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O ovo do maluco

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 3 de outubro de 2013

          

Recentemente um estudante, todo assustado, foi contar ao prof. Renato Janine Ribeiro que um colega de classe, marxista de impecável formação uspiana e quase militante, dera de ler os meus escritos e – oh, horror! – começara a me dar razão. Na intenção piedosa de trazer de volta ao rebanho a ovelha desgarrada, o rapaz passou-lhe um velho artigo do próprio Janine, mas não adiantou.

Nem vejo como poderia ter adiantado. Esse artigo é um exemplo perfeito da inépcia acadêmica ante a qual o ex-futuro-militante, decepcionado, resolvera procurar algum ensinamento mais substantivo nos escritos deste abominável reacionário.

Décadas de esforço coletivo no sentido de isentar Lênin das culpas de Stálin só deram como resultado provar que o pior do estalinismo já estava contido em germe nas propostas de Lênin, o qual teve apenas a amabilidade de morrer de sífilis antes de poder realizá-las. Diante de tamanho desastre historiográfico, algumas almas devotas passaram ao Plano B: limpar Marx das culpas de Lênin. O prof. Janine é uma dessas belas almas, e o artigo mencionado é a prova da sua devoção.

Segundo ele, os líderes comunistas, a começar por Lênin, não entenderam Marx e por isso criaram um Estado-monstro, repressor e opressor. “Marx não defende o Estado máximo… O que ele defende é o Estado nenhum. A supressão do Estado é um princípio fundamental para ele, que aí se aproxima dos anarquistas.”

O estudante assustado dissera ao seu colega que para conhecer Marx é preciso ler Marx, não o que o Olavo de Carvalho diz a respeito. Muito justo. Mas não parece que o próprio Janine tenha tentado compreender Marx lendo Marx, e sim inventando-o. Se lesse pelo menos o Manifesto Comunista, encontraria lá o seguinte parágrafo:

“O proletariado servir-se-á da sua dominação política para arrancar progressivamente todo o capital da burguesia, para centralizar todos os meios de produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado.”

Qualquer semelhança entre isso e o anarquismo é mero delírio de interpretação. O proletariado organizado, isto é, o Partido, não é uma alternativa ao Estado: ele é o próprio Estado. E Marx não concebe a autodissolução do Estado como substituição dele por alguma outra coisa, à maneira anarquista, e sim como uma auto-superação dialética, uma Aufhebung hegeliana ou, como diria Mao, um “salto qualitativo” — o processo pelo qual uma coisa muda de forma sem mudar de substância: quando o Estado houver dominado toda a sociedade, ele automaticamente cessará de existir como entidade distinta, pois será idêntico à sociedade mesma. A extinção do Estado coincide com a apoteose da dominação estatal, que, por onipresença, desaparece.

Há tempos escrevi que esse projeto é uma curiosa inversão da regra biológica de que quando o coelho come alface não é o coelho que vira alface, mas a alface que vira coelho. Se o Estado engole a sociedade, não é o Estado que desaparece: é a sociedade. A “autodissolução do Estado”, tal como Marx a concebia, é um exemplo típico da inversão revolucionária de sujeito e objeto.

O prof. Janine fica todo feliz ao pensar que o Estado comunista só socializará os meios de produção, sem tocar na pequena propriedade particular. Mas ele não pode querer isso e a “extinção do Estado” ao mesmo tempo: se resta alguma fronteira entre propriedade particular e propriedade pública, a diferença entre Estado e sociedade permanece intacta. Marx entendia que nenhum comunismo seria possível sem mudar até mesmo a natureza humana. Que “pequena propriedade” pode ficar fora disso?

Janine também se derrete ao pensar que Marx queria estatizar a economia sem controlar a conduta dos cidadãos, a vida privada. É ideia de criança. Como reeducar as pessoas para a economia comunista sem mudar seus hábitos diários,  sentimentos, suas reações pessoais, sua vida familiar? E como mudar tudo isso sem intromissão estatal nesses domínios? Marx chamaria isso de idealismo burguês.

A simples presunção de definir o pensamento de Marx por um ideal abstrato, separado da práxis que o incorpora e que não pode realizá-lo sem transformá-lo no seu contrário, é antimarxista no mais alto grau. Janine, em matéria de marxismo, não passou do pré-primário.

No cérebro dele, o divórcio burguês entre o ideal e o real, que arrancava de Marx gargalhadas de sarcasmo, chega ao cúmulo de proclamar:  “Não fossem a 1.ª Guerra Mundial e a queda do czarismo, o socialismo marxista poderia estar associado hoje a uma opção democrática.”

Não é lindo? Se não acontecesse o que aconteceu, não teria acontecido. A culpa de tudo é da maldita História: ela não é mais o reino da práxis onde o marxismo se realiza por meio das contradições: é a perversa destruidora do ideal marxista. Que comédia!
“Não podemos deixar Marx refém do comunismo histórico”, diz ele, propondo um “Marx sem Lênin”. O comunismo é, de fato, o único movimento que quer ter o privilégio de ser ao mesmo tempo uma força histórica organizada e unificada, capaz de ação planejada e contínua ao longo das épocas, e uma coleção de “pensadores” isolados e inconexos, sem nenhuma responsabilidade de conjunto.

É óbvio que, como qualquer outra corrente político-ideológica, ele pode ser estudado sob esses dois ângulos. Mas imaginar que eles existam separadamente como entidades substantivas e, pior ainda, que só o segundo deles seja dotado de realidade, é confundir a  ratio cognoscendi com a ratio essendi, é tomar o método pelo objeto, a visão pela coisa vista, como um maluco que desenhasse um ovo e depois fritasse o desenho para comê-lo. Esse maluco existe: chama-se Renato Janine Ribeiro.

Arredondando os quadrados

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de janeiro de 2010

Dentre as inumeráveis regras que governam a estupidez humana, estas duas, opostas e complementares, são de especial importância para elucidar a conduta de intelectuais, políticos e formadores de opinião em geral:

Regra no. 1: Se um sujeito está persuadido de que os quadrados são redondos, ele fará todo o possível para arredondá-los.

Regra no. 2: Se o mesmo indivíduo ou outro parecido tem algum interesse em arredondar os quadrados, ele jurará que eles são redondos por natureza.

O pragmatismo, uma modalidade especialmente elegante de estupidez, fundiu essas regras numa só e as erigiu em princípio fundamental do conhecimento: os conceitos das coisas não dizem o que elas são, mas o que planejamos fazer com elas.

Para justificar a afirmativa, que soava um tanto paradoxal e interesseira à primeira audição, essa mimosa escola filosófica argumentou que o pensamento é ação, que portanto pensar numa coisa já é fazer algo com ela. Todos os atos cognitivos tornavam-se assim uma forma de manipulação da realidade, o que resultava em suprimir toda possibilidade de conhecimento teorético e afirmar resolutamente que só existe conhecimento prático.

Enquanto na América Charles Peirce, William James e Josiah Royce se compraziam nessas reflexões tão agradáveis aos homens de indústria, para os quais tudo o que existe não passa de matéria-prima para a produção de outra coisa que também não existirá senão como projeção do que os consumidores pretendam fazer com ela, do outro lado do oceano um cidadão que odiava homens de indústria vinha inventando umas idéias bem parecidas.

Para Karl Marx, uma ciência que pretenda descrever o mundo como ele é não passa de uma ilusão burguesa, nascida da divisão do trabalho. Como os burgueses ficam no escritório ou em casa, sem sujar suas mãozinhas na luta direta com a matéria industrial, eles imaginam que há uma diferença entre conhecimento teórico e prático. Mas os proletários, que pegam no pesado para executar os planos dos burgueses, sabem que seus esforços de todos os dias são a materialização viva das idéias burguesas, as quais portanto não têm nenhuma existência em si mesmas e são apenas planos malignos de obrigar o proletariado a fazer isso ou aquilo. A verdadeira ciência, concluía Marx, não consiste em conhecer a realidade, mas em transformá-la. Os burgueses já praticavam essa ciência, mas não podiam confessar que faziam isso: para preservar sua auto-imagem de pessoas decentes enquanto sugavam o sangue dos proletários, tinham de se enganar a si mesmos imaginando que sua concepção do mundo era pura contemplação teorética, alheia a interesses menores. Daí o culto burguês da “ciência” como uma espécie de religião leiga, personificada no clero universitário que, da Idade das Luzes em diante, sobrepunha sua autoridade à dos padres e bispos medievais.

Não demorou muito para que essas duas correntes de idéias análogas, vindas de continentes distantes, se fundissem numa cabeça especialmente imaginativa, a do filósofo italiano Antonio Labriola, segundo o qual o marxismo é uma espécie de pragmatismo e vice-versa. Labriola repassou essa descoberta a seu discípulo Antonio Gramsci, que a transformou numa genial estratégia de propaganda revolucionária: já que as coisas não são nada em si mesmas, elas podem ser o que o Partido determine que elas sejam. Conseqüentemente, não existe conhecimento da verdade, mas “construção coletiva” da única realidade verdadeira: a conquista do poder, a glória final do partido revolucionário.

As idéias de Gramsci penetraram tão profundamente na alma do esquerdismo universal, que até o militante mais sonso, incapaz de atinar com qualquer sutileza, acaba se deixando conduzir por elas na prática, por uma espécie de mimetismo inconsciente. É com uma total naturalidade que essas pessoas falam a toda hora em “construção da verdade” e “construção da memória”, sem ter a mínima suspeita de que esses giros de linguagem implicam de fato a negação de toda verdade objetiva, o intuito de transformar os fatos em vez de conhecê-los.

Num trabalho publicado em 2002, defendendo a criação de “centros de memória empresarial”, a historiadora Marieta de Moraes Ferreira, com aquela candura tocante, declarava que o objetivo dessas entidades era “acompanhar o trabalho permanente de construção da memória ao selecionar o que deve ser valorizado e o que deve ser esquecido” (“História, tempo presente e História Oral”. Topoi – Revista de História, Rio, dezembro 2002, p. 314-332).

Em 2007, no I Congresso de Ex-Presos e Perseguidos Políticos, falando em favor daquilo que viria a ser a malfadada “Comissão da Verdade”, o promotor Marlon Weichert advogava bravamente a “construção da verdade, através da abertura dos arquivos”. Quando a proposta tomou forma, tornando-se evidente aos olhos de todos que se tratava de investigar metade dos crimes e abafar a outra metade, ninguém se lembrou de observar que a seletividade deformante não era uma distorção da idéia original, mas a sua realização literal e exata, perfeitamente coerente com as doutrinas de Labriola e Gramsci. Não por coincidência, o mesmo evento no qual o promotor apresentou sua proposta encerrou-se com uma comovida homenagem aos assassinos Pedro Lobo e Carlos Lamarca, este último o nobre detentor do mérito de haver esmigalhado a coronhadas a cabeça de um prisioneiro amarrado.

Mas não foi só nos meios mais obviamente militantes que o espírito do marxismo pragmatista deixou suas marcas. Nas faculdades de letras, a crença de que os textos não têm nenhum significado em si mesmos, de que cada leitor “constrói sua leitura” conforme bem entenda, tornou-se uma cláusula pétrea dos estudos literários. Se o aluno protesta contra alguma interpretação cretina, alegando “Não foi isso o que o autor quis dizer”, tem um zero garantido. Os autores não dizem nada, meu filho: você é que “constrói” as obras deles. Em educação infantil, a longa hegemonia das doutrinas “construtivistas” de Jean Piaget, Emilia Ferrero, Paulo Freire e tutti quanti consagrou a estupidificação geral da meninada como uma grande realização pedagógica: não se espante quando seu filho voltar da escola seguro de que o teorema de Pitágoras é uma imposição cultural arbitrária, de que Jesus Cristo era gay ou de que existem campos de concentração em Israel. Afinal, a realidade é pura construção.

As premissas do marxismo-pragmatismo são tolices sem sentido. Se uma coisa não é nada em si mesma, como poderíamos transformá-la em outra? Se os conceitos nada dizem sobre a realidade, também não podem dizer nada sobre o nosso conhecimento da realidade, o qual é também uma realidade. Se nossa apreensão das coisas não nos dá o conhecimento do que elas são, mas só do que planejamos fazer com elas, como poderíamos conhecer nosso próprio plano se não inventando algum outro plano a respeito dele, e outro, e outro mais, e assim por diante até o infinito. Como outras tantas modas intelectuais, o marxismo-pragmatismo é uma técnica de preencher o vazio com o vácuo.

Mas, quando uma doutrina idiota se impregna em toda uma cultura como essa se impregnou na cultura contemporânea, a própria idiotice se torna premissa fundante de inumeráveis argumentos em circulação, investida de força probatória automática, e toda resistência que se lhe ofereça toma ares de heterodoxia extravagante e abominável.

Palhaçada ao quadrado

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 29 de agosto de 2006

Não entendo por que tantas pessoas se escandalizaram com as coisas que Luis Carlos Barreto, Paulo Betti, José de Abreu e outros que tais disseram, numa festinha do ministro Gil, em louvor de mensalões e mensaleiros.

Desde logo, o que quer que esses sujeitos digam tem o peso cultural de uma descarga de gases intestinais. Não há entre eles um só intelectual de verdade, um só homem de estudos cuja opinião mereça ser ouvida. São todos semiletrados, bobos, provincianos e desesperadoramente irrelevantes (o único que tinha alguma inteligência, Ariano Suassuna, está completamente gagá).

Em segundo lugar, são todos comedores vorazes de verbas estatais, e não poderiam senão admirar e invejar os que conseguiram ingerir quantidades dessa substância ainda maiores, talvez, do que aquelas que eles próprios absorveram (o sr. Barreto, aliás, desde os tempos da ditadura).

Em terceiro, não creio que sua atitude seja substantivamente pior que a daqueles que, tendo impingido à nação a mentira estúpida da santidade do PT, e condenado às penas do inferno quem quer que não jurasse pela sua bíblia, de repente saem com um discurso antipetista no mesmo tom de pureza moral e autoridade infalível, sem ao menos pedir desculpas pela enormidade do mal que fizeram. Talvez os Barretos e Bettis sejam até um pouco mais respeitáveis, no sentido de que são maquiavelistas assumidos, adeptos confessos do crime bem sucedido, como o foram Marx, Lênin, Stálin, Che Guevara e Carlos Lamarca. Em comparação com eles, como julgar, por exemplo, um João Ubaldo Ribeiro, que num dia choraminga no túmulo de suas esperanças lulistas perdidas, e no dia seguinte, mais que depressa, trata de se fazer de bom menino ante o alto escalão do PT assinando um manifesto contra o fim da ditadura comunista em Cuba? Guardadas as devidas proporções, os Bettis estão para os Ubaldos como o sr. Marcola está para o dr. Márcio Thomaz Bastos. Entre o cinismo e a hipocrisia, qual a virtude mais admirável? Entre les deux mon coeur balance.

Resta, por fim, analisar a conduta dos comensais do sr. Gil como expressão local, exageradamente caricatural portanto, da debacle geral da intelectualidade esquerdista no mundo. Trinta ou quarenta anos atrás, havia um Jean-Paul Sartre, um Lucien Goldmann, um Herbert Marcuse. Eram picaretas, mentirosos e farsantes como todos os intelectuais de esquerda, mas tinham algum talento, alguma substância. Hoje em dia os esquerdistas mais inteligentes que sobraram são Slavoj Zizek, Antonio Negri e István Mészáros (excluo Noam Chomsky, cujos livros políticos são apenas propaganda enganosa, sem elaboração intelectual por mais mínima que seja). Nenhum deles suportaria dez minutos de debate com o mais humilde discípulo de Leo Strauss, Eric Voegelin, Thomas Sowell ou Roger Scruton (por isso mesmo têm a prudência de só discutir entre si, guardando distancia dos conservadores). A média dos intelectuais esquerdistas na Europa e nos EUA está na altura de Michael Moore ou Al Franken. Para fazer picadinho deles não é preciso um filósofo. Ann Coulter e Rush Limbaugh dão conta do recado.

Com alimento importado tão escasso, não é de espantar que a esquerda falante brasileira descesse de Caio Prado Júnior a Emir Sader, de Álvaro Lins a Gilberto Felisberto de Vasconcelos e de Glauber Rocha a Gilberto Gil. Esses sobreviventes são casos desesperados de raquitismo intelectual, mas os Bettis e Barretos, como discípulos deles, estão em estado ainda mais alarmante.

O próprio Gil, chamado certa vez por José Guilherme Merquior de “pseudo-intelectual de miolo mole” junto com Caetano Veloso, disse que, aplicado a Caetano, o rótulo era “quase injusto”, subentendendo que no seu próprio caso era de uma exatidão impecável. Prestadores de homenagens a um pseudo-intelectual de miolo mole são aspirantes a pseudo-intelectuais de miolo mole. São caricaturas de uma caricatura.

Escandalizar-se com o que disseram é esperar que representassem com alguma  dignidade o papel de intelectuais. Mas ninguém pode representar com dignidade uma palhaçada em segunda potência.

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