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Natal 2014

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de dezembro de 2014

          

Que poderia ser o melhor Natal da sua vida? Aquele em que você percebesse claramente a Presença de Deus. Que é a Presença de Deus? Ela é tantas coisas que todos os livros do mundo não bastariam para descrevê-la. De todas essas coisas, sei somente uma, uminha. Ela pode ser muito modesta no conjunto, mas para mim é a mais importante, justamente porque é a única que  conheço com a certeza absoluta de quem viveu a experiência e sabe do que está falando.
Vou tentar resumi-la. Espero que você goste deste presente de Natal.
É o seguinte. Quando você fala com alguém, não joga simplesmente palavras para todo lado, mas as dirige a uma pessoa determinada, da qual você sabe alguma coisa. Falar com Deus não é diferente disso. Você tem de se dirigir a Ele como a uma pessoa determinada, não um anônimo desconhecido que não está em parte alguma.
Você tem de se apegar a algo que você sabe de Deus com certeza, e falar a esse algo como se fosse Deus inteiro. É claro que não é, mas Deus não liga para isso. Quando falamos com seres humanos, é a mesma coisa. Você fala com esta pessoa, neste lugar, num momento determinado do tempo, como se o que estivesse diante de você fosse a pessoa inteira, do nascimento à morte, sabendo que não é, mas que de algum modo o que você diz a esse recorte de pessoa chega à pessoa inteira.
Pois bem, de Deus há uma coisa que sei com certeza, e é por esse canal que falo com Ele.
Na verdade são duas coisas.
A primeira é que Ele me conhece mais do que eu mesmo, e que nada que eu diga de mim para Ele será novidade. Ao contrário: conto um pedacinho da história e Ele me mostra o resto.
Só há um problema: Você quer mesmo saber tanta coisa a seu respeito? Se você não tem a firme disposição de aceitar o seu retrato tal como Deus o mostra, com todas as surpresas agradáveis e desagradáveis que Ele tem para lhe mostrar, Ele não lhe mostrará nada.
Às vezes queremos contar a Deus os nossos pecados, mas como podemos fazê-lo, se é o próprio Espírito Santo quem nos ensina quais são esses pecados? Às vezes pensamos que é um, e na verdade é outro. Uma boa coisa é pedir a Deus que lhe revele seus verdadeiros pecados, para que você os confesse. Nos dias seguintes você vai se lembrar de vários deles, que já tinham se perdido na memória ou que nunca estiveram lá.
Mas é claro que o que estou dizendo não se refere só a pecados. Você pode pedir que Deus lhe mostre quem você é. Só que, se Ele mostrar tudo de uma vez, não caberá no seu círculo de atenção. Portanto, peça que Ele lhe revele, de tudo quanto você é, só aquilo que Ele acha verdadeiramente importante que você saiba na presente etapa da sua vida.
A segunda coisa é essencial para que isso funcione.
Todos nós falamos de nós mesmos usando a palavra “eu”. O eu é o centro agente e consciente que tenta dirigir os nossos atos e pensamentos no meio de uma gigantesca confusão que vem do nosso inconsciente, do meio social, de fragmentos de conversas entreouvidas, da TV, do diabo. Ora, toda essa confusão está em nós, ela é nós de algum modo, mas não é o nosso “eu”. Isso quer dizer que cada um de nós só é um “eu” de maneira parcial e imperfeita. Somos muito imperfeitamente personalizados. Há muitos pedaços em nós que nos são estranhos, que são anônimos. Pedaços de nós que são coisa, e não pessoa.
Os bichos e coisas ao nosso redor não têm um eu. Não podem falar consigo mesmos, viver a vida interior de alguém que se conhece como centro agente, responsável, consciente, ao menos em parte, da sua história e co-autor consciente, espera-se, dos capítulos restantes.
De todos os seres e coisas, só o ser humano tem um “eu”, ainda que incompleto e imperfeito.
Deus, no entanto, tem um Eu completo e perfeito. Ele mesmo, por meio de Moisés, nos ensinou o Seu Nome, e esse nome é “Eu Sou”. Nele não há elementos estranhos, que Ele próprio desconheça. Em Deus não existe alteridade.
Mas se o Eu de Deus é completo e perfeito, e o nosso é parcial, fragmentário e imperfeito, isso quer dizer que só temos um eu por Graça de Deus, porque Ele nos conferiu, na medida das nossas possibilidades, uma capacidade que, a rigor, só Ele possui.
Foi nesse sentido que Paul Claudel, o poeta, disse: “Deus é Aquele que, em mim, é mais eu do que eu mesmo.”
Deus, portanto, não só sabe tudo a seu respeito, mas é d’Ele que vem a capacidade que você tem de falar consigo mesmo (e com Ele), a capacidade de possuir uma “intimidade” que nenhuma coisa ou bicho jamais terá.
Foi por isso que outro poeta, Antonio Machado, disse: “Quem fala consigo espera falar a Deus um dia.”
Um dia? Quando? Você salta da conversa solitária para a conversa com Deus no instante em que toma consciência de que: (a) está falando com Alguém que conhece você melhor que você mesmo; (b) está falando com Alguém que é a própria raiz, a fonte mais íntima da sua capacidade de conhecer-se e de falar consigo mesmo. Alguém que é mais você do que você mesmo. Então você descobre que Ele sempre esteve aí e que a única coisa que separava você d’Ele era o que o separava de você mesmo.
A partir desse instante, o falar consigo mesmo, na oração, é uma abertura para descobertas sem fim e para uma intensificação do seu eu, da sua consciência de si, da sua presença diante de si mesmo, dos outros eus, do mundo e do próprio Deus.
Descubra isto neste Natal e seja feliz.

Feliz Natal, queiram ou não

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de dezembro de 2013

Por mais que me esforce, não consigo imaginar como se faz para desejar “Feliz Natal” contra alguém. Mesmo que estejamos nos dirigindo a um cidadão que rejeita o nosso Cristo com todas as suas forças, o que lhe ensejamos com essas palavras, já que ele não quer os benefícios da vida futura, é que pelo menos desfrute de alguma paz e bem-estar na sua casa enquanto, na nossa, celebramos o Advento do Salvador sem incomodá-lo no mais mínimo que seja e até pensando alguma coisa em seu favor durante as nossas orações. No entanto, de uns tempos para cá um vasto grupo de ateístas militantes, escorado em organizações bilionárias e no apoio da grande mídia, decidiu fingir que se sente mortalmente ofendido quando assim o cumprimentamos. Quando em vez disso um deles nos diz “Boas Festas”, o sentido da sua mensagem é claro: “Vá para o diabo com o seu Natal, o seu Cristo e toda a sua maldita religião. Esconda-a, pratique-a nas catacumbas mas tire essa coisa hedionda da minha frente.” Subentende-se que, saudados com tamanha gentileza, devemos retribuir desejando para o nosso interlocutor uma pletora de bens deste mundo e total despreocupação quanto à existência do outro. Se em vez disso você insiste em responder com “Feliz Natal”, terá de fazê-lo com plena consciência de que essas duas palavrinhas fatídicas serão ouvidas como uma declaração de guerra. É assim que, neste como em outros casos, o sentido do que dizemos já não depende da intenção com que o fazemos, mas do propósito imaginário que um fingidor histérico nos atribui. Como ele nos odeia, tem de fazer de conta que a nossa gentileza é uma ofensa intolerável.

Essa inversão projetiva – talvez o mais clássico sintoma da histeria — é minha velha conhecida. Uns dez anos atrás, um grupo de moleques enfezados criou no Orkut uma comunidade de nome “Nós odiamos o Olavo de Carvalho”, onde espalhavam a meu respeito as histórias mais medonhas, me atribuíam toda sorte de crimes e baixezas e vasculhavam a vida da minha família em busca de pecados escabrosos. Tudo, é claro, sob o pretexto de “debate democrático”, com o direito suplementar de queixar-se de “ataques ad hominem” quando, uma ou duas vezes numa década, eu lhes dava um minuto de atenção e os mandava pastar. Quando a virulência da coisa chegou ao nível da loucura pura e simples, trocaram o nome da página para “O Olavo de Carvalho nos odeia”, para dar a impressão de que era eu, de algum modo misterioso, o autor das suas ações, a fonte misteriosa do ódio que despejavam sobre mim.

O caso, em si, não tem a mais mínima importância, mas, se isso não tivesse me acontecido, talvez eu não compreendesse tão claramente quanto compreendo hoje o mecanismo psicopatológico que inverte o sentido do cumprimento natalino e lhe atribui uma intenção odienta no ato mesmo de cobri-lo de ódio.

O mesmo mecanismo está em ação, é óbvio, quando alguém ateia fogo numa igreja, urina no altar, bolina uma criatura do seu mesmo sexo durante a missa ou enfia um crucifixo no ânus para provar, com lógica insuperável, que o cristianismo é uma “religião de ódio”.

Como o raciocínio histérico se disseminou na nossa sociedade ao ponto de servir de modus argumentandi exemplar e obrigatório em teses universitárias, debates parlamentares e opiniões eruditíssimas expressas em artigos de jornal, é previsível que em breve o sentido insultuoso da expressão “Feliz Natal” será consagrado em lei e essas duas palavras só poderão ser ditas em recinto fechado, entre pessoas que tenham previamente assinado um disclaimer isentando de qualquer responsabilidade penal o desalmado que ouse pronunciá-las.

Por enquanto isso é só uma tendência, uma possibilidade que talvez possa ser afastada. Mas certamente não o será se os cristãos, antecipando-se servilmente aos planos do opressor, consentirem em limitar-se ao genérico e vazio “Boas Festas” para não ferir suscetibilidades fingidas.

Portanto, aqui vão os meus votos: Feliz Natal para todos, aí incluídos os que não o desejam.

Natal 2009/Christmas 2009

Olavo de Carvalho

23 de dezembro de 2009

Musicalmente, alguns preferem Tristão e Isolda, mas, em matéria de força dramática e riqueza de significado, a ária final de Wotan em As Valquírias, “Leb Wohl” (“Adeus”), é sem dúvida o cume da obra de Richard Wagner. Que é que isso tem a ver com o Natal? Espere um pouco e deixe-me relembrar a cena.

Pressionado por sua esposa Fricka, que lhe cobra seus deveres de mantenedor da ordem cósmica, Wotan, o equivalente germânico de Zeus, promete, a contragosto, punir com a morte seu neto Siegmund, culpado de adultério e incesto com sua irmã Sieglinda. Para isso, ele envia sua filha mais querida, Brunilda, ao local onde o marido de Sieglinda vai duelar com Siegmund, para assegurar que Siegmund, privado de todo auxílio divino, seja morto no duelo. No momento decisivo, Brunilda deixa-se tomar de compaixão por Siegmund e, descumprindo a ordem recebida, tenta protegê-lo. Wotan tem de intervir pessoalmente, fazendo em pedaços a espada mágica de Siegmund e deixando que ele seja morto pelo marido de Sieglinda, Hunding. Tão logo termina o duelo, Wotan, desgostoso consigo próprio e cheio de desprezo pelo vencedor, mata Hunding com um simples sopro. Agora o rei dos deuses tem de punir a filha, para não permitir que um ato de traição perturbe a ordem do Valhalla, o céu dos deuses germânicos. Atormentado pelo conflito insolúvel entre o dever de governante e o amor paterno, Wotan queixa-se de que, entre todos os seres, o mais miserável e sofredor é ele próprio. No instante em que ele se prepara para matar Brunilda, ela apela à compaixão do pai, pedindo que a sentença de morte seja substituída pela de expulsão. Wotan abraça ternamente a filha e a faz adormecer numa montanha protegida por um círculo de fogo, prometendo que nenhum homem indigno tocará nela e que, ao despertar como criatura humana, desprovida de poderes divinos, ela terá por marido um nobre guerreiro que a protegerá de todos os males. Wotan despede-se da filha e, enquanto ela adormece, sai cabisbaixo, derrotado pelo seu próprio poder.

Esse episódio marca o instante em que a ordem do mundo mitológico entra em contradição consigo própria e descobre o seu limite. No mundo dos deuses não há lugar para a compaixão. Só no mundo humano Brunilda poderá desfrutar os benefícios do perdão que o pai tão ardentemente lhe deseja conceder. Nesse momento, a lei dos deuses admite que há uma justiça superior à do próprio Wotan-Zeus. A ordem cósmica só pode ser restaurada mediante o sacrifício de Wotan, mas ele próprio entende isso como um sofrimento absurdo, uma incongruência, uma irregularidade. Quando Brunilda despertar, ela estará num novo mundo, onde o auto-sacrifício do deus não será mais uma irregularidade, e sim o princípio mesmo da lei que rege o universo. O Deus invisível e sem nome que impera muito acima de Wotan oferece o seu próprio Filho em sacrifício, porque sabe que nenhum sacrifício humano pode restaurar a ordem: só o sangue do próprio Deus tem esse poder. O adeus de Wotan é o mundo antigo que se despede, baixando a cabeça ante uma ordem superior a que o próprio Wotan obedece, mas que ele não pode compreender.

É o advento desse mundo novo, a tomada de consciência universal dessa nova ordem, onde o perdão não é a exceção mas a regra, que se celebra no Natal. O gesto incomum de Wotan será aí a lei geral e eterna, que restaura a ordem do mundo não uma vez, mas a cada instante, de novo e de novo, injetando no mundo finito novas e novas possibilidades que vêm do amor infinito. Ao adeus de Wotan, baixado o pano sobre a cena mitológica, segue-se o nascimento de Cristo, o advento da Nova Aliança onde Brunilda será perdoada não uma vez, mas vezes infinitas. O perdão não é um ato raro e excepcional, que quase às escondidas ludibria a ordem cósmica em nome do amor paterno. Ele é a lei fundamental do universo, a base mesma de toda existência.

ftp://camerata.mine.nu/hines/Jerome%20Hines-Leb%20Wohl%201961%20Bayreuth.mp3

Musically, some prefer Tristan and Isolde, but in the matter of dramatic power and richness of meaning, Wotan’s final aria in The Valkyrie, “Leb Wohl” (Farewell), is doubtless the pinnacle of Richard Wagner’s work. What does that have to do with Christmas? Hold on a while, and let me recall the scene.

Pressured by his wife Fricka, who urges him to fulfill his duties as maintainer of the cosmic order, Wotan, the Germanic counterpart of Zeus, unwillingly promises to punish by death his grandson Siegmund—guilty of adultery and incest with his sister Sieglinde. To achieve this goal, Wotan sends his dearest daughter, Brünnhilde, to the place where Sieglinde’s husband will fight a duel with Siegmund, to ensure that Siegmund, deprived of all divine assistance, is killed in the duel. At the decisive moment, Brünnhilde allows herself to be overcome with compassion for Siegmund, and disobeying the order she received, attempts to protect him. Wotan has to intervene personally, breaking Siegmund’s magic sword into pieces and letting him be killed by Sieglinde’s husband, Hunding. As soon as the duel comes to an end, Wotan, displeased with himself and full of contempt for the winner, kills Hunding with a simple puff of breath. Now the king of the gods has to punish his daughter, in order not to permit that an act of treason disturbs the order of Valhalla, the heaven of the Germanic gods. Tormented by the insoluble conflict between the duties of rulership and paternal love, Wotan complains that he himself among all beings is the most suffering and miserable one. At the moment that he prepares to kill Brünnhilde, she appeals to her father’s compassion, requesting that her death sentence may be substituted for banishment. Wotan tenderly embraces his daughter and soothes her into sleep on a mountain peak protected by a ring of fire, promising that no unworthy man will ever touch her and that, when she awakes as a human creature, deprived of divine powers, she will have for a husband a noble warrior, who will protect her from all evil. Wotan bids his daughter farewell and, while she is falling asleep, departs downcast, defeated by his own power.

This episode marks the instant at which the order of the mythological world falls into contradiction with itself and discovers its limit. Compassion has no place in the world of gods. Only in the human world will Brünnhilde be allowed to enjoy the benefits of the forgiveness that her father so ardently wishes to grant her. At this moment, the law of the gods admits that there is a higher justice than that of Wotan-Zeus himself. The cosmic order can only be restored through Wotan’s sacrifice, but he himself understands this as absurd suffering, incongruity, irregularity. When Brünnhilde awakes, she will be in a new world, where the god’s self-sacrifice will no longer be an irregularity, but rather the very principle of the law governing the universe. The nameless and invisible God who reigns far above Wotan offers his own Son in sacrifice, because He knows that no human sacrifice can restore order: only the blood of God Himself has such power. Wotan’s farewell is the ancient world taking its leave, lowering his head before a higher order which Wotan himself obeys, but cannot comprehend.

It is the advent of this new world, the coming to the universal awareness of this new order, where forgiveness is not an exception but the rule, which is celebrated at Christmas. There, Wotan’s uncommon gesture will be the general and eternal law, which restores the order of the world not just once, but at every moment, over and over again, injecting ever new possibilities coming from the infinite love into the finite world. What follows Wotan’s farewell, after the curtain is drawn down upon the mythological scene, is the birth of Christ, the advent of the New Alliance where Brünnhilde will be forgiven not only once, but infinite times. Forgiveness is not a rare and exceptional act, which, in the name of paternal love, deceives the cosmic order almost in an underhanded way. Forgiveness is the fundamental law of the universe, the very basis of all existence.

(Translated by Alessandro Cota)

ftp://camerata.mine.nu/hines/Jerome%20Hines-Leb%20Wohl%201961%20Bayreuth.mp3

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