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Homens de bem

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 07 de março de 2007

“Não faz sentido, para os homens de bem, lavar um passado impregnado de lutas, sacrifícios e profundas cicatrizes, pois aqueles atores, de ambos os lados, já fazem parte da história e, por terem lutado de forma consciente e vislumbrando objetivos às vezes utópicos, cabe-lhes o respeito da sociedade brasileira.

Assim respondeu o brigadeiro Ferolla ao meu artigo publicado no Rio em 8 de fevereiro, onde eu exigia dele uma palavra em favor dos familiares de vítimas do terrorismo, que passam humilhações e necessidade enquanto os assassinos de seus pais nadam em dinheiro público (v. www.olavodecarvalho.org/semana/070208jb.html).

Não vou opinar sobre a resposta. Vou apenas esclarecer-lhe o significado, que o estilo empoado do autor mais encobre do que revela. Com esse artigo memorável, o brigadeiro tornou-se o primeiro militar brasileiro a informar a seus companheiros de farda que os terroristas dos anos 60-70 e os soldados brasileiros que eles mataram valem o mesmo. Vale o mesmo obedecer a ordens do comando das nossas Forças Armadas ou a ordens de Fidel Castro. Exatamente o mesmo. Mas não em dinheiro, é claro: se os descendentes dos soldados vivem na pobreza e os dos terroristas comem e bebem indenizações milionárias sugadas do contribuinte, deixar tudo como está e não protestar jamais contra essa diferença é obrigação dos homens de bem. A diferença é igualdade, a igualdade é diferença. Quem escreveu isso não foi George Orwell: foi o brigadeiro Ferolla. O doublespeak tornou-se a linguagem oficial dos “homens de bem” neste país. Não resta dúvida de que, nesse sentido – notem bem: nesse sentido muito peculiar –, o brigadeiro é um homem de bem. Há até quem diga que falar mal dele por isso é atentar contra a honra das Forças Armadas. Num sentido também muito peculiar da palavra “honra”, é claro. Aquele sentido no qual roubar bancos, seqüestrar inocentes e fazer atentados a bomba para matar soldados brasileiros são empreendimentos tão dignos de respeito quanto a defesa da pátria contra esses mesmos empreendimentos. Nada tenho a acrescentar, exceto o seguinte: Se isso é a honra das Forças Armadas, a desonra é mil vezes preferível.

Quanto aos demais membros do grupo dito “nacionalista”, convidados a me insultar de homem para homem em vez de fofocar pelas minhas costas, não me responderam até agora. Cá entre nós, nunca esperei mesmo que o fizessem. São todos “homens de bem”.

Idéias e grupos

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 19 de agosto de 1999

Uma discussão política nunca é exclusivamente teórica: ela não gira em torno de descrições da realidade, mas de alternativas de ação (mesmo se disfarçadas ou subentendidas sob descrições da realidade). Mas a mera escolha de uma alternativa de ação não é ainda uma opção política, porque a política não consiste no confronto entre hipóteses abstratas, e sim entre grupos humanos concretos. Numa discussão política não se discute só o que fazer, mas sobretudo quem vai fazer. A vitória política não é a conquista do apoio para uma proposta, mas para o grupo que a representa. Por isto, em política, todas as discussões teóricas ou práticas degeneram facilmente em simples meios para a conquista do poder. Quanto mais politizadas as discussões, menor é a probabilidade de que gerem alguma idéia que tenha valor intrínseco, e maior a de que produzam apenas uma retórica de pretextos.

A politização das discussões já chegou a tal ponto, no Brasil, que hoje em dia, para impugnar uma idéia, não é preciso argumentar contra ela: basta encontrar sua classificação no catálogo de dois itens que constitui a totalidade do repertório. Nos meios esquerdistas, a exclamação “É de direita!” neutralizará automaticamente qualquer teoria, argumento ou prova. Já entre os neoliberais, não há fórmula-padrão para exorcisar opiniões, mas alguns termos recorrentes, como “tridentino”, “nacional-desenvolvimentista” ou “estatizante”, pronunciados no adequado tom de desprezo, bastam para encobrir de uma aura de suspeita as mais inocentes idéias.

O resultado dessa simplificação geral da conversa é que as duas teses em disputa não estão mais em disputa, de vez que os argumentos de parte a parte já estão previamente conhecidos e neutralizados pela mútua ojeriza. Pior ainda, nenhuma idéia nova pode entrar no palco, pois será imediatamente aceita ou rejeitada pelo que tenha em comum com as duas anteriores, não conseguindo tornar visível a sua diferença específica, isto se não for logo excluída por ambos os partidos como velharia ou esquisitice indigna de exame. Nessas condições, nenhuma das duas opiniões padronizadas pode ser fecundada ou enriquecida nem pelo contato íntimo com a adversária nem pela interferência de qualquer outra.

Logo, não há mais embate de opiniões: só embate de grupos. E qualquer idéia sobre o que quer que seja – sobre arte, religião, sexo ou culinária – nada mais precisa ou pode alegar em favor de si mesma senão sua perfeita identidade com as convicções do grupo cuja simpatia pretenda angariar, reduzindo-se portanto a circulação de opiniões a um festival de juramentos de fidelidade alternados com expressões de repúdio.

Nesse panorama, é natural que cada um dos blocos ideológicos se encare como um verdadeiro bloco, no sentido físico do termo, isto é, um todo compacto, homogêneo e sem contradições internas. Quando os examinamos de fora, essa impressão se desfaz e ambos se revelam compostos do aglomerado fortuito de elementos sem muita conexão lógica. Mas quem quer que perceba isso está condenado a permanecer de fora, seu ingresso no debate estando impossibilitado pelas condições acima descritas.

Sendo assim, é na condição de puro espectador inerme que faço a seguinte observação: no Brasil, quem é liberal em economia é internacionalista em política externa e quem é nacionalista em política externa é estatizante em economia. Tão fechados em si mesmos estão os dois grupos, que ninguém, dentro de um ou do outro, percebe que não há qualquer conexão lógica entre liberalismo e globalismo, tal como não há entre nacionalismo e estatismo.

Que não há nada de ilógico ou de impossível na combinação de economia liberal com política externa nacionalista, é algo que não é preciso sequer provar no campo da argumentação teórica, pois 200 anos de história norte-americana mostram que essa combinação não apenas existe como possibilidade, mas se realizou como fato. E embora este seja o fato mais gritante da história econômica nos últimos séculos, na mente dos brasileiros a referida combinação não existe nem mesmo como possibilidade teórica e está excluída de todo debate como se fosse uma absurdidade intrínseca ou uma utopia boboca indigna da atenção dos intelectuais sérios.

A única conclusão que posso tirar disso é que esses intelectuais não são tão sérios. E que por isto mesmo preferem, ao embate das idéias, o choque dos grupos.

Patifarias

Olavo de Carvalho


Jornal da Tarde, 5 de agosto de 1999

Amigos perguntam-me se não vou escrever nada sobre a cortina de silêncio que a crítica, fielmente esquerdista, baixou sobre o meu trabalho de editor dos Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux. O caso é estranho: vários jornais deram amplo espaço à divulgação do livro, chegando a celebrá-lo como um acontecimento histórico, mas esquivando-se de mencionar sua Introdução – o primeiro estudo amplo que já se fez sobre o autor – e os milhares de notas de rodapé com que procurei tornar essa edição um instrumento útil de ensino e pesquisa. Num país onde qualquer antologista de ocasião é alvo de badalações midiáticas e virtual candidato à Academia, esse silêncio é significativo e talvez merecesse comentário. Principalmente porque entre os críticos havia pelo menos dois desses organizadores de seletas. Tentando justificar-se ante um leitor que lhe cobrava a explicação do inexplicável, um deles chegou a alegar que tivera mais trabalho para montar em verbetes uma antologiazinha do que eu para reunir, cotejar, corrigir, interpretar e anotar as 3 mil páginas de Carpeaux (considerando-se que “montar verbetes” significa colocá-los em ordem alfabética, compreende-se a dificuldade desse crítico). Tudo isso torna o episódio bastante interessante.

Mas não, não vou escrever mais nada sobre o caso, porque, importante para mim, considerado na escala nacional, ele se dilui na volumosa onda ascensional do descaramento esquerdista. Que importa a omissão do meu nome numas resenhas, se fatos infinitamente mais importantes estão sendo sonegados diariamente ao leitor brasileiro pela censura branca – em transição para a vermelha – que se instalou em todas as redações do País? Que importa uma mentirinha a mais, se, por exemplo, o apoio financeiro das elites norte-americanas à esquerda revolucionária do Brasil continua um segredo só violado, entre sussurros, em círculos quase esotéricos de estudiosos de geopolítica? Que importa o povo ignorar meus pobres feitos editoriais, se ele também não precisa saber quem paga os anúncios milionários com que um partidinho comunista eleitoralmente nulo ocupa fatias crescentes do horário nobre das mais caras tevês brasileiras? Que importa omitir uma informação literária, se todos os jornalistas se proíbem até mesmo de perguntar por que o nosso presidente decidiu financiar com dinheiro público uma organização que ele mesmo diz não ter outra finalidade senão a derrubada do Estado? Que importa noticiar mal a edição de um livro, se nada é preciso informar ao povo sobre regimes do nosso território – do tamanho de um Estado da Federação – onde é proibida a entrada de brasileiros e onde uma aliança de índios e estrangeiros, sob a proteção da mídia esquerdista, faz o que bem quer com tesouros minerais que bastariam para saciar a fome do mundo?

O povo não precisa saber nada de mim, porque simplesmente não precisa saber nada de nada. Ele não está aí para ser informado, mas para ser feito de idiota. Somente um povo idiotizado, ludibriado, anestesiado pode se submeter à “revolução passiva” de Antonio Gramsci, que consiste precisamente na divisão de trabalho onde uma elite descarada entra com a revolução e a nação entra com a passividade bovina de quem não sabe nem quer saber. Somente um povo idiotizado pode passar por uma revolução comunista sem percebê-la. Somente um povo idiotizado pode imaginar que esta sendo governado por um sonso, quando está sendo levado ao comunismo pela aliança espertíssima de um presidente fingidamente liberal com uma oposição fingidamente nacionalista.

Por isso, não vou dizer mais nada sobre o caso Carpeaux. Há tantas coisas que é preciso dizer e ninguém diz, que me dá vergonha de gastar este precioso espaço do JT com a descrição da mais miúda patifaria das últimas semanas.

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