Olavo de Carvalho
Diário do Comércio (editorial) , 28 de março de 2007
As reações negativas aos meus recentes artigos sobre o liberalismo seguem o mesmo padrão de automatismo mental que neles mencionei. Como o debate político brasileiro não vai além dos temas econômicos e, nestes, como que em obediência à lei da gravidade, volta sempre à contraposição usual de Estado e mercado, o que quer que se diga contra o liberalismo é sempre interpretado como uma apologia ao menos implícita do intervencionismo estatal.
Nesses termos foram respondidos os meus artigos, o que é o mesmo que dizer: não foram respondidos.
Minha objeção central ao liberalismo é sua falta de princípios, seu apego exclusivo a preceitos formais – liberdade e propriedade – que ele toma ingenuamente como se fossem princípios. Preceitos formais são sentenças vazias cujo conteúdo é determinado a posteriori pela sua regulamentação prática. A liberdade de cada um nada significa sem a enumeração clara dos limites impostos à liberdade dos outros. A propriedade, por sua vez, é algo de tão vago e indefinido que não se sabe nem mesmo se um feto em gestação é propriedade de sua mãe ou um cidadão proprietário do seu corpo.
Princípios têm de ser claros e auto-explicativos. Eles têm de determinar por mera dedução lógica a sua própria regulamentação prática em vez de ser determinados por ela. “Não matarás” já contém no significado mesmo da palavra “matar” a distinção entre homicídio doloso, homicídio culposo, guerra e legítima defesa. Estas definições são obtidas por mera análise lógica do conceito principal.
Uma filosofia política constituída de preceitos formais é baseada na ilusão positivista de poder orientar a sociedade tão somente com base em conveniências de ordem funcional prática, fugindo ao confronto com as questões mais gerais e substantivas (“metafísicas”, no linguajar positivista) sobre a natureza humana, o lugar do homem no cosmos, o sentido da vida etc.
O ideal liberal é fazer da sociedade uma máquina neutra que cada consumidor use segundo suas preferências e valores autodeterminados. Isso é impossível. Com exceção dos gênios e profetas inspirados, os indivíduos não inventam seus valores nem os recebem do céu: fazem suas escolhas num leque de opções oferecido pela sociedade. À filosofia política incumbe não só montar a máquina, mas discutir e selecionar os valores a ser oferecidos e negados. Esses valores têm de ser baseados em princípios substantivos, e não em formas vazias, a mera estrutura da máquina. De que serve uma máquina de sanduíches sem nenhum sanduíche dentro? Se o fabricante da máquina se recusa a decidir o que ela vai vender, a única coisa que lhe sobra para pôr à venda é a máquina mesma. A pura defesa da economia de mercado, separada de valores substantivos, faz com que o único valor restante seja o próprio mercado. Mas o mercado é um conjunto de formas vazias. Ele está aberto a todos os valores: bons e maus. Não pode criá-los nem determiná-los. Também não cabe ao Estado fazer isso. O Estado-guru é o ideal fascista e comunista, uma ilusão macabra. Criar e selecionar valores é a função da cultura, da qual faz parte a filosofia política. A cultura, se não tem iniciativa própria, independente do mercado e do Estado, não é cultura de maneira alguma: é apenas propaganda. Fazer abstração dos princípios e valores, deixando-os por conta do mercado, é o mesmo que entregá-los à mercê do Estado, que não tem a menor dificuldade de tornar-se, quando quer, o maior comprador e vendedor de tudo. O liberalismo é uma filosofia política suicida, que alimenta o monstro do intervencionismo pelos mesmos meios com que acredita liquidá-lo. Só uma cultura poderosa pode limitar o Estado, mas para isso ela tem de determinar o leque de escolhas no mercado em vez de ser determinada por ela.
Quando o liberal desiste da utopia da máquina neutra e começa a pensar em valores e princípios, ele pode continuar a chamar-se liberal, se quiser. Mas já é, em substância, um conservador.