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Profetas do capitalismo global

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de abril de 2007

O crescimento assustador do movimento esquerdista no mundo desde a queda da URSS deveria alertar os liberais e conservadores para que largassem de triunfalismo bocó e começassem a examinar seriamente a fragilidade das suas próprias certezas. A mais vulnerável delas é a de que a superioridade econômica intrínseca do capitalismo acabará fatalmente por prevalecer no fim das contas, trazendo ao mundo, na esteira da liberdade de mercado, o sonho dourado da democracia mundial.

Primeiro: não é previsível que a racionalidade econômica consiga domar tão facilmente as tremendas forças irracionais desencadeadas há séculos pelo advento das ideologias revolucionárias trazidas aliás no bojo do próprio sucesso capitalista. Até hoje ela não fez isso senão em áreas minúsculas da superfície terrestre, e mesmo assim de maneira vacilante e precária. A capacidade humana para a otimização racional da economia em bases capitalistas não é dom inato nem causa sui : é o produto de milênios de civilização e o resultado de um equilíbrio espiritual muito raro, difícil de obter e fácil de perder. Um pouco de conhecimento das raízes culturais daquilo que defendem não faria mal algum aos teóricos da “salvação pela economia de mercado”. Sugiro começar por “The Victory of Reason: How Christianity Led to Freedom, Capitalism, and Western Success”, de Rodney Stark (New York, Random House, 2005) e “The God That Did Not Fail: How Religion Built and Sustains The West”, de Robert Royal (New York, Encounter Books, 2006 – o título é um pendant de “The God That Failed”, a hoje clássica antologia de desiludidos do comunismo, entre os quais Arthur Koestler e Ignazio Silone).

O capitalismo não brotou de nenhum plano genial, não nasceu numa prancheta de engenheiro social: foi-se formando aos poucos, do arranjo progressivo de uma multidão quase inabarcável de fatores sociais, culturais, políticos e religiosos. Não podemos confundir a sua realidade histórica complexa e viva com a sua posterior redução mental a um conceito simplificado, a uma “essência” transportável. No artigo anterior vimos que Marx caiu nessa. Mas os amigos do capitalismo também não escapam da tentação. Sua concepção da essência capitalista é quase farmacológica. Falam em “injeções de capitalismo” com a segurança e a empáfia de salvadores do mundo. Duas décadas atrás, prometiam dissolver a ditadura chinesa na poção mágica do livre mercado. Riam dos escrúpulos do investidor que relutasse em fomentar com seu dinheiro a prosperidade de um regime carniceiro. Os fatos mostraram quem tinha razão. O que se vê na China de hoje é uma riqueza deslumbrante em cinco cidades, a miséria indescritível em todo o resto do país e, imperando sobre o conjunto, o Partido cada vez mais poderoso e inabalável, usando os lucros do livre mercado para acumular bombas atômicas na esperança de jogá-las… onde? No Paraguai? Em Catolé do Rocha?

Os homens que criaram o capitalismo eram religiosos protestantes, imbuídos da noção de que o comércio era o campo preferencial para a prática coletiva das virtudes cristãs. Os homens que o teorizam hoje em dia são tecnocratas materialistas e economicistas, que não entendem um “a” da complexa estrutura espiritual da civilização e apostam cegamente em fórmulas mágicas que lhes parecem muito científicas. Foram eles que celebraram a queda da URSS como o advento do paraíso global democrático-capitalista. O que a década seguinte lhes trouxe foi o crescimento avassalador da rebelião esquerdista e a ocupação cultural da Europa pelos invasores islâmicos. Procure algum guru empresarial que tenha previsto esse desenvolvimento. Não encontrará nenhum. No entanto, os estudiosos de religiões comparadas já o previam desde a década de 30. Eles não são idiotas o bastante para acreditar que a economia determina o curso da história. Não são meros marxistas com sinal trocado como aqueles a quem o empresariado paga rios de dinheiro para que o intoxiquem de ilusões.

Segundo: A crença de que é possível construir uma sociedade espiritualmente neutra baseada na pura racionalidade econômica e na mecânica dos “interesses” é ela mesma uma ideologia revolucionária, que como tal só serve para solapar as últimas barreiras opostas pela civilização judaico-cristã ao avanço aparentemente irrefreável do totalitarismo no mundo.

Essa ideologia, que hoje muitos entendem como a encarnação mais pura do capitalismo, surgiu três séculos depois da prática capitalista e jamais foi adotada na Inglaterra ou nos EUA. Ela é a herdeira direta dos Lockes, Mandevilles e Benthams – a ala materialista e utilitarista do iluminismo inglês, a que me referi em artigo anterior – e o único país que acreditou nela foi a França. Leiam “Le Mal Français”, de Alain Peyrefitte (Paris, Plon, 1976), e verão no que deu: um capitalismo capenga, hiper-regulamentado, que reduziu ao estado de potência de segunda classe aquela que dois séculos e meio atrás era a nação mais rica e poderosa do universo.

Terceiro: A experiência mostra que um núcleo de racionalidade econômica não apenas pode coexistir com a irracionalidade revolucionária em tudo o mais, mas ainda contribui decisivamente para expandi-la, uma vez que, no deserto de valores criado pela própria ilusão economicista, a prosperidade crescente multiplica ad infinitum o “proletariado intelectual” das universidades, a multidão de ativistas e ongueiros, a burocracia virtual, classe revolucionária por excelência.

Quarto: Quando os capitalistas decidem criar canais de ação por onde escoar a energia sobrante da burocracia virtual, mas já estão eles mesmos espiritualmente secos e esturricados pela sua própria ideologia economicista, o melhor que conseguem fazer é subsidiar e tentar controlar de longe movimentos de massa que se tornam tanto mais odientamente anticapitalistas quanto mais tentam esquecer, em vão, a farsa dinheirista em que se sustentam.

Quinto: Mediante um esforço gigantesco de engenharia social, os interesses dos movimentos revolucionários de massa podem ser levados a convergir com o das grandes corporações capitalistas, mas que outra forma pode assumir esse arranjo matrimonial senão a do “mundo planejado”, a utopia global de Herbert George Wells, o triunfo final do socialismo fabiano, burocratização do universo e ante-sala do comunismo mundial?

Marx tinha alguma razão ao dizer que o capitalismo traz em si as sementes da sua própria destruição, mas essas sementes não estão na miséria crescente, na diminuição do consumo e na expansão ilimitada do proletariado. Simetricamente ao contrário, estão na prosperidade crescente que multiplica ilimitadamente a classe dos intelectuais ociosos, na expansão avassaladora da “indústria cultural” que os lisonjeia e aquece suas ambições e, por fim, na cooptação dos próprios capitalistas como financiadores da revolução mundial, embriagados pela falsa onipotência da economia de mercado desligada dos fatores culturais e religiosos que a geraram. Um bom ecoomista com algum gênio filosófico – isto é, um sujeito que fosse as duas coisas que Marx imaginava ser — teria podido prever esse desenvolvimento já no tempo dele. Infelizmente, o advento do próprio marxismo desviou o eixo da discussão para as virtudes respectivas, reais ou supostas, da economia socialista e capitalista. Mesmo depois que Ludwig von Mises demonstrou a absoluta inviabilidade da primeira, o debate continuou equacionado como um confronto entre dois sistemas econômicos. Erro mais alienante não poderia haver. O socialismo não é sistema econômico nenhum, é apenas uma casca ideológica construída em cima de uma economia que, informalmente, continua capitalista. Capitalista em sentido duplo: pela dose cavalar de capitalismo clandestino que o governo socialista não pode erradicar de maneira alguma e pela dependência crônica da ajuda proveniente dos países capitalistas (sobre esses dois aspectos, leiam, respectivamente, “Russia’s Economy of Favours: Blat, Networking and Informal Exchange”, de Alena V. Ledeneva, Cambridge University Press, 1998, e o já aqui citado “The Best Enemy Money Can Buy”, de Antony C. Sutton, Billings, Montana, Liberty House Press, 1986). Pelo lado econômico, o socialismo nunca foi nem será páreo para o capitalismo: o perigo que ele oferece é cultural e político: cultural, pela energia inesgotável que suga do próprio capitalismo através do crescente “proletariado intelectual”, como já expliquei acima; e político, pelos regimes teratológicos que vai criando aqui e ali, sempre com o apoio dessa massa ambiciosa e barulhenta.

Enquanto os capitalistas nada tiverem a opor ao projeto socialista senão a funcionalidade econômica e a concepção mecanicista de uma democracia baseada no modelo do mercado, eles estarão trabalhando para o socialismo. Se economicamente o socialismo é um fracasso, isso não diminui em nada a sua capacidade destrutiva, aumentada ainda pela tentação capitalista de concorrer com ele nos seus próprios termos, isto é, de fazer a revolução cultural antes que o socialismo a faça.

Mesmo supondo-se que a previsão do sucesso global da economia de mercado se revelasse acertada no fim das contas, ainda restariam duas perguntas fatais:

(1) Quando é “o fim das contas”?

(2) Quanto vai custar a espera? Quais os danos que o socialismo, não por seu sucesso, mas pelo seu fracasso estrondoso e sangrento, vai trazer à humanidade até o dia em que todos os cérebros reconheçam que, afinal, o capitalismo não era tão ruim quanto o imaginavam?

Os capitalistas que, desde o começo do século XX, subsidiaram generosamente o socialismo soviético na esperança de lucrar seja com o seu sucesso, seja com o seu fracasso, não erraram no seu cálculo econômico. Aqueles que hoje alimentam com seus investimentos a economia chinesa também não perdem dinheiro com isso. Apenas, fomentam por esse meio o genocídio sem fim e a revolução mundial que não criará uma economia socialista viável, mas transformará o capitalismo num inferno burocrático-policial fabiano.

O problema não é saber quem vai vencer no campo econômico. A hipótese socialista não existe. O problema é saber quanto vai custar a vitória do capitalismo. O preço ameaça ser mais alto do que a espécie humana pode pagar, se os capitalistas continuarem se recusando ao combate e prolongarem artificialmente a vida de um adversário que já nasceu moribundo. Um ataque decisivo e multilateral às ambições socialistas pouparia à humanidade sofrimentos inúteis e desnecessários como aqueles que foram impostos à Rússia e à China pela mistura de omissão e de falsa esperteza dos capitalistas ocidentais.

Na escala nacional, o momento de uma reação decisiva até já passou, e os que teriam a obrigação de liderá-la nem mesmo o perceberam. Se querem um indício do presente estado de coisas, leiam esta mensagem postada numa lista de discussões por um remetente que, por motivos de segurança, a assina com pseudônimo:

“Até agora, os usineiros e senhores das plantações de cana de açucar fingiram-se de mortos, enquanto o MST barbarizava com as propriedades de pecuaristas ou de plantadores de roça. Agora está chegando a hora deles. Este link ( http://www.folhadaregiao.com.br/link.php?codigo=65876 ) mostra um país sem lei, sem ordem e brevemente sem progresso… Se vocês vissem o que está acontecendo aqui na minha região, ficariam muito, mas muito preocupados. Não há missa que não tenha coleta de alimentos para os ‘irmãos camponeses’… Não há missa em que não se peçam ofertas para pagar gasolina e oleo diesel para as caravanas em apoio à reforma agraria… Só que estão atacando fazendas produtivas, com anos de exploração produtiva, matando gado, destruindo plantações, numa corrida de vandalismo que dá para ficar perplexo. Excetuando os jornais de interior, como o do link , você quase não vê ou assiste nada na TV. Portanto , os que moram em cidades grandes não estão sabendo do que ocorre por aqui. Estamos já vivendo uma chavização do campo e parece que ninguém ainda percebeu…”

Falando de mim

Um breve exame das páginas do Orkut dedicadas à nobre e aparentemente dificultosa tarefa de dar cabo da minha reputação é sempre, para mim, uma surpresa renovada. Existem, é verdade, páginas a meu favor, e até superam em número as de esculhambação. Mas estas ganham longe na quantidade de mensagens diárias. A atenção permanente e incansável que aí recebo de inimigos a quem em geral nunca vi e dos quais nada sei – muitos deles ocultos sob pseudônimos exóticos – ultrapassa tudo quanto uma vaidade mesmo demencial poderia exigir. Eles parecem não pensar em outra coisa, noite e dia, senão na minha pessoa que ao mesmo tempo declaram nula, desprezível e sem importância. Não deixam passar nada do que eu diga, mesmo de relance e ao acaso. Jurando indiferença e superioridade olímpicas, enfurecem-se com cada palavra minha, procuram por trás dela os motivos mais torpes e sinistros; vasculham a minha vida e a da minha família e, quando nada aí encontram que lhes pareça útil aos seus propósitos, põem-se a conjeturar as hipóteses mais mórbidas e grotescas para explicar como posso ser tão ruim ao ponto de existir e cínico ao ponto de continuar existindo depois de todos os seus esforços para eliminar esse flagelo. E escrevem, escrevem, escrevem. Escrevem sem parar, anotando cada suspeita fugaz, cada pensamento mau que a meu respeito lhes passe pela cabeça, como se fosse um tesouro digno de ser conservado para as próximas gerações. Não há defeito ou vício que já não me tenham atribuído, de mistura com um crime ou outro, sempre no intuito, dizem eles, de combater as minhas idéias e não a minha pessoa. E nenhum deles, em momento algum, dá jamais sinal de perceber em toda essa atividade verbal diuturna, febril e incansável, nada de anormal, nada de esquisito, nada de doentio. Ao contrário: continuam falando como se fossem o padrão mesmo da normalidade humana, aplicado ao diagnóstico de um monstro disforme e intolerável.

Da minha parte, não posso me impedir de achar no mínimo surpreendente que tantas pessoas se reunam para escrever milhares e milhares de páginas contra alguém que nem as conhece, e depois ainda assegurem fazê-lo porque ele as odeia, e não elas a ele. Também não vejo como achar normal e indigno de espanto o fato de que, desses milhares de atacantes, cada um, ao despejar na rede mais uns litros diários de sua substância mental fervente, se julgue merecedor de uma resposta pessoal detalhada, cortês e polida –, e, não a obtendo, se creia no direito de cantar vitória, proclamando que o alvo dos seus ataques fugiu ao debate. Como se esse alvo tivesse o dever estrito, o máximo interesse e sobra de tempo livre para explicar-se diariamente a um tribunal de fofoqueiros desconhecidos.

Um deles, após assegurar que nada tem contra mim e sim apenas contra as minhas opiniões, declara que espalhei filhos por aí e os deixei ao desamparo. E em seguida se queixa de que não quero debater com ele. Como se coubesse ao difamado defender-se ante o difamador e não a este defender-se ante a justiça.

Se fosse preciso alguma prova da loucura coletiva que se apossou das classes falantes no Brasil de uns anos para cá, só essa já seria mais que suficiente.

No extremo Ocidente do mundo

Quando li num artigo do Demetrio Magnoli que Alain Rouquié apelidou a América Latina de “Extremo Ocidente”, imediatamente me veio à lembrança um parágrafo escrito no século XI pelo filósofo persa Abu Ali al-Hussayn ibn Abd-Allah ibn Sina , ou, com nome latinizado, Avicena ( 980 1037 ). Tenho uma dívida enorme para com esse génio assombroso, que entendeu a lógica de Aristóteles melhor do que ninguém e me pôs na pista da “teoria dos quatro discursos” exposta em Aristóteles em Nova Perspectiva (Topbooks, 1998). Mas não é por isso que o menciono aqui: é porque o filósofo foi também profeta. Este trecho foi extraído da “Narrativa de Hay Ibn Yaqzan”, uma lenda mística que Henry Corbin traduz na íntegra em “Avicenne et le Récit Visionnaire”, publicado por Adrien Maisonneuve em 1954 (edição americana, “Avicenna and the Visionary Recital”, transl. Willard Trask, Dallas, TX, Spring, 1980):

“Na extrema ponta do Ocidente há um vasto oceano, que no Livro de Deus é chamado o Oceano Quente e Lamacento. As correntes que nele deságuam vêm de um país inabitado cuja vastidão ninguém pode circunscrever. Ninguém mora nesse país, exceto estrangeiros que ali desemcarbam inesperadamente. Perpétuas trevas reinam nesse lugar. Aqueles que para lá emigram recebem somente um raio de luz a cada vez que o sol se põe. O solo é um deserto de sal. A cada vez que um povo lá se instala e tenta cultivá-lo, ele o rejeita, o expulsa, e então vêm outro povo ocupar o seu lugar. Alguém começa uma plantação lá? Ela é desperdiçada. Ergue-se uma casa? Vem abaixo. Entre aqueles povos há disputas constantes, ou melhor, batalha mortal. Qualquer grupo que seja mais forte toma as propriedades e os bens dos outros e os força a emigrar. Então ele tenta se estabelecer na região, mas por sua vez colhe somente prejuízo e dano. É assim que eles se comportam. Eles nunca vão parar com isso… É um lugar de devastação, repleto de guerras, disputas, tumultos. Lá a alegria e a beleza só existem quando emprestadas de algum lugar distante.”

O inimigo é um só

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio, 8 de janeiro de 2007

O marxismo não começou com Marx e não nasceu de nenhum estudo científico da economia. Tudo o que Karl Marx viria a pensar e dizer – com exceção do pretexto materialista-dialético e das estatísticas que ele falsificou dos célebres Blue Books do parlamento britânico – já estava nas doutrinas dos heresiarcas messiânicos desde o século XIV. Tudo: a luta de classes, a revolução, a socialização dos meios de produção, a ditadura do proletariado, a missão da vanguarda revolucionária. Até as idéias de Lênin e de Gramsci já estão ali claramente antecipadas.

John Knox, John Huss, Thomas Münzer e outros “profetas” das origens da modernidade não são apenas precursores do movimento revolucionário mundial: são seus criadores. As homenagens entre ambíguas e reticentes que lhes são prestadas de tempos em tempos por tal ou qual intelectual esquerdista só servem para inflar as contribuições da esquerda mais recente, diminuindo a daqueles pais fundadores mediante o artifício de jogá-los para trás numa série histórica supostamente ascendente em cujo topo se encontra sempre, é claro, o autor da homenagem.

A idéia central da revolução messiânica pode-se resumir em quatro pontos: (I) a humanidade pecadora não será salva por Nosso Senhor Jesus Cristo, mas por ela mesma; (II) o método para alcançar a redenção consiste em matar ou pelo menos subjugar todos os maus, isto é, os ricos; (III) os pobres são inocentes e puros, mas não entendem seu lugar no projeto da salvação e por isso têm de colocar-se sob as ordens de uma elite dirigente, os “santos”; (IV) o morticínio redentor gerará não somente a melhor distribuição das riquezas, mas a eliminação do mal e do pecado, o advento de uma nova humanidade.

Uma heresia não é “outra religião”: é, por definição, uma oposição interna, nascida de dentro do próprio cristianismo, em geral mediante algum enxerto exótico que distorce completamente a mensagem originária e lhe dá os sentidos mais estapafúrdios que se pode imaginar. (1) Não é de estranhar, pois, que a evolução subseqüente do movimento revolucionário fosse marcada por uma permanente tensão entre a fé herética e a negação de toda fé, entre o pseudocristianismo e o anticristianismo, entre a ambição de destruir o cristianismo e o desejo de conservar algo dele para poder parasitar a sua autoridade. Esse jogo dialético confunde o observador leigo, que iludido pelas diferenças aparentes perde de vista a unidade profunda do movimento revolucionário e acaba não raro servindo a uma das suas subcorrentes acreditando piamente servir a um propósito contra-revolucionário, conservador ou até mesmo cristão ou judaico no sentido estrito dos termos.

Extinta a epidemia das revoluções messiânicas, a segunda onda do movimento revolucionário assume a forma do anticristianismo e antijudaísmo explícitos. Os iluministas do século XVIII não só pregaram abertamente a eliminação dessas duas fés tradicionais, mas não hesitaram em inventar contra elas as mentiras mais aberrantes, achando isso lindo e divertindo-se a valer. As polêmicas anticristãs de hoje em dia parecem até primores de polidez quando comparadas à virulência da invencionice setecentista (2). Cada vez mais parece confirmar-se a tese do abade Antonin Barruel, exposta na sua Histoire du Jacobinisme (1798) , de um plano urdido entre Voltaire, d”Alembert, Diderot e o imperador Frederico II da Prússia para uma vasta campanha de difamação destinada a cobrir a Igreja de infâmia por todos os meios inescrupulosos disponíveis.

O caso de Diderot é particularmente ilustrativo. Em A Religiosa ele conta a história de uma pobre moça mantida num convento contra a vontade. A imagem abominável das freirinhas prisioneiras, posta em circulação por ele e por outros iluministas muito antes da publicação póstuma do livro em 1796, tornou-se um símbolo condensado de todos os crimes que o furor da propaganda anticristã atribuía à Igreja. Na voragem da Revolução de 1789, o símbolo transfigurou-se em crença literal. Muitos dos revolucionários que invadiam conventos, matando monges e freiras a granel, juravam piamente estar fazendo isso para libertar as virgens encarceradas que, segundo imaginavam, deviam superlotar os porões dos claustros. Quando oitenta abadias, monastérios e casas de religiosas de Paris já tinham sido invadidos e muito sangue derramado, a Assembléia Constituinte, perplexa, recebeu a notícia de que por toda parte as freiras e noviças tinham sido unânimes em proclamar a fidelidade ao seu estado, mesmo quando já iam subindo a escada da guilhotina. Tal era o espírito das “prisioneiras”.

Diderot, embora morresse cinco anos antes da Revolução, não pode no entanto ser facilmente desculpado pelos efeitos criminosos de um ódio que ele instigou conscientemente. Não o pode, sobretudo, porque ele sempre esteve informado de que não havia e não podia haver nenhuma prisioneira nos conventos, de que todas as freiras estavam ali por vontade própria, inclusive aquela em que ele se inspirou para escrever o romance, a irmã Delamarre, do convento de Longchamps. Foi tudo uma falsificação premeditada.

Durante muito tempo, o mundo inteiro acreditou na versão de Diderot, que afirmava ter em seu poder a documentação completa do caso Delamarre. De fato, o dossiê estava nas mãos dele, mas desapareceu logo depois de publicado o romance. Reencontrado em 1954 pelo pesquisador George May, sua leitura mostra que Diderot estava ciente dos seguintes fatos:

1) Em Paris havia quatro tribunais, eclesiásticos e civis, para julgar solicitações de dispensa da carreira monástica, e a regra geral era atender a todos os pedidos.

2) A seleção das monjas era rigorosíssima. O empenho da Igreja era livrar-se das falsas vocações, e não retê-las à força.

3) Exatamente ao contrário de uma prisioneira do convento, a irmã Delamarre era a porteira, tinha as chaves e podia entrar e sair quando quisesse.

4) O único processo aberto pela srta. Delamarre era uma pendência de espólio com uma parente. Para receber a herança, um título nobiliárquico, a freira tinha de deixar a ordem religiosa. Mas logo depois, tendo desistido de disputar o legado, ela voltou alegremente ao convento.

Diderot sabia de tudo isso, e a correspondência entre ele e seu amigo Jacob Grimm mostra que o romancista “estourava de rir” (sic), com a falsificação meticulosa que ia armando em torno da história. Divertia-se não só com a alegria feroz de caluniar, mas chegava ao requinte de uma crueldade mental muito mais direta. Ao marquês de Croismarre, cristão piedoso que entre lágrimas lhe escrevia preocupado com a sorte da moça, Diderot respondia com invencionices inquietantes, enfatizando os sofrimentos da infeliz no claustro e degustando até o fim o prazer de manter angustiado o pobre homem. Não espanta que Diderot fosse o escritor predileto de Karl Marx, outro sociopata sádico.

Outros documentos encontrados por Georges May, posteriores ao falecimento de Diderot, mostram que a irmã Delamarre morreu trinta anos depois do romancista, ainda como porteira do convento, após ter enfrentado bravamente, ao lado de suas irmãs, os comissários da Revolução. A única opressão que ela sofrera viera pelas mãos dos inimigos da Igreja. (3)

Se eu fosse enumerar e analisar todas as mentiras inventadas pelos iluministas contra os cristãos e os judeus, um ano inteiro de edições do Diário do Comércio não bastaria para comportá-las. Mas o fato é que essas mentiras atravessaram os séculos, impregnaram-se profundamente na imaginação popular, ressurgindo sob novas e variadas formas e servindo para legitimar o massacre dos cristãos na Rússia e dos judeus na Alemanha. Intelectuais e artistas de grande prestígio não hesitam em colaborar com esse crime hediondo. Tudo sobre o caso Delamarre já era arquiconhecido dos historiadores quando, em 1970, o filme de Jean-Luc Godard, La Religieuse, renovou o efeito do símbolo odioso inventado por Diderot.

Mas – voltando ao argumento central –, o advento dos jacobinos ao poder ocasionou a mudança de pólo da tensão dialética: da propaganda anticristã passou-se ao esforço aberto de criar um simulacro de cristianismo para consumo das multidões revolucionárias. A retórica do Terror imita de perto a dos pseudoprofetas messiânicos: a idéia do apocalipse terreno, a condenação radical do capitalismo, a purificação do universo pela matança dos ricos, a missão privilegiada dos “santos”, o retorno da humanidade a uma era de pureza originária – tudo aí ressurge, mas agora com o Contrato Social de Rousseau como texto sagrado em vez dos Evangelhos. Cada vez mais a imitação caricatural do ethos cristão adquire autonomia, desligando-se do sentido patente da mensagem de Cristo e parasitando sentimentos morais profundamente arraigados na população cristã para torná-los instrumentos de legitimação do terrorismo estatal, sob a inspiração – como escreveu Thomas Carlyle – “do quinto e novo evangelista, Jean Jacques, conclamando todos e cada um a que emendassem a existência pervertida do mundo”.

Luciano Pellicani, no seu estudo sobre Revolutionary Apocalypse. The Ideological Roots of Terrorism (London, Praeger, 2006), que pretendo comentar em detalhe numa das próximas colunas, observa: “Assim a elite revolucionária, agindo na base do diagnóstico-terapia dos males do mundo contido na ‘verdadeira filosofia’, vem a assumir o papel típico do Paracleto na tradição gnóstica: só ele sabe o que é bom para a cidade.” Fundada nessa autoridade onissapiente, a salvação tem de assumir a forma do morticínio redentor. Robespierre deixa isso bem claro: “O governo popular… é ao mesmo tempo Virtude e Terror. O Terror nada mais é que a justiça severa e inflexível. É portanto uma emanação da Virtude.” Pellicani conclui: “Esse conceito da redenção da humanidade exige uma sociedade organizada como se fosse um convento militarizado.” A fórmula ressurgirá nos padres-guerrilheiros da teologia da libertação e nos projetos mais recentes do “arcebispo” Hugo Chávez.

Mas, muito antes disso, o pêndulo da revolução oscilará uma vez mais para o outro lado. Findo o ciclo jacobino, com o advento do império napoleônico, da Restauração e da democracia burguesa, as novas fórmulas da ideologia revolucionária, com Marx e Bakunin, fazem um upgrade do anticristianismo, transfigurando-o em ateísmo militante. Karl Marx professa “odiar todos os deuses” e define o ateísmo como “a negação de Deus, por meio da qual se afirma a existência do homem”. Deus, para o marxismo, inspirado nesse ponto em Feuerbach, surge da auto-alienação dos poderes do homem projetados num céu metafísico – como se o homem tivesse criado o céu e a terra e depois se esquecido disso, transferindo as honras para uma entidade inexistente: teoria suficientemente idiota para parecer sedutora a milhões de intelectuais.

Com a ascensão do ateísmo, multiplicam-se as matanças de padres e crentes em medida jamais sonhada pelo próprio Robespíerre. Entre a guerra civil mexicana (1857) e o início da II Guerra Mundial (1939), não menos de vinte milhões de cristãos morreram em perseguições religiosas destinadas, segundo Lênin, a “varrer o cristianismo da face da terra”. E o massacre dos judeus nem havia começado ainda.

Mas talvez o ateísmo não seja o traço mais autêntico dessa etapa do movimento revolucionário. Tanto Marx quanto Bakunin tomaram parte, reconhecidamente, em rituais satânicos (leiam Richard Wurmbrand, Marx and Satan, Living Sacrifice Book Company, 1986, jamais contestado). E pelo menos na Itália a apologia de Satanás tornou-se explícita com o poeta Giosue Carducci, um dos maiores inspiradores do movimento revolucionário local:

Salute, o Satana

O ribellione

O forza vindice

De la ragione! (4)

Qualquer que seja o caso, o impacto das matanças acabou por incomodar os próprios revolucionários, que, nos anos 30, já estavam pensando em algum meio de contorná-la. Antonio Gramsci, nos “Cadernos do Cárcere”, ensina que a Igreja não deve ser combatida, mas esvaziada de seu conteúdo espiritual e usada como caixa de ressonância da propaganda comunista. O sucesso obtido posteriormente nesse empreendimento pode-se medir por dois fatos:

1) A influência avassaladora que os comunistas conseguiram exercer desde dentro e desde fora sobre o Concílio Vaticano II, dividindo a Igreja Católica e ocasionando a maior evasão de fiéis em dois milênios de catolicismo. (5)

2) O Conselho Mundial das Igrejas, a maior organização protestante do mundo, que congrega centenas de igrejas em todos os países, nominalmente para objetivos “ecumênicos”, é notoriamente uma entidade pró-comunista, que apóia e subsidia movimentos revolucionários terroristas. (6) Os vários Conselhos Nacionais das Igrejas são entidades independentes, mas pelo menos o dos EUA é ainda mais abertamente pró-comunista do que o Mundial. (7)

Paralelamente e em estreita associação informal com os esforços comunistas, veio-se desenvolvendo, desde os fins do século XIX, um movimento mundial destinado a criar a maior confusão religiosa possível através da propaganda ocultista em massa e da revivescência forçada do gnosticismo. Fenômenos como o surto de orientalismo pseudomístico da Nova Era, o culto das drogas como “via de iluminação interior”, a onda de experimentos psíquicos perigosos que partiu de Esalem (CA) e se espalhou pelo mundo, a proliferação de seitas empenhadas em escravizar seus discípulos através de práticas mentais destrutivas, podem ser apresentados ao público como uma convergência espontânea de tendências ou como uma fatalidade histórica impessoal ditada pelo “espírito do tempo”, mas basta pesquisar um pouco as fontes para descobrir que se trata de uma iniciativa unitária, organizada e bilionariamente financiada pelas mesmas forças auto-incumbidas de transformar a ONU em governo mundial até no máximo o fim da próxima década. (8)

A oscilação dialética e pendular do movimento revolucionário entre a anti-religião e a pseudo-religião, somada à multiplicidade alucinante das correntes que o alimentam, desorienta a quase totalidade do público. A ânsia de tomar posição, infindavelmente alimentada pela mídia e pelo sistema escolar, leva muita gente a apoiar movimentos e idéias cuja ligação com a corrente central não parece evidente à primeira vista. Quantos cristãos conservadores, querendo salvar a Igreja, não aderiram a idéias antijudaicas, por imaginar que a revolução era essencialmente obra de judeus? Quantos intelectuais judeus não se filiaram a partidos revolucionários, sem notar que com isso cavavam a sepultura do seu povo? Quantos protestantes, confundindo o catolicismo com a sua contrafação revolucionária, não acham que o melhor que têm a fazer é destruir a Igreja Católica? Quantos católicos, embriagados de pureza doutrinal não vêem o americanismo como um inimigo, movendo portanto guerra contra a única nação que criou uma síntese funcional de cultura cristã, economia próspera e democracia política? Quantos adeptos da democracia capitalista não se inspiram em idéias iluministas por lhes parecerem equilibradas e racionais, sem saber que, pelo seu conceito redutivista da razão, elas contêm em seu bojo a semente do irracionalismo revolucionário romântico, e sobretudo sem notar que o iluminismo, com toda a sua aparência elegante e educadinha, criou a primeira campanha de difamação anticristã organizada, pondo em circulação mentiras escabrosas que até hoje milhões de idiotas repetem como papagaios em todo o mundo? Quantos defensores das posições liberais em economia não acreditam poder conciliá-las com um ateísmo militante que, corroendo os fundamentos espirituais e morais do capitalismo, o convidam a transformar-se precisamente na “idolatria do mercado” que a propaganda comunista o acusa de ser, e assim ajudam a transferir aos revolucionários, bem como aos radicais islâmicos, o monopólio da autoridade moral? Escolhendo o inimigo conforme as feições mais salientes que se oponham às suas preferências subjetivas, todas essas pessoas não fazem senão botar lenha na fogueira da tensão dialética da qual o movimento revolucionário mundial se alimenta e se fortalece. Na verdade o inimigo é um só. Não se pode combatê-lo eficazmente sem apreender sua unidade por trás da variedade alucinante das suas versões, encarnações e aparências. Algumas décadas atrás, essa unidade era difícil de enxergar, pois não havia documentação suficiente para prová-la. Hoje suas provas são tão abundantes, que continuar a ignorá-la começa a se tornar uma espécie de cumplicidade criminosa. (9)

NOTAS

(1) O amor apaixonado que muitos intelectuais de hoje em dia têm por essas aberrações revela não somente seu ódio ao cristianismo, seu desejo de exterminá-lo por todos os meios possíveis, mas uma falta de inteligência que raia o monstruoso. Bart D. Ehrman, o badalado autor de The Lost Gospel of Judas Iscariot. A New Look at Betrayer and Betrayed (Oxford University Press, 2006), por exemplo, não é senão um fanático gnóstico travestido de erudito universitário, apto a realizar pesquisas filológicas em várias línguas antigas mas incapaz de atinar com as contradições mais pueris do seu próprio texto. Para esse tipo de estudioso, empenhado em impugnar os evangelhos originais com base em textos gnósticos escritos dois séculos depois deles, estão sempre abertas as cátedras universitárias, a NBC, o History Channel, o National Geographic e a mídia chique inteira, pela simples razão de que essas instituições são financiadas e dirigidas pelo mesmo núcleo de bilionários empenhados em fabricar uma religião biônica para substituir o cristianismo no terceiro milênio (v. nota 8).

(2) Vejam, sobre isso, Paul Hazard, La Pensée Européenne au XVIIIe. Siècle (Paris, Boivin, 1946), um clássico da história das idéias.

(3) Sobre o episódio, leiam Jean Dumont, La Révolution Française ou Les Prodiges du Sacrilège, Paris, Criterion, 1984.

(4) “Salve, ó Satanás, ó rebelião, ó força vingadora da Razão!” Da ode “A Satana”, que os conhecedores do italiano podem ler em http://digilander.libero.it/interactivearchive/carducci_satana.htm.

(5) V. Ricardo de la Cierva, Las Puertas del Infierno. La Historia de la Iglesia Jamás Contada, Madridejos (Toledo), Fénix, 1995, e La Hoz y la Cruz. Auge y Caída del Marxismo y la Teología de la Liberación, id., ibid., 1996.

(6) V. Bernard Smith, The Fraudulent Gospel. Politics and the World Council of Churches, London, The Foreign Affairs Publishing Co., 1977.

(7) Confira em C. Gregg Singer, Unholy Alliance. The Definitive History of the National Council of Churches and Its Leftist Policies – From 1908 to the Present, em http://www.freebooks.com/docs/39be_47e.htm.

(8) V. extensa documentação sobre isto em Lee Penn, False Dawn. The United Religions Initiative, Globalism and the Quest for a One-World Religion, Hillsdale, NY, Sophia Perennis, 2004.

(9) A questão do lugar ocupado pelo islamismo no processo aqui descrito requer um exame em separado, que será feito num dos próximos artigos.

Ouça o programa de Olavo de Carvalho, True Outspeak, hoje às 20h00 (hora de Brasília) em http://www.blogtalkradio.com/olavo .

Marxismo já!

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 29 de agosto de 2005

Normalmente, no Brasil, políticos e intelectuais de esquerda se esquivam de declarar que são comunistas. Vivem dizendo que a direita não assume o próprio nome – o que é no mínimo inadequado, pois uma corrente política que não existe ideologicamente não tem por que assumir nome nenhum –, mas, pelo menos desde a queda do Muro de Berlim, são os esquerdistas os principais usuários de substitutivos eufemísticos. E por certo não é a “direita” quem tenta impor a proibição legal de chamar as coisas pelos seus termos apropriados. É até cômico que os censores politicamente corretos do vocabulário exijam dos outros a linguagem franca que eles próprios buscam abolir por todos os meios.

Ocultar a condição de comunista sempre foi uma obrigação para os militantes envolvidos na parte clandestina das operações do Partido, mesmo em épocas e países com plena vigência dos direitos democráticos. A universalização da camuflagem como estilo de vida foi uma das grandes contribuições do comunismo à cultura do século XX (v. “Double Lives”, de Stephen Koch).

Mas, desde os anos 90, a obrigação de despistar ligações com o movimento comunista foi reforçada pelo descrédito geral do regime soviético. Como assinalou Jean-François Revel em La Grande Parade, a década foi marcada por uma intensa revisão do discurso esquerdista, um botox ideológico destinado a apagar as marcas do passado nas carinhas bisonhas dos mais subservientes e pertinazes bajuladores de genocidas, para que pudessem apresentar como novidades auspiciosas as mesmas propostas comunistas de sempre. Desde então, proliferaram os eufemismos, alguns antigos, como “democracia popular”, “socialismo democrático” etc., outros novos, como “revolução bolivariana” ou o mais lindo de todos: “ampliar a democracia”, que significa fechar jornais, proibir críticas ao presidente e dar tiros numa massa de manifestantes para seguida acusá-la de matar-se a si própria com o intuito maldoso de desmoralizar o governo. O regime atual da Venezuela já é uma democracia ampliada. Ampliada até além-fronteiras: policiais e juízes enviados por Fidel Castro têm jurisdição para entrar no país à vontade e prender cubanos foragidos ou até cidadãos venezuelanos considerados inconvenientes.

O fogo das denúncias de corrupção no governo Lula derreteu rapidamente a maquiagem verbal, de baixo da qual emergiu, em toda a sua formosura, o bom e velho discurso da ortodoxia marxista. Com uma desenvoltura e uma petulância que seriam inimagináveis na época da campanha eleitoral, Lênin e Mao assomaram ao microfone do ciclo “O Silêncio dos Intelectuais” e em várias colunas de imprensa, com aquele sincronismo que muitos atribuiriam misticamente a coincidências junguianas e no qual só os paranóicos – sim, só eles, eu incluso – ousariam pressentir o sinal de uma instrução transmitida a toda a massa de “trabalhadores intelectuais”, concitando-os a juntar forças para atribuir todos os crimes do PT à política “tucanizada” e oferecer como remédio à debacle do partido a palavra-de-ordem salvadora e unânime: Marxismo já!

O sr. Francisco de Oliveira, no resumo publicado da sua conferência no ciclo, é explícito: citando Roberto Schwarz, ele proclama que a conjuntura “é ótima para renovar o pensamento brasileiro pelo marxismo”. Provando que o senso das proporções não é o mesmo numa cabeça de comunista e na da humanidade normal, ele se queixa de que a dose de estupefaciente marxista fornecida aos estudantes universitários é escassa, porque “não se sabe com que profundidade Marx foi lido”. Uai, até observadores menos atentos podem notar que o pensamento marxista não domina os cursos nacionais de direito, filosofia e ciências humanas por ser muito estudado, mas porque aí não se estuda praticamente nada além dele. Não é preciso conhecer bastante alguma coisa para poder ignorar tudo o mais. O “Dicionário Crítico do Pensamento da Direita”, que citei aqui dias atrás, obra de 104 professores universitários esquerdistas e por isso amostragem suficiente da mentalidade da classe, mostra até que ponto vai a ignorância dessa gente a respeito das correntes de idéias alheias ao marxismo. A grande força do marxismo universitário brasileiro é justamente a rarefação da sua substância intelectual, que permite sua distribuição rápida a milhões de idiotas.

De passagem, o sr. Oliveira resmunga que, mesmo no auge da moda marxista entre nós nos anos 70, o pensamento dos frankfurtianos esteve “praticamente ausente” da universidade brasileira, o que, a julgar pelo volume oceânico de citações a Adorno e Benjamin desde então até hoje, só pode ser interpretado no sentido de Stanislaw Ponte Preta: “Sua ausência preencheu uma lacuna”.

Mas o ponto mais significativo do diagnóstico oliveiriano dos males do marxismo brasileiro é a crítica ao “reformismo” do PCB nos anos 60 e a apologia à “única exceção criadora” da ocasião, o filósofo Caio Prado Júnior. A presente geração de estudantes dificilmente atinará com o sentido dessa alusão, mas, para quem a percebe, a analogia com a situação atual é óbvia. Num momento em que a esquerda, como hoje, lambia as feridas de um fiasco monumental e buscava meios de salvar a honra, o autor de A Revolução Brasileira foi, entre os comunistas históricos, o mais destacado crítico da “aliança com a burguesia nacional” e o propugnador emérito da ruptura violenta que gerou a guerrilha. Quando Marx disse que a história se repete como farsa, estava antecipando a epopéia tragicômica do movimento comunista, toda ela composta de sucessivas reencarnações farsescas de si própria. O vaivém cíclico entre apaziguamento maquiavélico e radicalismo assassino, com periódicas fusões dos dois elementos, é um dos lances infalíveis desse enredo criminoso. O sr. Oliveira é em suma o novo Caio Prado Júnior, assim como o PT de Lula é o PCB corrompido e “reformista” que deu com os burros n’água em 1964. A solução é, pela enésima vez, o retorno purificador às fontes do marxismo, seguido de algum tipo de videotape das guerrilhas, provavelmente ampliadas às dimensões das FARC. Esse pessoal não aprende nunca.

De maneira ainda mais estereotípica, a sra. Marilena Chauí adverte contra a “crença perigosa” ( sic ) de que as idéias movem o mundo, restaura a lição da vulgata segundo a qual quem move tudo é a luta de classes, e repete com admirável fidelidade canônica a excomunhão marxista da “separação entre trabalho manual e intelectual no capitalismo” (no socialismo, como se sabe, cada varredor de rua é um novo Leonardo da Vinci). Complementada por uma oportuna entrevista que lança sobre o indefectível “neoliberalismo” as culpas do governo Lula – como se os crimes denunciados não viessem do tempo em que a própria Chauí se tornou a musa inspiradora do marxismo petista –, a alocução da professora da USP no ciclo “O Silêncio dos Intelectuais” traz um enfático reforço à estratégia reencarnacionista do sr. Oliveira.

Ao mesmo tempo, na mídia, o apelo por um retorno ao marxismo puro ecoa por toda parte com idêntico vigor. Para dar só um exemplo entre muitos, que comentarei se possível nas próximas semanas, o sr. Fausto Wolff, célebre como relações públicas de Yasser-Arafat, anuncia “uma lição de casa para os petistas” e, com o didatismo de um instrutor do MST, fornece dados biográficos seguidos de um resumo esquemático das doutrinas de Karl Marx. C onfesso não estar habilitado a sondar a profundidade dos ensinamentos do sr. Wolff, já que me falta no momento o único instrumento de análise apropriado para isso: o bafômetro. Limito-me a anotar no seu artigo dois pontos interessantes. Primeiro, ele não parece ter do marxismo conhecimentos que vão muito além da lauda e meia ali preenchida, já que proclama ter sido A Essência do Cristianismo , de Ludwig Feuerbach, “o livro que mais influenciou o jovem Marx”. Quem quer que tenha estudado o assunto sabe que Marx só engoliu com reservas as especulações feuerbachianas. O verdadeiro guru e introdutor dele e de Engels no comunismo foi Moses Hess, satanista praticante, de cujo livro Die Folgen der Revolution des Proletariats (“Conseqüências da revolução proletária”, 1847), trechos inteiros do Manifesto de 1848 são quase uma paráfrase. (Mais tarde Hess se arrependeu e voltou ao judaísmo, mas era tarde: sua prole infernal já estava espalhada pelo mundo.)

Segundo: o sr. Wolff proclama que uma das grandes desventuras do Brasil é o abandono da Teologia da Libertação, cujos próceres “perderam a guerra contra o clero vigarista infiltrado em toda a vida nacional”. O leitor, como eu, terá alguma dificuldade em enxergar os padres reacionários que superlotam o Senado, a Câmara, os Ministérios, o aparato estatal de cultura, o movimento editorial, os canais de TV, as redações de jornais e as editoras de livros, assim como em constatar a ausência concomitante, nesses locais e até na Presidência da República, de discípulos de Frei Betto e Leonardo Boff. Mas a percepção do sr. Wolff, sobretudo depois das duas da madrugada, penetra em regiões inacessíveis à visão normal humana. Ele vê coisas.

Para mim, tudo isso foi uma autêntica Hora da Saudade . Ouvindo a sra. Marilena Chauí, lendo os srs. Francisco Oliveira e Fausto Wolff, entre tantos outros, revivi, proustianamente, a minha juventude de militante, quando varava noites decorando o Manual de Marxismo-Leninismo da Academia de Ciências da URSS e comovendo-me até às lágrimas com a convocação de Caio Prado Júnior à sangueira redentora que nos libertaria da vexaminosa “acomodação burguesa” do PCB. Na época não existiam os termos “neoliberalismo” e “tucanismo”. O pecado chamava-se “reformismo” ou ‘revisionismo’. Mas, para o automatismo mental comunista, a mera troca de palavras já é uma inovação formidável.

Mídia anestésica

Em artigo publicado no Globo do dia 21, Miriam Leitão reconhece que “houve falha generalizada no sistema de acompanhamento do que se passa no país. Um dos culpados é a própria imprensa… Não vimos que o dinheiro era farto demais no PT para ser de boa fonte”.

A admissão da verdade, mesmo tardia, pode ser um mérito, contanto que não venha acompanhada de novas mentiras incumbidas de embelezar os erros confessados, dispensando o pecador de tentar corrigi-los e ainda autorizando-o a cometê-los de novo com consciência tranqüila.

Miriam começa por mentir no uso do verbo. “Não vimos”, uma pinóia. Eu vi tudo, denunciei tudo, expliquei tudo, escrevi artigo em cima de artigo, no próprio Globo , para alertar contra a criminalidade petista.

A resposta de meus colegas veio sob a forma de silêncio desdenhoso, rotulações pejorativas, boicotes, risinhos cínicos com ar de superioridade, supressão abrupta de minha coluna em três órgãos de mídia.

O mínimo indispensável de honestidade exige, daquele que admite por fim fatos longamente negados, o reconhecimento ao mérito de quem não foi ouvido quando os proclamou em tempo.

Esse mínimo está infinitamente acima do que se pode esperar de quase todo o jornalismo brasileiro.

Miriam, por exemplo, em vez de cumprir sua obrigação moral para com o colega que pagou por dizer a verdade, faz o elogio dos que ganharam para omiti-la. A mídia brasileira, diz ela, é “competente, ágil, investigativa, independente”: se errou — é a conclusão implícita –, foi por distração sem malícia.

Quatro episódios bastam para mostrar quanto isso é falso:

1. Quando apareceram os primeiros sinais claros da corrupção petista, no Rio Grande do Sul, a classe jornalística, em vez de investigá-los, foi em peso oferecer uma “manifestação de desagravo” ao suspeito, o governador Olívio Dutra. Denunciei isso na Zero Hora de 2 de dezembro de 2001.

2. Quando o deputado Alberto Fraga disse ter provas da ajuda financeira das Farc à campanha do PT, muitos jornais omitiram a notícia por completo, outros a esconderam num cantinho de página  (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/030329globo.htm ). Quando a revista Veja voltou ao assunto, o resto da mídia tampou os ouvidos.

3. Quando mostrei no próprio Globo que uma denúncia contra o Exército, a qual rendera ao repórter Caco Barcelos o Prêmio Imprensa, era não apenas falsa mas fisicamente impossível, como reagiu a bela consciência da classe jornalística? Averiguando? Nada disso. Mais que depressa deu um segundo prêmio à pseudo-reportagem (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/nditadores.htm ).

4. Por fim, as atas do Foro de São Paulo e até a existência mesma dessa entidade, a mais influente organização política da América Latina, cujas atividades o povo tinha o direito e a urgência de conhecer para poder julgar a política nacional, foram sistematicamente ocultadas por toda a mídia durante quinze anos. Se divulgadas, jamais o eleitorado teria caído no engodo petista.

A omissão de tantos jornalistas ante a depravação do PT não foi um lapso involuntário. Foi cumplicidade consciente, pertinaz, criminosa. A corrupção da política vem da corrupção da cultura, e não ao contrário. E a corrupção da cultura é obra de três agentes principais: universidade, igreja e mídia. Por esses três canais injetou-se na mente do povo, ao longo de mais de três décadas, a substância entorpecente que o tornou refratário a qualquer denúncia contra a esquerda e o induziu apostar a bolsa, a vida e o futuro na idoneidade do PT. E ainda sobrou anestésico bastante para amortecer os crimes do próprio anestesista.

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