Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 28 de setembro de 2014
No meio científico americano, e excluídas as opiniões dos apologistas professos desta ou daquela religião, o debate sobre a questão religiosa divide-se, grosso modo, entre os que juram, como Daniel Dennet e Sam Harris, ser a religião uma etapa superada na evolução biológica da espécie humana e os que afirmam que a crença religiosa, ou ao menos uma vaga aspiração metafísica, é uma necessidade permanente, imutável e indestrutível dos seres humanos. Estes últimos chegam a acreditar que não existem ateus de verdade, que o ateísmo é só da boca para fora (ver mais aqui).
Os argumentos a favor de cada uma dessas correntes são eruditíssimos e ambas fazem questão de apoiar-se nas mais atualizadas pesquisas científicas. É uma pena que tanto esforço intelectual se desperdice numa discussão que parece ser calculada para não levar a parte alguma.
Desde logo, os dois lados dão por pressuposto que a religião nasce de uma “necessidade de crer”, esquecendo que a “fé” (mesmo aceitando-se a premissa falsa de que ela se reduza à mera crença) é um elemento distintivo e típico do cristianismo, ausente ou rarefeito em quase todas as demais religiões mundiais e numa infinidade de tradições religiosas menores.
Para um chinês do século 5 a.C. ou para os índios tupinambás do tempo de Pedro Álvares Cabral, a religião oficial era a própria ordem social e até a ordem do universo material. Como tal não constituía matéria de crença, mas de obediência, rotina e senso prático. Perguntar se acreditavam nela seria como perguntar se acreditavam na existência de chuva.
A opção de crer ou não crer só aparece em fases muito mais diferenciadas da evolução cultural (como por exemplo na Atenas de Sócrates), quando as instituições políticas se destacam progressivamente das religiosas e abrem espaço para julgá-las e ser julgadas por elas. Esse momento coincide, segundo o clássico de Bruno Snell (The Discovery of the Mind, reed. Dover, 2011), com a descoberta do eu consciente.
Em segundo lugar, é impossível julgar uma necessidade psíquica sem ter decidido antes se o objeto dela existe ou não. Se existe um Deus, a necessidade de conhecê-Lo e de caminhar em direção a Ele é uma coisa; outra totalmente diversa é o impulso de inventá-Lo caso ele não exista. Transferir, portanto, o debate desde o problema da existência de Deus para o da necessidade de crer n’Ele pode parecer um modo inteligente de esquivar-se de controvérsias teológicas, reduzindo a questão às dimensões do que pode ser abordado com os recursos da ciência atual, mas é óbvio que toda discussão na qual o método determine kantianamente o objeto em vez de amoldar-se a ele não pode levar jamais a nenhuma conclusão válida sobre o objeto enquanto tal.
Em terceiro, o mais mínimo estudo das religiões comparadas mostra que elas são incomparáveis, que simplesmente elas não são espécies do mesmo gênero. Que pode haver de comum entre uma religião que promete integrar o homem no mundo físico e dar-lhe o domínio das forças naturais e outra que lhe pede que dê as costas a este universo, que aceite mesmo a miséria, a derrota e o fracasso nesta existência para obter a vida eterna num outro mundo totalmente inimaginável?
Se você lê o Corão, verifica que ali está um código civil inteiro, regulando todas as relações sociais, a propriedade, o comércio, o direito de família etc. Qualquer código diferente é um crime e deve ser abolido à força, por ordem de Deus. Ao cristão, ao contrário, o Evangelho recomenda que obedeça a qualquer código vigente, com total indiferença. Como supor que remédios tão heterogêneos atendam a uma mesma “necessidade”?
Em suma, o debate inteiro parte da premissa de que todas as religiões são “sistemas de crenças” – entendendo crença no sentido kantiano daquilo que se pode pensar, mas não saber.
O conteúdo das crenças sendo portanto indiscutível cientificamente, só resta estudá-las em si mesmas, fazendo abstração do seu objeto e dando por pressuposto que as religiões são fenômenos do imaginário coletivo, alheios à esfera da “veracidade”, que é própria da ciência.
Acontece que, dentre as religiões, pelo menos uma, o cristianismo, não proclama a crença em ideais etéreos e incognoscíveis, mas em determinados fatos da ordem histórica e natural, perfeitamente acessíveis ao estudo científico. O historiador pode averiguar se as profecias de Fátima se cumpriram ou não no prazo indicado e o médico pode atestar se as curas miraculosas efetuadas por meio do Padre Pio se realizaram ou não.
Ambos podem examinar pessoalmente as centenas de corpos intactos de santos católicos mortos há cinco ou dez séculos e investigar se fenômenos similares se observam ou não (já digo que a resposta é “não”) em outras religiões. O cristianismo é por excelência a religião do milagre, e um milagre que não se realize no domínio dos fatos, neste mundo visível, não é milagre de maneira alguma.
Reduzir todas as religiões a sistemas de crenças sobre o incognoscível é fazer abstração da diferença essencial entre o cristianismo e as demais religiões, ou seja: mutilar gravemente o objeto de estudo para encaixá-lo numa definição preconcebida. O debate inteiro, portanto, na mesma medida em que se pavoneia de científico, falha a uma das condições mais elementares do método científico e deve ser considerado uma gigantesca desconversa.