, isso não faz a menor diferença. Por seu apoio continuado e impenitente aos regimes e partidos comunistas, Lula já está excomungado latae sententiae faz muito tempo e não precisa ser excomungado de novo. A excomunhão latae sententiae, isto é, “em sentido amplo” decorre automaticamente de ações ou palavras, independentemente de sentença oficial e até mesmo de aviso ao excomungado. Na mesma categoria encontra-se a sra. Dilma Roussef. A presença de qualquer um desses dois num templo católico – quanto mais junto ao altar, na condição de co-celebrantes – é uma ofensa intolerável a todos os fiéis, e só o oportunismo de um clero corrupto até à medula explica que ela seja tolerada e até festejada entre sorrisos de subserviência abjeta. Neste caso, como em todos os similares, a covardia e a omissão não explicam tudo. Alguém manda nos covardes e omissos, e este alguém não é nada disso: é ousado e ativíssimo a serviço do comunismo.

Quanto ao exército inteiro dos que se fingem de indignados junto com o sr. presidente – e ainda o apóiam nesse paroxismo de hipocrisia que é o “Dia Nacional de Luta contra a Hipocrisia” –, seu papel no caso é dos mais evidentes. Os estupros de crianças, cujo número crescente escandaliza e choca a população, são constantemente alegados por essa gente como pretextos para debilitar a autoridade dos pais e submeter as famílias a controles governamentais cada vez mais invasivos. A ONU, os partidos de esquerda, a mídia iluminada, os educadores progressistas e uma infinidade de ONGs – as mesmas entidades que promoveram o feminismo, o divórcio, o gayzismo e todos os demais movimentos que destruíram a integridade das famílias – posam hoje como os heróicos defensores das crianças contra o risco permanente de ser estupradas por seus próprios pais. Toda a credibilidade dessas campanhas advém da ocultação sistemática de um dado estatístico inúmeras vezes comprovado: a quase totalidade dos casos de abuso sexual de crianças acontecem em casas de mães solteiras, cujo namorado – ou namorada – é o autor preferencial desse tipo de delitos. Na Inglaterra, os filhos de mães solteiras sofrem 73 vezes mais abusos fatais – e 33 vezes mais abusos sérios sem morte – do que as crianças criadas em famílias completas. Nos EUA, 55 por cento dos assassinatos de menores de idade acontecem em casas de mães solteiras. Raríssimos casos de abusos de menores acontecem em lares íntegros, com um pai e uma mãe regularmente casados. A presença de um pai é, hoje como sempre, a maior garantia de segurança física para as crianças. Aqueles que removeram esse pai, entregando as crianças à mercê dos amantes de suas mães, são diretamente culpados pela epidemia crescente de violência contra crianças, e são eles mesmos que tiram proveito dela, arrogando-se cada vez mais autoridade para solapar a da família constituída e colocar um número cada vez maior de crianças sob a guarda de assistentes sociais politicamente corretos.

A seqüência dialética é de uma nitidez impressionante. Tese: a pretexto de proteger mulheres e crianças, procede-se à demolição da autoridade paterna, bem como dos princípios morais que a sustentam; antítese: nas famílias desfeitas – surpresa! –, proliferam os estupros e a gravidez infantil; síntese: o aborto é elevado à categoria de obrigação moral, e em seu nome o Estado condena a religião como imoral e desumana e se autoconstitui em guia espiritual da sociedade.

Pensando bem, é um truque simples, até besta. Mas o tempo decorrido entre a tese e a síntese torna invisível a continuidade do processo aos olhos da multidão.

Os vilões de sempre

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 11 de dezembro de 2008

Mesmo quando você tem todos os documentos e testemunhos de fonte primária, é impossível escrever História sem um bocado de imaginação. É a imaginação que cria os nexos entre os vários pontos que os documentos e testemunhos não atestam senão separadamente. A História é uma ciência, ciência é a busca da racionalidade no real, e buscar a racionalidade no real não é senão ir subindo na escala dos quatro discursos de Aristóteles, do possível ao verossímil, do verossímil ao razoável e do razoável ao demonstrado ou certo. A primeira etapa desse processo é puro trabalho de imaginação. É a imaginação que enquadra os dados na moldura racional dos graus de credibilidade admissíveis, com o objetivo ideal de tornar viável, no fim, a prova científica.

O que estou dizendo não vale só para o historiador de ofício, é claro. Toda compreensão de fatos políticos, sociais, culturais, psicológicos e econômicos tem como pressuposto o enquadramento imaginativo da situação. Só sobre essa base é possível o trabalho crítico da inteligência. O raciocínio mais exato do mundo, exercido sobre uma base imaginativa estreita, deformada ou doente, só pode levar a erros terrivelmente persuasivos.

O problema é que a imaginação do cidadão comum é deploravelmente pobre e esquemática em comparação com as complexidades e as profundezas abissais da história contemporânea. Com a maior facilidade o sujeito é induzido a crer em histórias da carochinha que confirmam os seus preconceitos e esperanças e a duvidar dos fatos mais amplamente comprovados que, à sua minguada capacidade imaginativa, pareçam estranhos ou inverossímeis. E não me refiro só ao povão, mas à quase totalidade dos “formadores de opinião” que em geral não são estudiosos treinados na arte da “fantasia exata”, mas apenas cérebros de segunda ordem intoxicados de estereótipos e frases feitas, desesperadamente necessitados da aprovação de seus pares ao ponto de preferir errar com eles, quando a alternativa é uma verdade solitária.

O termo “fantasia exata” é de Leonardo da Vinci: designa a imaginação treinada para deslizar ao longo das estruturas do real, em vez de afastar-se delas. É a habilidade cognitiva mais decisiva – e a mais escassa entre os “intelectuais públicos”, não só no Brasil como no resto do mundo.

Para complicar um pouco mais as coisas, o imaginário popular é moldado hoje em dia pela indústria do show business, o que é o mesmo que dizer que a mente do cidadão comum só é capaz de conceber na vida real as situações que tenham precedentes no cinema ou na TV, sendo que esses precedentes, por sua vez, são limitados à escala mental dos mini-intelectuais que predominam nessa indústria. Eis aí por que toda hipótese de “conspiração” só tem credibilidade quando os suspeitos são os vilões convencionais de Hollywood: a CIA, as “grandes corporações”, o Exército americano, etc. Por esse lado, as histórias mais absurdas são aceitas com uma credulidade espantosa. Na imaginação popular, o movimento comunista internacional, a espionagem chinesa, os globalistas da ONU e similares nem mesmo existem. Qualquer denúncia que se faça contra eles, por mais bem documentada que esteja, é facilmente impugnada como fantasia paranóica, justamente porque vem em sentido contrário da fantasia paranóica popularmente consagrada. Milhões de idiotas clamam contra os “lucros exagerados” das companhias de petróleo, chegando a atribuir a voracidade delas à guerra do Iraque, sem jamais levar em conta que esses lucros, na mais ousada das hipóteses, não chegam a um terço dos 19 por cento ao ano obtidos pela indústria farmacêutica, esta sim um dos pilares fundamentais do governo mundial em formação.

No caso do público americano, o que o torna ainda mais vulnerável à manipulação das notícias é a sua necessidade compulsiva de parecer equilibrado, centrista, polidíssimo e mainstream. A busca da verdade é severamente tolhida quando tem de atender simultaneamente a tantas exigências externas, dispersantes e debilitantes. Para complicar, o padrão de equilíbrio e centralidade é determinado inteiramente pela grande mídia, pelo show business e pela intelectualidade acadêmica – precisamente os três setores da sociedade onde se concentra o maior número de inimigos internos dos EUA. Acrescente-se a isso o fato óbvio de que é infinitamente mais fácil, precisamente graças às virtudes democráticas da sociedade americana, investigar os subterrâneos da CIA ou a vida empresarial de Dick Cheney do que a montanha compacta de segredos da espionagem chinesa, da máfia russa ou da rede internacional de ONGs ativistas. O resultado é que o público americano tem sempre a impressão de que o maior inimigo da humanidade são os EUA, precisamente porque ignora tudo ou quase tudo a respeito dos inimigos da América. Os americanos reprimem sua indignação, policiam suas palavras e se omitem de tomar muitas decisões necessárias e urgentes, só para não desagradar àqueles que os odeiam e para não parecer loucos aos olhos da loucura anti-americana.

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