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A ditadura anestésica

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de fevereiro de 2007

Apesar do subtítulo The European Left in the New Millennium , o livro de Paul Edward Gottfried, The Strange Death of Marxism (University of Missouri Press, 2005) fornece uma descrição da esquerda contemporânea que se aplica também às suas vententes norte-americana e latino-americana.

Não vejo como discordar da sua tese central, de que o objetivo da esquerda hoje em dia é “um gerenciamento político que no fim se aproxima do controle total, mas com uma necessidade cada vez menor de empregar a força física”. Vemos isso todos os dias no palco da tragicomédia nacional. Por toda parte a rede de controles vai se estendendo, lenta e inexoravelmente, abrangendo desde a economia até os últimos recintos da vida privada, ao mesmo tempo que os mecanismos formais da democracia continuam em vigor, apenas sem a mínima possibilidade de ser usados contra a máquina ideológica que nos esmaga.

Caracteristicamente, a rede não é toda estatal. Como preconizava Gramsci, está espalhada pela sociedade civil, que se transforma assim na corda com que ela própria se enforca. ONGs, escolas públicas e privadas, casas editoras e a grande mídia fazem a sua parte, submetendo-se docilmente às categorias de pensamento impostas pelo establishment , tão abrangentes e onipresentes que a mera possibilidade de conhecer alguma coisa para fora de seus limites se tornou inconcebível, e pequenas divergências dentro do acordo geral têm de ser convocadas às pressas para dar a impressão de que existe ainda uma oposição ideológica, uma “direita”. E a própria direita – ou aquilo que ainda leva esse nome – se apressa em legitimar o monopólio esquerdista da verdade, do bem e da virtude, proclamando que ser direitista é mesmo uma infâmia, que o máximo de anti-esquerdismo admissível é o “centro”. À direita do centro, estende-se a imensidão do nada. À medida que a recordação mesma do que fosse a direita desaparece da memória popular, a parte amputada cessa automaticamente de doer e mesmo as objeções eventuais contra o novo estado de coisas só podem se expressar na linguagem do esquerdismo, reforçando o sistema geral de crenças no instante mesmo em que protestam contra algum de seus aspectos em particular. A ditadura benévola do esquerdismo consensual é uma cirurgia auto-anestésica.

Nessas circunstâncias, a violência estatal é mesmo desnecessária. Em troca da obediência completa, o bondoso esquerdismo triunfante concede-nos o direito de viver. Mas mesmo esse direito é limitado. A violência estatal não desapareceu: apenas transformou-se em violência indireta. Para manter a população num estado de terror perpétuo basta a criminalidade livre de entraves, estimulada por organizações próximas do partido governante, ao qual as massas e até as elites, ignorantes disso, acorrem em busca de socorro, fechando pelas duas pontas, legal e ilegal, oficial e extra-oficial, o quadro da onipotência. É a perfeita consumação, por novos meios, da clássica estratégia comunista da “pressão de baixo” articulada com a “pressão de cima”. As hordas de delinqüentes desempenham aqui o papel que na Europa e nos EUA cabe aos imigrantes ilegais: são o exército de reserva mediante cuja ameaça a esquerda mantém sob rédea curta as veleidades de toda oposição “direitista” possível.

O rótulo geral de “esquerda pós-marxista”, usado por Gottlieb, é talvez um tanto prematuro, por duas razões. Primeira: o reinado da esquerda assim chamada não é uma situação totalmente nova e imprevista, mas a consumação exata dos planos de Antonio Gramsci e o resultado da aplicação sistemática da sua estratégia voltada a tranformar a ideologia esquerdista na “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino” ( sic). Segunda: os teóricos esquerdistas principais de hoje em dia, Antonio Negri, Istvan Meszaros, Immanuel Wallerstein e até o exótico Slavoj Zizek continuam filiados à tradição marxista, e não somente em nome, mas nas categorias gerais do seu pensamento. Também não é prudente ignorar o surto de neo-marxismo asiático, cuja influência sobre a esquerda européia e americana já começa a se fazer sentir (v. Toni E. Barlow, ed., New Asian Marxisms, Durham, Duke University Press, 2002). Afinal, como creio ter explicado claramente algum tempo atrás, é impossível definir o marxismo como uma teoria, como uma filosofia, como um programa de ação política e até como uma ideologia: o marxismo é uma cultura, no sentido antropológico do termo. Sua unidade não reside em nenhum corpo de doutrina, mas no apego ritual da comunidade a um conjunto de símbolos que expressam a sua identidade e o seu anseio de subsistência eterna, e que por isso mesmo sobrevivem intactos não só às variações doutrinais mais extravagantes e contraditórias mas a sucessivos e aparentemente devastadores choques de realidade (v. a série de artigos http://www.olavodecarvalho.org/semana/031218jt.htm , http://www.olavodecarvalho.org/semana/040101jt.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/040108jt.htm ).

Mais exatamente, o marxismo é uma subcultura dentro da “cultura da revolução mundial”, ou, como prefere chamá-la J. L. Talmon, da “religião da revolução”, cuja origem expliquei brevemente em artigos anteriores. Ao lado do anarquismo (do qual prometo falar outro dia), ele é a terceira dessas subculturas. O iluminismo foi a primeira, a rebelião romântica a segunda. Enquanto subsistir a cultura da revolução, nenhuma dessas subculturas desaparecerá para sempre. Extinta a sua vigência histórica mais espetaculosa, subsistem como camadas profundas do subconsciente, prontas a vir de novo à tona ao primeiro sinal de debilitação da camada mais recente e superficial. A cultura da revolução revigora-se por meio dessas periódicas irrupções do passado. Quando o marxismo soviético começou a fazer água, após o relatório Kruschev de 1956, a “New Left” dos anos 60, irmã siamesa da “New Age”, foi buscar alento num renouveau romântico e irracionalista, calcado não somente no romantismo originário oitocentista mas no modernismo pré-nazista dos anos 20 com seu apelo à “natureza”, ao culto do corpo e da juventude, ao orientalismo e indigenismo “multiculturais”, ao pan-sexualismo e à “experiência iluminadora” das drogas.

Como a mitologia da “New Age” ainda está viva e atuante, constituindo mesmo a força inspiradora por trás de todo o globalismo ecológico, abortista, gay e feminista, não era a ela que nos anos 80 a cultura da revolução podia pedir socorro após o segundo abalo sofrido pela subcultura marxista com a glasnost e a seqüência de autodissoluções do movimento comunista que culminou na queda do Muro de Berlim e na auto-supressão da URSS. Desta vez o apelo foi a uma camada mais antiga do mito revolucionário: o iluminismo. Da noite para o dia, esquerdistas desiludidos retiravam do baú os fantasmas de Voltaire e Diderot, faziam discursos grandiloqüentes em nome da “Razão” e batiam no peito anunciando, em vez do socialismo científico, o advento global das “Luzes”. No Brasil, o mais patente sintoma disso foi o sucesso obtido na esquerda pelos livros de Sérgio Paulo Rouanet, As razões do Iluminismo (1987) e O Espectador Noturno. A Revolução Francesa através de Rétif de la Bretonne (1988). Apenas trinta anos antes, ninguém na esquerda falava dos philosophes senão com aquela empáfia com que Marx os reduzia a precursores “burgueses” da revolução proletária. Agora, com o comunismo soviético dissolvendo-se a olhos vistos, as fórmulas grandiosas e ocas do iluminismo eram mais que uma tábua de salvação: eram uma injeção de otimismo no corpo debilitado da religião revolucionária, ameaçada de morte próxima pelo “fim da História” que Francis Fukuyama anunciava triunfalmente.

Pode-se notar, en passant, que, assim como os anos 60 apelaram ao romantismo em suas duas versões, a originária oitocentista e a modernista, a ressurreição iluminista não se socorreu somente dos Voltaires e Diderots, mas do seu herdeiro tardio, o cientificismo-evolucionismo da segunda metade do século XIX. De repente, os velhos preconceitos cientificistas de Ernest Haeckel e Ludwig Büchner, que pareciam mortos e enterrados desde as análises implacáveis que lhes concederam as escolas fenomenológica, existencialista e culturalista nas primeiras décadas do século XX, ressurgiam com toda a força, prevalecendo-se da prodigiosa ignorância filosófica das novas gerações. O evolucionismo, em particular, afirmava-se de novo não só como única teoria válida para explicar a variedade das espécies animais (reprimindo os críticos por meio do boicote profissional, de legislações restritivas e de campanhas difamatórias), mas como princípio explicativo universal, capaz não só de abranger desde os protozoários até as esferas mais elevadas da religião, da arte e do pensamento, mas de substituir as religiões tradicionais como base única e suficiente da moral e da civilização. E isso justamente no momento em que a contribuição do darwinismo para as ideologias nazista e comunista, longamente negada pelos grão-sacerdotes do culto evolucionista, aparecia finalmente como um fato histórico bem comprovado (v. o DVD de Richard Weikart, Darwin’s Deadly Legacy. The Chilling Impact of Darwin’s Theory of Evolution, em www.wnd.com). Na esteira do cientificismo, o anticristianismo militante, que o comunismo soviético havia abandonado em favor de uma política de infiltração e corrosão interna das igrejas, ressurge com virulência inaudita tão logo o pretexto do “diálogo” com os cristãos perde sua razão de ser. E ressurge pelas mãos de quem? Não dos esquerdistas radicais, mas dos liberais iluministas, a retaguarda salvadora da revolução.

Nenhuma das três camadas da religião da revolução – iluminismo-cientificismo, romantismo-modernismo, marxismo-anarquismo – poderá jamais ser considerada extinta enquanto a própria religião da revolução continuar viva. A todo momento, cada uma delas pode ser trazida de novo à tona para reforçar a fé vacilante dos revolucionários, abalada pelo choque de realidade ou pela constatação de seus próprios crimes, infinitamente mais graves do que todos os males que o culto da revolução professou eliminar. O marxismo só morrerá quando o próprio sentimento de unidade da tradição revolucionária internacional se dissolver nas brumas do tempo.

Ensaio de patifaria comparada

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 21 de agosto de 2006

A situação na terrinha anda tão deprimente que se tornou uma questão de auxílio humanitário lembrar aos brasileiros, de tempos em tempos, que o nosso país não tem o monopólio da patifaria universal. A propaganda anti-religiosa espalhada por ONGs milionárias, por intelectuais ativistas e pela mídia chique nos EUA tem apelado a expedientes tão mesquinhos, tão sórdidos, que às vezes chego a me perguntar se não fui demasiado impiedoso com os vigaristas nacionais em O Imbecil Coletivo.

O artigo que reproduzo abaixo foi escrito originariamente em inglês para um público americano, mas, tão logo botei nele um ponto final, achei que seria útil para os meus compatriotas, não só pelo que informa da guerra cultural nos EUA, mas por fornecer um exemplo de como as sociedades altamente desenvolvidas são também altamente desenvolvidas no que não presta. Espero que sirva de consolo aos leitores do noticiário nacional da semana.

O motivo que me levou a escrevê-lo foi um artigo cheio de golpes baixos publicado pelo prestigioso biólogo Jerry Coyne em The New Republic, uma revista esquerdista que, em geral, é anormalmente decente. O autor da coisa, irritado com a articulista conservadora Ann Coulter, tentava desmoralizá-la esfregando no nariz dela suas credenciais acadêmicas de professor da Universidade de Chicago; mas, levado pelo ódio emburrecedor, acabava apresentando argumentos que fariam corar de vergonha o próprio dr. Emir Sader, se não padecesse de icterícia mental.

A sra. Coulter disputa com Rush Limbaugh e Michael Savage o primeiro lugar na lista dos colunistas mais odiados pelo establishment de esquerda. O currículo que ela apresenta para isso constitui-se de uma língua ferina vitaminada por um senso de humor desconcertante e uma capacidade de pesquisa fora do comum. Além disso, como a mulher é bonitona, fica mais irritante ainda. Sua popularidade cresceu a tal ponto que uma fábrica de brinquedos fez dela o modelo para uma bonequinha da série Barbie: você aperta a barriguinha dela e ela diz coisas horríveis contra os esquerdistas.

O prof. Coyne ficou especialmente revoltado com o último livro da sra. Coulter, Godless: The Church of Liberalism, “Os Sem Deus: A Igreja do Esquerdismo” (Crown Forum, 2006), que submete a seita esquerdista-materialista-evolucionista a um tratamento tão sádico quanto merecido. Para insinuar que a dona estava enfeitiçada, o cientista de Chicago deu a seu artigo de protesto o título trocadilhesco de “Coultergeist” e anunciou solenemente sua intenção de exorcizar a sra. Coulter mediante a água benta da sua erudição biológica. Infelizmente, a raiva foi tanta que o capeta acabou se apossando é da mente do professor, induzindo-o a exibições de raivinha mais próprias da inveja feminina do que da investigação científica.

Mas não pensem que esse artigo constitui uma exceção aberrante. O que me chamou a atenção nele foi, ao contrário, a sua tipicidade: querendo contestar o retrato cruel que Ann Coulter fizera da tribo intelectual esquerdista, o prof Coyne o ilustra com exatidão milimétrica.

Esperei uns dias e, como ninguém respondesse ao professor, resolvi fazê-lo eu mesmo, escrevendo, a duras penas, em língua de gringo, que aqui retraduzo em português:

 

O modo de raciocinio do prof. Coyne

 

Ao comentar o artigo do prof. Jerry Coyne, “Coultergeist” (The New Republic, online, 31 july 2006) não tentarei defender Ann Coulter — eu poderia antes tomar lições dela sobre como defender-me a mim mesmo. Nem prodigalizarei aos gentis leitores as minhas eruditíssimas opiniões sobre evolução, design inteligente, etc., pela simples razão de que não tenho nenhuma. Concedendo à minha irresoluta pessoa o direito de permanecer em dúvida em questões nas quais as certezas absolutas são tão abundantes hoje em dia, deixarei de lado essas altas matérias, limitando-me a enfocar alguns dos argumentos do prof. Coyne, os quais ilustram de maneira muito didática como a profunda ignorância de um assunto não é jamais obstáculo a que alguém o discuta com elevada autoridade científica.

De modo geral, boa parte da atividade acadêmica hoje em dia consiste em delimitar com cuidadosa precisão as fronteiras de um campo especializado de pesquisas e, com base na autoridade adquirida no seu estudo, dar opiniões sobre tudo o mais.

Como tarimbado professor de ecologia e evolução da Universidade de Chicago, o prof. Coyne está habilitado a afirmar que faltam à sra. Coulter as habilidades acadêmicas requeridas para a discussão desses assuntos. Mas, das 2432 palavras do artigo que ele escreveu contra ela, só 179 são argumentos científicos especializados. Ao longo das restantes 2253, o prof. Coyne, que tão modestamente havia se furtou a nos oferecer uma exibição plena da sua alegada superioridade profissional, presenteia os leitores com suas idéias sobre história, filosofia, política e religiões comparadas, entre outros campos nos quais suas credenciais acadêmicas são tão minguadas quanto as da sra. Coulter em biologia.

A falta de educação acadêmica numa área especializada não é em si prova de ignorância total nessa área. O que distingue o prof. Coyne é que ele condensa na sua pessoa ambas essas carências ao mesmo tempo. Ele realmente não sabe nada de assuntos que não pertencem à sua esfera de competência universitária, e esta é precisamente a razão pela qual ele imagina que pertencem.

O seguinte parágrafo fornece um exemplo do que estou dizendo: “O erro de igualar o darwinismo a um código de conduta leva Coulter a formular a sua acusação mais idiota: a de que o Holocausto e os inumeráveis crimes de Stalin podem ser jogados na cara de Darwin. ‘De Marx a Hitler, os homens responsáveis pelos maiores morticínios em massa do século XX foram ávidos darwinistas.’ Quem quer que seja religioso deve tomar muito cuidado ao dizer uma coisa dessas, porque, ao longo da história, mais matanças foram feitas em nome da religião do que de qualquer outra coisa .”

Poucos autores poderiam superar o prof. Coyne em sua habilidade de comprimir tanta ignorância histórica em tão escasso número de linhas. É claro que a biologia evolucionária e a ideologia evolucionária podem ser distinguidas conceptualmente, e de fato o são para fins práticos e pedagógicos. É igualmente óbvio que a primeira pode ser defendida nos seus próprios termos, sem necessidade de recorrer a argumentos extraídos da segunda. Mas isso não significa que na sua origem elas fossem campos separados e irrelacionados, que só vieram a ser unidos por um artifício retórico concebido ex post facto pela malvada sra. Coulter. Nenhum historiador sério ignora que a ideologia evolucionária, tal como concebida por Herbert Spencer, precedeu e inspirou Charles Darwin (1). Nem ignora que Darwin, como biólogo, aceitava de bom grado a conseqüência prática mais terrível daquela ideologia, isto é, a necessidade de exterminar raças e povos inteiros em proveito da “evolução” (2); nem que, imediatamente após ter sido formulado como teoria biológica, o evolucionismo foi posto de novo a serviço da ideologia, e isto por obra de biólogos evolucionistas eminentes e não de algum doutrinário alheio aos estudos científicos. (3)

Historicamente, a evolução como ideologia e a evolução como teoria biológica estão tão entrelaçadas que só puderam ser separadas por uma distinção abstrativa posterior e pela conseqüente decisão administrativa de enviar uma delas ao departamento de História e a outra ao departamento de Ciências Naturais. Como o prof. Coyne é demasiado preguiçoso para atravessar a distância entre esses dois edifícios universitários, ele termina por tomar uma abstração mental como realidade histórica, e depois inverte os termos da sua própria confusão para debitá-la na conta da sra. Coulter.

Fortalecido pelo sucesso imaginário do seu argumento ginasiano, o prof. Coyne rapidamente descarta a afirmativa da sra. Coulter de que “os maiores assassinos em massa do século XX foram ávidos darwinistas”, como se fosse demasiado estúpida para ser discutida, quando, na verdade, ela é um fato histórico bem estabelecido. Entre os muitos livros que eliminam toda dúvida razoável quanto às crenças evolucionistas de Marx, Lenin, Stalin, Hitler e Mao Tse Tung, o prof. Coyne poderia ao menos ter checado alguns poucos (4), se ele não fosse antes inclinado a respaldar-se na sua própria imaginação como fonte historicamente confiável.

No entanto, não seria justo dizer que o prof. Coyne nem mesmo tenta raciocinar contra a afirmativa da sra. Coulter. Ele chega a construir contra ela uma sentença inteira: “Não me lembro de qualquer menção ao darwinismo no julgamento dos Médicos de Moscou.” Infelizmente, a tentativa erra o alvo por muitas milhas. O fato de um determinado princípio geral não ser alegado em defesa de um certo argumento específico não prova que ele não seja uma das premissas em que esse argumento se baseia. Ao contrário, quanto mais um princípio é geralmente aceito como senso comum, menos necessidade há de apelar explicitamente a ele em qualquer discussão específica. Na circunstância precisa apontada pelo prof. Coyne, o recurso a argumentos evolucionistas estaria aliás bastante fora do lugar, de vez que os réus (acusados de tentar envenenar Stalin) não eram membros da classe burguesa “atrasada” mas traidores pertencentes à própria elite partidária “progressista”. Quem quer que tenha se beneficiado de uma formação científica deveria estar apto a distinguir entre o argumento pertinente e uma desconversa extravagante. O prof. Coyne não está.

Mas, antes de encerrar o seu parágrafo, o prof. Coyne ainda teve tempo para enriquecê-lo com um mantra que, embora ele não o saiba, foi originariamente concebido para ser repetido pelos iletrados do mundo: “Mais matanças foram feitas em nome da religião do que de qualquer outra coisa.” Tanto quanto a evolução animal, o fenômeno dos homicídios em massa é objeto de investigação científica que requer observação acurada e rigoroso método lógico, aos quais deve-se acrescentar o alto nível de seriedade moral comproporcionado à natureza do assunto. Nenhum historiador profissional ignora que os homicídios em massa devidos a conflitos religiosos, por mais horror que nos inspirem, jamais produziram um número de vítimas nem mesmo remotamente comparável ao dos modernos movimentos revolucionários inspirados em ideologias “científicas”. O mais completo estudo quantitativo do assunto foi feito por R. J. Rummel, professor emérito de ciência política na Universidade do Havaí. As conclusões de sua pesquisa de quatro décadas são apresentadas nos livros Understanding Conflict and War, 5 vols., Thousand Oaks (CA), Sage Publications, 1975-1981, e Death By Government, New Brunswick (NJ), Transaction Publications, 1994. Ampliando o conceito para além da nuance racial implícita na palavra “genocídio”, o prof. Rummel propõe o termo “democídio” para descrever de maneira mais genérica as matanças de povos inteiros. O desenho que ele obtem do estudo dos homicídios em massa ao redor do mundo não difere, em substância, do consenso usual dos historiadores, mas lhe acrescenta a precisão do método quantitativo e a nitidez das escalas comparativas. Em suma, o número de seres humanos mortos em menos de oito décadas pelas duas ideologias evolucionistas, nazismo e comunismo (140 milhões de pessoas), ultrapassa em dez milhões a taxa total de mortos dos homicídios em massa conhecidos no mundo desde 221 a.C. até o começo do século XX, dos quais os resultantes de motivos religiosos são apenas uma fração, e a parte devida aos cristãos uma fração da fração.

É absolutamente inútil alegar, como alguns inevitavelmente farão, que as ideologias evolucionistas não são pura ciência, na medida em que a mesma falta de pureza original pode ser legitimamente imputada às motivações religiosas dos cruzados ou dos inquisidores. Ademais, no que concerne ao cristianismo em especial, nenhum sinal de anuência à necessidade de homicídios em qualquer número que fosse está nem remotamente presente no Evangelho, ao passo que o pai fundador do evolucionismo científico foi suficientemente explícito ao declarar que as matanças em massa deveriam ser aceitas como um fenômeno evolutivo normal como qualquer outro. Mais significativo ainda é o fato de que a Igreja não apelou a nenhum tipo de brutalidade antes de decorridos muitos séculos da sua fundação, ao passo que o evolucionismo já serviu de estimulante a uma das ideologias revolucionárias logo após a publicação de A Origem das Espécies, e à outra umas décadas depois, graças sobretudo aos esforços do segundo-no-comando das hostes evolucionistas, Ernst Haeckel. A afirmação do prof. Coyne de que “Se Darwin é culpado de genocídio, Jesus Cristo também é” não passa de um aberrante jogo de palavras nascido de uma mistura de ignorância histórica e ódio anti-religioso vulgar.

Essa mesma mistura leva o prof. Coyne a ostentar, como prova de que a religião é a causa universal das violências, a afirmação ridícula de que “a razão pela qual Hitler escolheu os judeus (como alvos de perseguição) foi que os cristãos os encaravam como assassinos de Cristo”. Bem, como Hitler, segundo declarou a Hermann Rauschning,   estava abertamente interessado em “esmagar a Igreja como quem pisa num sapo”, é difícil acreditar que estivesse também ansioso por vingar-se do assassinato de Cristo, já que isso implicaria logicamente que além dos judeus ele atacasse também os herdeiros professos do Império Romano, isto é, os fascistas italianos, que no entanto ele escolheu como seus mais queridos aliados. Nenhum historiador especializado do período tendo jamais sustentado a idéia de que o Evangelho fosse uma influência importante na formação da mente de Hitler, a maioria deles reconhece no entanto que autores evolucionistas como Houston Stewart Chamberlain, Edgar Dacqué, Ernst Haeckel e Fritz Lenz tiveram um papel essencial na origem da futura ideologia nazista. Chamberlain apela explicitamente a motivos darwinianos como argumentos contra os judeus. Mais significativamente ainda, a maior parte das doutrinas racistas alemãs já estava pronta para uso antes mesmo de que Hitler estreasse na política. Elas foram criadas por importantes biólogos evolucionistas da Liga Monista Alemã, cujas doutrinas foram subseqüentemente incorporadas pelo Partido Nazista. O fundador da Liga, Hawckel, fazia pregação anti-semita desde pelo menos 1893. Ele era um materialista que via o cristianismo como “o principal obstáculo à vitória da ciência”. (5) Obviamente o prof. Coyne não tem a capacidade (ou a vontade) de distinguir entre uma crença doutrinal genuína e uma frase-de-efeito adotada hipocritamente muito depois como incidental e secundário artifício de propaganda, usado, aliás, menos como um meio de seduzir a platéia religiosa séria (Hitler não tinha ilusões quanto a isso), do que como camuflagem para desviar a atenção popular das perseguições em massa impostas aos cristãos.

Não comentarei as linhas que o prof. Coyne gasta em falsear as credenciais acadêmicas alheias para enaltecer as suas próprias, nem as insinuações mesquinhas com que ele tenta ferir a Sra. Coulter na sua dignidade feminina. O modo de raciocínio do prof. Coyne já fornece prova suficiente da sua baixeza de caráter e da sua total falta de integridade intelectual, de modo que posso me dispensar de sondar as camadas mais profundas de uma mentalidade fedorenta.

Notas

1.        O evolucionismo social de Spencer, que inclui rudimentos de uma teoria da evolução biológica semelhante à de Darwin, foi exposto no seu livro Social Statics, publicado em 1850, nove anos antes de The Origin of Species.  Foi Spencer, não Darwin, quem criou a expressão “sobrevivência do mais apto”. Darwin leu e elogiou o livro, e muito do seu trabalho posterior é uma longa discussão amigável com  Spencer. V. Robert J. Richards, “The Relation of Spencer’s Evolutionary Theory to Darwin’s”, em http://home.uchicago.edu/~rjr6/articles/Spencer-London.doc — um trabalho que o prof. Coyne deveria conhecer, já que o autor é seu colega na Universidade de Chicago.

2.        “Em algum período futuro, não muito distante se medido em séculos, as raças civilizadas do homem quase que com certeza exterminarão e substituirão as raças selvagens ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, os macacos antropomorfos serão sem dúvida exterminados. A distância entre o homem e seus parceiros mais próximos será então maior.” (Charles Darwin, The Descent of Man, 2nd  ed., New York,  A. L. Burt Co., 1874, p. 178).

3.        Por exemplo, Thomas Huxley, o mais importante evolucionista inglês depois de Darwin, escreve: “Nenhum homem racional, conhecendo os fatos, acredita que o negro médio seja igual, e muito menos superior, ao homem branco.” (Thomas H. Huxley, Lay Sermons, Addresses and Reviews, New York, Appleton, 1871, p. 20.)

4.        Sugiro: Daniel Gasman, The Scientific Origins of National-Socialism, New Brunswick (NJ), Transaction Publishers, 2004; James Reeeve Pusey, China and Charles Darwin, Harvard University Press, 1983; Richard Weikart, Socialist Darwinism. Evolution in German Socialist Thought From Marx to Bernstein, San Francisco (CA), International Scholars Publications, 1999; Richard Weikart, From Darwin to Hitler. Evolutionary Ethuics, Eugenics and Racism in Germany, New York, Palgrave, 2004.

5.        Gasman, p. 55.

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