Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 3 de junho de 2015
Não vai nisso o menor ressentimento pessoal. A indiferença à mensagem quase nunca implicou hostilidade ou desprezo ao mensageiro. Sempre fui muito bem recebido em toda parte. As pessoas me ouviam, aplaudiam e, com ares de amável ceticismo, prometiam pensar no assunto.
Ficaram pensando até agora. Nada fizeram.
Semana após semana os acontecimentos foram se avolumando exatamente como eu havia previsto, e ainda assim até os melhores entre os meus ouvintes continuaram acreditando que tudo passaria com o tempo, que nada de mau sucederia que não viesse a ser corrigido automaticamente pela mágica do mero rodízio eleitoral.
Isso era impossível, protestava eu. Onze anos atrás escrevi:
“Quem quer que, a esta altura, ainda sonhe em ‘vencer o PT’, seja nas próximas eleições, seja ao longo das décadas vindouras, deve ser considerado in limine um bobão incurável, indigno de atenção.
“O PT, como digo há anos, não veio para alternar-se no poder com outros partidos — muito menos com os da ‘direita’ — segundo o rodízio normal do sistema constitucional-democrático. Ele veio para destruir esse sistema, para soterrá-lo para sempre nas brumas do passado, trocando-o por algo que os próprios petistas não sabem muito bem o que há de ser, mas a respeito do qual têm uma certeza: seja o que for, será definitivo e irrevogável.
“Não haverá retorno. O Brasil em que vivemos é, já, o ‘novo Brasil’ prometido pelo PT, e não tem a menor perspectiva de virar outra coisa a médio ou longo prazo, exceto se forçado a isso pela vontade divina ou por mudanças imprevisíveis do quadro internacional.”
Continuava:
“É deplorável ter de insistir numa coisa tão evidente, mas uma estratégia de escala continental, escorada numa rede global de organizações e no completo domínio da atmosfera cultural não pode ser enfrentada por meio de resistências locais, de espertezas provincianas, de críticas pontuais a erros econômico-administrativos ou da aposta louca nas brigas internas da facção dominante, que só a revigoram. A desproporção de forças, aí, é tão brutal, tão avassaladora, que não vale nem mais a pena insistir no assunto.”
Isso foi em 2004 (leia aqui).
Hoje até as crianças sabem que o establishment brasileiro – a administração pública, três quartos do Congresso, o STF, o sistema judiciário praticamente inteiro, a justiça eleitoral, a educação desde o primário até a universidade, a CNBB, parte considerável da “grande mídia” e um punhado de mega-empresas – se reduziu a uma máquina dócil e bem azeitada para amparar as tramas do PT, assessorar e acobertar os seus crimes, ajudá-lo na realização dos planos do Foro de São Paulo e na instauração da Pátria Grande comunista dos sonhos dos irmãos Castro e de Nicolás Maduro.
Chegamos finalmente a uma situação em que mesmo dois milhões de brasileiros clamando nas ruas, multidões xingando Lula e Dilma por toda parte e 90% da população exigindo nas pesquisas de opinião o fim do império petista são impotentes para remover de seus postos os delinquentes que se apossaram do país e dele fizeram um bordel de luxo para os poucos, um favelão para os demais.
Na melhor das hipóteses, ela mesma remota e dificultosa, conseguirão obter do Congresso, como prêmio de consolação pela legitimação de eleições notoriamente fraudulentas, um miserável impeachment presidencial, medida simbólica que bem pode deixar intacto o restante do sistema comunocleptocrático instalado em Brasília.
Quer isso dizer que minhas previsões de 2004 fossem proféticas? Que nada. Estavam é atrasadíssimas. Em 1993, no livro A Nova Era e a Revolução Cultural, eu já havia exposto o plano praticamente inteiro do PT para a dominação do país. O livro não foi ignorado. Vendeu uma edição inteira no dia do lançamento, outra nas semanas seguintes. A terceira esgotou-se, a quarta (Vide Editorial, 2014) já está no fim. Foi lido e guardado na estante, bem longe da possibilidade de inspirar qualquer ação, mesmo tímida.
Em 1989, em conferência na Casa do Estudante no Brasil, sob o título “O fim do ciclo nacionalista”, eu já equacionava o drama de um país cuja cultura se formara sob o signo do nacionalismo e da busca da identidade (o “senso da nacionalidade” de que falava Machado de Assis) e ao qual coubera o destino infeliz de começar a projetar-se no cenário do mundo justamente numa época em que a tendência geral é dissolver as soberanias nacionais e absorvê-las em conglomerados regionais que vão tentando aplanar o caminho para a ambição utópica mas persistente de um governo mundial.
Ao ver hoje a marcha triunfante da Pátria Grande, que o povo odeia mas da qual não sabe como se livrar, pergunto-me por que, de tantos intelectuais, políticos e militares que me ouviram na ocasião (pois repeti a conferência em vários lugares), nenhum entendeu que, naquele momento, a inventividade, a audácia criadora, em vez da acomodação preguiçosa no culto beócio da “estabilidade das nossas instituições”, eram uma questão de sobrevivência, não de livre escolha?
Por que tantas pessoas aparentemente inteligentes, em vez de vasculhar os livros e documentos a que eu me referia, preferiram crer na lenga-lenga anestésica da TV Globo e da Folha, para cujos porta-vozes eu era apenas um alarmista histérico, um “saudosista da Guerra Fria”, ou, como disse textualmente o sr. Otavio Frias Filho, um açoitador de cavalos mortos?
Quem, hoje, exceto o alucinado Marco Antonio Villa, que ama tanto a chacota que a atrai toda para si, seria ainda louco de negar que praticamente tudo o que expliquei e previ ao longo dos anos era no mínimo o que havia de mais próximo à verdade, enquanto em volta os luminares, os bem-pensantes, os senhores doutores, os consultores pagos a peso de ouro, só repetiam chavões soporíferos tipo “Lula mudou”, “o socialismo morreu”, “as nossas instituições são sólidas” etc. etc.?
Aos poucos, porém, fui notando que as mudanças históricas que eu descrevia — e que as inteligências mais vigorosas da platéia não negavam, mas nas quais nada viam além de uma caminhada brilhante em direção a “mais democracia” – traziam, em si mesmas, a causa da incompreensão com que minhas palavras eram recebidas.
Comecei a documentar esse aspecto do processo em O Imbecil Coletivo, de 1995: estrangulada pela “ocupação de espaços” gramsciana, onde o critério do prestígio intelectual e artístico passava a ser uma carteirinha do PT ou do PSOL, a alta cultura no Brasil agonizava.
As inteligências definhavam a olhos vistos, tornando impossível um debate sério sobre o que quer que fosse e substituindo tudo por uma linguagem de clichês na qual nada se podia dizer que já não tivesse sido dito mil vezes.
A juventude, nascida já no meio da debacle, não podia ver nela nada de anormal, por lhe faltar a escala comparativa. Acomodava-se à degradação confortavelmente, prazerosamente, embriagada pela promessa de deleites sensuais espetaculares sob a proteção do Estado-babá.
Mas, para quem tinha sido criado na época em que os debates culturais e políticos eram conduzidos por leões como um Otto Maria Carpeaux, um Álvaro Lins, um Nicolas Boer, um Julio de Mesquita Filho, um Antônio Olinto, um Mário Ferreira dos Santos, um Vilem Flusser, ver de repente o cenário intelectual ocupado inteiramente por micos-leões-dourados tipo Emir Sader, Marilena Chauí, Renato Janine Ribeiro, Vladimir Safatle, Gilberto Felisberto de Vasconcelos, Luís Fernando Veríssimo e tutti quanti era algo que prenunciava, para esta parte do mundo, uma idade das trevas.
Analisado à luz da regra de Hugo von Hoffmanstal, de que “nada está na política de um país que não esteja primeiro na sua literatura”, o Brasil do futuro que se vislumbrava nos debates públicos dos anos 90 era exatamente o que temos hoje: um vácuo sangrento, um Nada crescente e invencível que tudo devora.
Documentei o fenômeno em linguagem satírica, que a evolução posterior dos acontecimentos veio a tornar inadequada à medida que o ridículo e o grotesco, passando da esfera das idéias à dos atos e das leis, afirmaram o poder da sua autoridade incontrastável e se consolidaram nas formas monstruosas do deprimente, do abjeto, do indescritivelmente vergonhoso. Daquilo que não pode ser satirizado porque, como diria Karl Kraus, já ultrapassou as fronteiras da sátira.
Não posso repassar mentalmente esse trajeto sem que me volte à memória o refrão de uma velha canção folclórica americana: “Oh, when will they ever learn?”