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El mayor

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 18 de novembro de 2015

         

O ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva leva uma vida invejavelmente rica e apaixonante, mas num ponto ele tem razão de se queixar: é o homem mais incompreendido do Brasil.
Nunca um personagem foi tão falado, comentado, analisado, louvado e achincalhado sem critério nem senso de observação, sem comparações objetivas nem conceitos descritivos apropriados. Cada um exerce ferozmente, a respeito dele, a paixão humana de juntar palavras no vazio para obter, da contemplação da mera ordem gramatical, a sensação voluptuosa de ter dito algo de importante.
Das muitas teorias que circularam sobre o personagem, talvez a mais imbecil seja aquela que o considerava um imbecil. Eu mesmo, confesso, me senti de início tentado a julgá-lo um incapaz, um trapalhão de comédia da Atlântida.
Como tantos outros, fui levado a isso pela impressão da sua aparência entre desleixada e grotesca, da sua retórica populista, das suas hediondas metáforas futebolísticas, da sua dislalia renitente que trocava os “ss” por “ff”.
Mas nenhum homem pode ser julgado pela falta de qualidades que nunca lhe interessaram. É preciso medi-lo pelo que ele tentou fazer e pelos resultados que obteve.
E o fato é que, após um começo difícil, Lula veio caminhando de vitória em vitória, desnorteando os adversários, articulando com mão de mestre os grupos mais heterogêneos e os interesses mais incompatíveis, até concentrar nas suas mãos mais poder que qualquer dos governantes que o antecederam, reduzindo a pó as oposições e transformando o Estado inteiro numa máquina dócil aos seus interesses partidários. Isso ele quis fazer, e fez. Isso foi o objetivo da sua vida, e foi exemplarmente realizado. A seus inteligentíssimos e refinadíssimos desafetos só restou, como prêmio de consolação, a pose de desprezo fingido, camuflagem do ódio impotente.
Como seria possível um tolo grosseirão ter uma carreira tão espetacular?
A impressão visual era, sem dúvida, enganosa. Se comparassem o homem com personagens reais, em vez de modelos de perfeição estereotipados, perguntariam: afinal, que encantos físicos ou indumentários possuía Josef Stálin? Que grandes tesouros de cultura havia na cabeça de Benito Mussolini? E qual é o problema com os “ss” e “ff”, se Lênin jamais conseguiu pronunciar o “r” russo e seus discursos soavam como fala infantil?
No mesmo intuito de depreciar o que não se consegue derrotar, mas indo um pouco além na presunção interpretativa, muitos liberais brasileiros, esses tipos sublimes, se viram levados a classificar Lula como “populista” porque lhes parecia inculto demais para ser comunista.
“Como falar em marxismo se Lula sequer leu uma página de Marx?”, perguntava o  indefectível Marco Antônio Villa, que não perde uma oportunidade de julgar o que não conhece (aqui).
A premissa embutida na pergunta é que o líder comunista tem de ser um intelectual, capaz de orientar-se no mare magnum de O Capital e dar lições eruditíssimas sobre as três leis da dialética materialista. Um tipo como Plekhanov ou Caio Prado Júnior.
Mas isso é a visão de um observador leigo. Dentro do movimento comunista, ao contrário, a condição de intelectual sempre foi um handicap, um sinal de alerta para o risco de hesitações pequeno-burguesas.
Credencial infinitamente mais prezada do que isso era a origem proletária puro-sangue. Nos meios comunistas brasileiros, atulhados de intelectuais pequeno-burgueses, a chegada de um genuíno líder operário recém-importado diretamente do ABC foi uma lufada de ar fresco, uma festa e um anúncio de melhores dias.
Em contraste com o sr. Villa, quem estudou a história do comunismo deve lembrar-se da figura do general Fernando Flores Ibarra, um dos líderes máximos da Revolução Cubana, amigo íntimo e homem de confiança de Fidel Castro, além de responsável maior pela matança de opositores, o que lhe rendeu o gentil apelido de “Charco de Sangre”.
Pois bem, Flores não entendia uma palavra de marxismo-leninismo, não conseguia sequer ler Marx e Engels e, rindo muito, até se gabava disso em público.
Se um exemplum in contrarium não basta para impugnar a validade de um modelo geral, cabe lembrar o papel essencial desempenhado, no movimento comunista da África do Sul, por hordas de trabalhadores recém-egressos do meio tribal, que um historiador descreveu como “incultos, mas possuidores de um elevado senso de solidariedade comunista” (A. B. Davidson, South Africa and the Communist International: Bolshevik Footsoldiers to Victims of Bolshevisation, 1931-1939, Psychology Press, 2003).
“Inculto, mas possuidor de um elevado senso de solidariedade comunista” é quase uma descrição literal do Lula. Foi ele quem, atravessando toda sorte de crises internas, conseguiu criar e salvar sempre a unidade do seu partido, depois a de um pool de partidos aliados sem afinidade ideológica nenhuma, por fim a da esquerda latino-americana inteira.
Não há militante que, ouvindo-o dizer “Companheiros!” não se sinta incluído no grande abraço solidário de uma imensa comunidade combatente.
Um líder político não se julga pelo seu grau de cultura letrada, nem pelas suas convicções íntimas, que permanecem para sempre impenetráveis, mas pelas forças históricas reais que ele encarnou e às quais imprimiu indelevelmente a sua marca pessoal.
Quando Barack Hussein Obama disse de Lula “Esse é o cara!”, ele sabia que estava diante da imagem suprema do comunismo latino-americano.
Após ouvir as ponderações de tarimbados comunistas alemães sobre o fracasso do socialismo chileno, Roberto Ampuero escreveu:
“Convenci-me então de que a esquerda chilena tinha sido guiada por políticos amadores e irresponsáveis, por marxistas de salão afetados de incontinência verbal, por ideólogos capazes de persuadir o seu país a dar um salto no vazio, por líderes incapazes de desenvolver um projeto viável e sustentável.”
O mesmíssimo diagnóstico aplica-se com perfeição ao governo João Goulart: bravatas, radicalismo verbal histérico, inabilidade de concentrar poder por meio de alianças e negociações – precisamente as falhas das quais não se pode acusar o sr. Lula.
A imagem que o sr. Villa e similares têm do comunista típico corresponde precisamente à daquilo que os comunistas de verdade chamam de “marxista de salão”.
Daí deriva um segundo erro monumental na imagem que pintam do sr. Lula. Poucas coisas neste mundo me irritam, mas uma delas é ouvir esquerdistas e direitistas – sempre unânimes na estupidez – dizerem que “Lula traiu seus  ideais”.
Uns tentam, com esse artifício verbal, salvar a honra da esquerda, maculada pelo descrédito atual do líder.
Os do outro lado nem percebem que os ajudam nisso ao medir o chefe do Mensalão na régua dos seus próprios valores proclamados, danando a reputação dele mas consagrando esses valores como medida absoluta das ações humanas e concedendo ao adversário uma vitória ideológica geral duradoura em troca de uma vantagem pontual momentânea.
Em ambos os casos, é puro fingimento histérico: uns e outros não raciocinam a partir dos fatos e da História, mas das impressões que desejam incutir na platéia, das quais, para maior verossimilhança do efeito, tratam primeiro de imbuir-se a si próprios. Não são analistas políticos, são marqueteiros, interessados apenas nos resultados imediatos, totalmente insensíveis aos fatores de longo prazo.
Para quem raciocina com base no estereótipo do “idealismo comunista” – uma autoprojeção do espírito pequeno-burguês que nada tem a ver com a realidade dos partidos comunistas –, parece lógico que, se um político de esquerda vai para cama com grandes capitalistas, comete adultério, macula a pureza dos seus “ideais”.
Na história real do movimento comunista, ao contrário, todo idealismo é considerado uma debilidade pequeno-burguesa, e a recusa de fazer alianças necessárias à concentração de poder um pecado mortal.
“Se você tem quatro inimigos – dizia Lênin –, alie-se com três contra o quarto, depois com dois contra o terceiro, depois com um contra o segundo.”
Quanto à intimidade com o grande capital, Stálin, nos anos 30, recomendava ao partido comunista dos EUA que deixasse de lado os proletários e tratasse de conquistar os corações e mentes dos ricos e importantes (V. Stephen Koch, Double Lives).
Foi isso o que mais tarde garantiu à URSS o afluxo de dinheiro americano com que se construiu o parque industrial bélico soviético em tempo de reagir com sucesso à invasão alemã.
Concentrar poder por todos os meios possíveis Como o rótulo de “intelectual de esquerda” já esteve associado a escritores do porte de um Álvaro Lins e de um Sérgio Milliet, é bom advertir que, usado hoje em dia, ele só guarda com o seu objeto a relação distante de um ser vivo com a sua miniatura de plástico.
Nesse sentido, o sr. Mauro Luís Iasi corresponde aproximadamente àquilo que, nos meios comunopetistas, se entende por esse termo na atualidade.
Não lhe faltam, com efeito, os traços essenciais que definem o tipo: um cargo acadêmico, o total desconhecimento dos assuntos em que pontifica e a presunção de superioridade moral, quando não intelectual.
Até pouco tempo atrás, ele não passava de um objeto de consumo interno dos círculos esquerdistas, mas recentemente alcançou notoriedade mais ampla, não mediante algum feito literário ou científico, mas graças à sua proposta singela de matar todos os direitistas.
Como alguns deles lhe respondessem que seria melhor aplicar esse remédio a ele mesmo, ele imediatamente considerou isso uma prova a mais da típica truculência direitista em confronto com o arraigado pacifismo humanista da esquerda, sem nem sequer ponderar a diferença entre os coeficientes de truculência requeridos para matar um só e para matar todos.
Com aqueles ares de inocência ofendida sem os quais é muito difícil subir na vida hoje em dia, ele explicou ainda que foi muitíssimo mal interpretado, que seu desejo de matar não era nada disso, mas uma simples metáfora poética extraída de um texto de Bertolt Brecht, no qual um proletário enragé, discutindo com um burguês, demonstra que matá-lo é apenas uma questão de justiça.
“Para aqueles que não são muito afeitos a poemas e outras manifestações da alma humana, — escreve o sr. Iasi, com infinita piedade pelos pobres ignorantes — é bom explicar que não se trata de uma pessoa e outra conversando, muito menos uma posição pessoal. É uma metáfora de um encontro de classes numa situação dramática, na qual a classe dominante se encontra diante da possibilidade de ser julgada por aqueles que sempre explorou e dominou.”
O estilo é o homem. Desde logo, no trecho citado o que o proletário sugere não é apenas “julgar” a burguesia, isto é, emitir uma opinião sobre ela, mas sim executá-la, mandá-la para o outro mundo. A versão eufemística do sr. Iasi não consegue camuflar o sentido patente do texto. Diante do burguês que se afirma um homem bom e justo, o revolucionário promete:
“Em consideração aos seus méritos e boas qualidades, poremos você diante de um bom muro, atiraremos em você com uma boa bala de um bom revólver e enterraremos você com uma boa pá numa boa terra.”
ASSISTA AQUI:
O revolucionário promete não apenas matar o burguês, mas humilhá-lo post mortem fazendo chacota do seu cadáver. O sr. Iasi confessa que conheceu o poema de Brecht só pela citação que encontrou  num livro de Slavoj Zizek, mas quem leu as obras do dramaturgo sabe que esse tipo de humorismo sardônico voltado contra as vítimas da violência estatal comunista era um dos traços mais característicos do estilo brechtiano de escrever e de ser. Brecht não só aplaudiu entusiasticamente as tropas soviéticas que afogaram num banho de sangue a rebelião popular berlinense de 1953, mas, quando alguém alegou que os condenados nos famosos Processos de Moscou eram inocentes, ele respondeu: “Se eram inocentes, tanto mais mereciam ser fuzilados.”
A ironia macabra não era força de expressão. Para a mentalidade comunista, a culpa ou inocência pessoais do acusado eram, de fato, detalhes menores em comparação com a oportunidade áurea de afirmar, mediante a prepotência da execução arbitrária, a autoridade suprema da Revolução, que não devia satisfações a ninguém senão a si mesma.
A metáfora, se o fosse, não era muito metafórica. Citar Brecht no contexto de um apelo à radicalização da luta esquerdista não é de maneira alguma um adorno literário inocente: é sugerir que os comunistas façam aquilo que Brecht os ensinava a fazer e que aliás eles sempre fizeram.
Mas, para piorar um pouco as coisas, não é uma metáfora. Metáfora é quando uma coisa significa outra coisa, por exemplo o leão significa o Sol ou o Sol significa o rei. Entre o signo e o significado há  uma diferença de espécie. Quando o sr. Iasi explica que “não se trata de uma pessoa e outra conversando, muito menos uma posição pessoal” e sim de “uma metáfora de um encontro de classes numa situação dramática”, ele só prova que não sabe o que é metáfora.
Na figura de linguagem que ele emprega, o proletário e o burguês não significam coisas de outras espécies, mas sim as espécies respectivas a que eles realmente pertencem: o proletário significa o proletariado, o burguês a burguesia. Isso não é uma metáfora de maneira alguma, é uma metonímia – não uma relação analógica entre coisas especificamente distintas, mas a relação lógica entre a parte e o todo. O sentido do trecho citado não é portanto o de uma ameaça de homicídio, mas de genocídio: não é este proletário que deve matar este burguês em particular, mas o proletariado como um todo que deve exterminar a burguesia inteira.
Já é uma palhaçada deprimente que um sujeito que ignora a distinção elementar entre metáfora e metonímia pose de grande conhecedor da literatura e se dirija aos seus leitores como a um bando de iletrados que “não são muito afeitos a poemas”. Porém mais grotesco ainda é que, ao tentar dar à sua convocação truculenta os ares inofensivos de uma “metáfora poética”, ele não percebesse que, com a ajuda de Brecht, estava confessando seu desejo de saltar da escala do homicídio para a do genocídio.
Raramente uma tentativa de fazer-se de coitadinho  resultou tão flagrantemente numa confissão de culpa ampliada. Por isso é que, quando me perguntam se alguém é comunista por burrice ou por maldade, respondo que é por uma união indissolúvel das duas coisas. Nada emburrece mais do que o esforço contínuo de camuflar a própria maldade sob um travesti de inocência ofendida. E ninguém se dedica a esse esforço com mais persistência do que os comunistas.e imagináveis, inclusive mediante alianças com o “inimigo de classe”, é a obrigação número um de todo líder comunista. O sucesso que Lula obteve por esse meio é indiscutível. E é preciso ser uma espécie de PhD em idiotice para medir o coeficiente de comunismo na mente de um político com a régua de um estereótipo moralista pequeno-burguês.
Mais idiota ainda é recusar-se a chamar um comunista de comunista enquanto ele não declarar que o é. Pois nada mais constante, na história do comunismo, do que a sua persistência em parecer outra coisa, em adornar-se com outros nomes: Front Popular, antifascismo, terceiromundismo, “não alinhados”, progressismo, trabalhismo, desenvolvimentismo, o diabo.
Porém o suprassumo da  cretinice é contestar a fidelidade de Lula ao comunismo mediante a alegação de que é um larápio, um corrupto.
Qual grande líder comunista não o foi? Qual não viver como um nababo enquanto seu povo comia ratos? Qual partido comunista subiu ao poder sem propinas, sem desvio de dinheiro público, sem negócios escusos, sem roubo e chantagem? Nada mais desprezível, nos meios comunistas, do que o moralismo pequeno-burguês que se apega às regras da decência formal em vez de seguir a moral marxista segundo a qual o bem é o que aumenta o poder do Partido, o mal o que o diminui.
Corrupção? Ninguém expressou melhor a atitude comunista quanto a esse ponto do que o poeta oficial do Partido Comunista francês, Louis Aragon: “Corromperemos o Ocidente a tal ponto, que ele vai começar a feder.” Ninguém encarnou melhor esse propósito do que Luís Inácio Lula da Silva.
Pelo critério das ações objetivas, Lula entrará para a história como o grande salvador e unificador não só da esquerda brasileira, mas do movimento comunista latino-americano, que sem ele teria ido para a lata de lixo na década de 90, como bem observou o comando das Farc em mensagem enviada ao décimo-quinto aniversário do Foro de São Paulo.
Lula pode não entender grande coisa de economia marxista, mas em matéria de estratégia e tática foi o maior dos maiores, um autêntico mestre da duplicidade dialética .
Chegou ao cume com uma habilidade impressionante, que o próprio Lênin aplaudiria, e cumpriu seu papel na transição revolucionária, instaurando a hegemonia, a concentração poder político e econômico e o aparelhamento do Estado. Quem, na América Latina inteira, conseguiu fazer mais?
Perto dele, Luís Carlos Prestes e Carlos Marighela foram apenas amadores trapalhões, especialistas em fracasso.
Comparem-no, até, com Fidel Castro. Após um começo espetacular, o ditador cubano, desde o fiasco da OLAS com suas guerrilhas, se encolheu à condição de reizinho de um povo faminto e esfarrapado.
Esquecido do mundo, encalacrado na sua ilha, frustradas todas as suas ambições de revolução continental, teria morrido entre espasmos de revolta impotente se Lula não o salvasse do isolamento mediante a idéia genial do Foro de São Paulo, que realizou precisamente o que o generalíssimo jamais conseguiu: elevar ao poder os partidos comunistas e pró-comunistas nos principais países da América Latina.
Não é de estranhar que essa construção tão laboriosamente erigida começasse a desabar justamente no instante em que Lula se retirou da presidência da República, deixando no seu lugar uma trapalhona autêntica, e, debilitado pela velhice e pelas acusações de corrupção, desacelerou suas atividades no Foro de São Paulo para dedicar tempo integral à crise da esquerda local e aos seus próprios problemas com a Justiça. Sem ele, a esquerda latino-americana tem os dias contados. Todas as suas glórias foram obra dele, e sem ele vão para o beleléu.
De longe, e sob todos os aspectos, Lula foi o maior e mais eficiente líder comunista que a América Latina já conheceu – o criador e guru de Chávez, Maduro, Morales e tutti quanti, o articulador da estratégia unificada continental. A direita jamais conseguiu derrotá-lo porque jamais conseguiu compreendê-lo. E não conseguiu compreendê-lo porque insistia em descrevê-lo com os chavões jornalísticos do dia, em vez de medi-lo na escala maior da História.
Nesse sentido, Lula foi, de todas as figuras públicas do Brasil recente, a mais digna de respeito. Não pelas suas virtudes morais, que inexistem, mas pela sua “virtù” no sentido maquiavélico do termo: uma vontade de ferro aliada a uma flexibilidade estratégico-tática totalmente desprovida de escrúpulos e capaz, por isso mesmo, de dobrar a seu talante o curso da História, levando-a para onde bem deseja, ante os olhos atônitos de adversários sonsos que não conseguem nem mesmo descrever o que ele está fazendo.
Não somente em escala nacional, mas continental, o homem que nada sabia de marxismo conseguiu realizar o objetivo de Antonio Gramsci, elevando o seu partido às dimensões de “um poder onipresente e invisível como o de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.
Ninguém, na política brasileira ou continental dos últimos quarenta anos, pode se ombrear com ele em envergadura, em capacidade de ação eficaz, em amplitude das ambições realizadas.
Os que empinam os narizinhos para depreciá-lo são como pulgas que criticam o cachorro que as transporta, sem saber para onde as leva.
Sim, ele merece respeito.  No mínimo, é como num filme que vi há tempos, cujo título me escapa, no qual o líder local de uma aldeia mexicana era tão temido e respeitado que todos o chamavam de “El Mayor”. E só na intimidade, a uma distância segura dos ouvidos do tirano, ousavam declarar o nome por extenso: “El Mayor Hijo de Puta”.

Cretinices gramscianas (II)

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 7 de junho de 2015          

A teoria embutida no espaço entre o fato e a generalização que Gramsci dela extrai é a própria teoria gramsciana da hegemonia, segundo a qual a cultura reinante em qualquer época ou lugar é o instrumento pelo qual a classe dominante impõe sua ditadura mental a toda a população.
Interpor uma teoria entre os fatos e a conclusão, em vez de esperar que a própria acumulação de fatos sugira a conclusão, já é trapaça suficiente para desmoralizar qualquer teorizador.
Mas a teoria da hegemonia ultrapassa os últimos limites da vigarice razoável e tenta nos fazer engolir como realidade universal e constante algo que é uma impossibilidade material pura e simples.
Essa impossibilidade já estava presente na teoria marxista da “ideologia de classe”, da qual a “hegemonia” gramsciana é um prolongamento.
Se cada classe tem uma ideologia que é a expressão idealizada dos seus interesses materiais, então, das duas uma: ou cada um dos seus membros está atrelado de uma vez para sempre à ideologia da sua classe como se fosse uma segunda natureza; ou, ao contrário, pode abjurar dela e aderir à ideologia de outra classe, como fez, ou acreditava fazer, o próprio Karl Marx.
Só que neste caso não há mais conexão orgânica entre classe e ideologia; tudo se torna uma questão de livre escolha e não há mais “ideologia de classe” nenhuma, só a ideologia que cada indivíduo, livremente, atribui à sua classe ou a uma outra qualquer, conforme a interpretação que faça dos interesses desta ou daquela.
Gramsci agrava formidavelmente a situação ao declarar que quem produz a ideologia não são propriamente os membros de cada classe, mas sim os “intelectuais” que a representam sem ter de pertencer necessariamente a ela.
Esses representantes são “intelectuais orgânicos” da burguesia e do proletariado. Mas, se o são sem precisar ser eles próprios burgueses ou proletários, a conexão entre eles e a classe que representam não pode ser “orgânica” de maneira nenhuma e sim matéria de livre escolha, nada impedindo que um intelectual passe, ideologicamente, da “burguesia” para o “proletariado” (como Georg Lukács) ou vice-versa (Eric Hoffer, por exemplo).
Ademais, quem infunde nos intelectuais a “ideologia de classe”? Para que o burguês adestrasse intelectuais na ideologia burguesa seria preciso que ele, na condição de mestre, a dominasse melhor que os discípulos: esse burguês seria, então, um superintelectual, um intelectual dos intelectuais, o maître à penser da intelectualidade, reduzindo-a à condição de mera repetidora do discurso aprendido.
Mutatis mutandis, e piorando ainda mais as coisas, os “intelectuais orgânicos” do proletariado se tornariam meninos de escola operária, tomando lições de dialética hegeliana e materialismo histórico com professores pedreiros e ferramenteiros.
Essas situações caricaturais não existem na realidade, no mínimo porque o próprio Gramsci nos assegura que quem cria as ideologias das classes não são as próprias classes, e sim os intelectuais.
Nem poderia ser de outra forma. No mínimo a transposição de interesses materiais numa linguagem de valores, ideias e teorias requer um considerável treinamento especializado nas áreas de filosofia e ciências humanas, que nem um capitalista nem um operário poderiam adquirir nas horas vagas. (Sob esse aspecto é interessante comparar o gramscismo com a teoria da “violência simbólica” de Pierre Bourdieu, outro ídolo, ainda que menorzinho, da intelectualidade esquerdista; (leia aqui e aqui).
Mas, então, nem a ideologia proletária é proletária nem a burguesa é burguesa: são ambas puras criações de intelectuais, que as atribuem a esta ou àquela classe, sem precisar consultá-las, conforme interpretem livremente os “interesses” de cada uma. Não é coincidência, pois, que Karl Marx já tivesse descrito a “ideologia proletária” inteira antes de ter visto de perto um único proletário.
Na melhor das hipóteses, o burguês e o proletário se tornam “tipos ideais” que existem apenas na cabeça do intelectual para fins de comparação com personagens reais que só se parecem com eles de maneira longínqua e esquemática.
Gramsci não admite explicitamente essa conclusão inevitável da sua teoria, mas, como quem não quer nada, extrai dela uma consequência prática que, para o bom entendedor, já denuncia a falácia da construção inteira.
Quem cria as ideologias de classe? Os intelectuais. Quem, com base nela, cria a hegemonia, o controle geral do pensável e do impensável? Os intelectuais. Quem lidera a revolução? Os intelectuais. Quem assume o poder por meio da revolução? Os intelectuais.
Burgueses e proletários são, no fim das contas, apenas os emblemas dos times em jogo. É de espantar que no paraíso burguês os burgueses sejam esfolados com impostos, induzidos a financiar filmes e shows que os demonizam e a contribuir com rios de dinheiro para organizações esquerdistas que prometem matá-los?
É de espantar que no paraíso proletário os proletários sejam submetidos a condições de trabalho escravo, privados do direito de greve, removidos de um lugar para outro sem poder reclamar, policiados vinte e quatro horas por dia e obrigados a entoar cânticos de glória ao Supremo Intelectual e Guia dos Povos?
Tudo não passa, então, de uma disputa de poder entre dois grupos de intelectuais, cada um defendendo os interesses que atribui a uma classe à qual não tem de pertencer e que na maior parte dos casos não foi consultada a respeito.
O que é líquido e certo, embora Gramsci não o diga, é que os intelectuais orgânicos “da burguesia” não pretendem tomar o lugar dela; quem o pretende são os outros, os “intelectuais proletários”.
Nunca se viu um escritor apologista do capitalismo ansioso para deixar de lado seus afazeres intelectuais e tornar-se industrial ou especulador da bolsa. Em contrapartida, nenhum, absolutamente nenhum “intelectual proletário” que eu conheça planeja fazer a revolução proletária para depois continuar vivendo modestamente das suas funções de professor, jornalista ou pesquisador científico.
Tomar o poder e exercê-lo na máxima medida das suas possibilidades é a essência e missão da intelectualidade revolucionária. O que ela quer não é assumir o lugar da intelectualidade direitista, mas o da burguesia.
Isso torna evidente que, na maior parte dos casos, ela disputa o poder com um grupo que não o detém nem o deseja. Basta isso para explicar a inermidade estrutural da intelectualidade conservadora e liberal ante o avanço esquerdista.
É algo que não tem nada a ver com superioridade ou inferioridade intelectuais, mas com desejo ou falta de desejo de poder. Quando o sr. Lula sentenciou que seus inimigos “não tinham perspectiva de poder”, acertou na mosca.
Para completar a fantasia com um toque de alucinação, Gramsci admite que nem todos os intelectuais participam conscientemente da “luta de classes”. Alguns – em geral a maioria deles – são indiferentes à política e se satisfazem com suas ocupações filosóficas, científicas ou artísticas, sem se preocupar em saber quem isso vai favorecer nas próximas eleições.
A esse grupo Gramsci denomina “intelectuais tradicionais”, acrescentando que são neutros e apolíticos só em imaginação, por falsa consciência; na verdade são servos inconscientes do status quo tanto quanto os intelectuais orgânicos “burgueses”.
Ou seja: os “intelectuais proletários” estão em perpétua disputa de poder não somente com intelectuais orgânicos burgueses que não aspiram ao poder, mas com toda uma comunidade intelectual que não quer nem saber da existência dessa disputa.
A consequência disso, do ponto de vista cognitivo, é devastadora: o intelectual esquerdista explica toda a sociedade como uma projeção inversa dos seus próprios valores e metas, pouco lhe importando a auto explicação que os demais grupos e indivíduos tenham a apresentar.
Para ele, a sociedade, a história, a existência humana inteira giram em torno do seu objetivo grupal, da sua luta pelo poder, que no seu entender move todo o restante como o cão abana a cauda. Ele, em suma, é o fator ativo, o criador da História, a única realidade efetiva: todo o resto da humanidade são sombras que se mexem à sua voz de comando.
É uma visão horrivelmente autocêntrica, solipsista, psicótica mesmo, que se espalha com facilidade entre estudantes universitários pelo simples fato de que é a mais reconfortante compensação neurótica do seu justo sentimento de inutilidade social.

***

Não é só na esquerda militante que o pensamento de Gramsci inocula o seu veneno alienador e estupidificante. Chego a pensar que basta admirá-lo um pouquinho, suspender o juízo crítico por uns instantes, para que algo do besteirol gramsciano entre e permaneça para sempre.
Por ocasião de um de seus últimos chiliques anti-olavéticos, cuja razão de ser escapa ao entendimento humano, o sr. Marco Antônio Villa, na ânsia doida de exaltar tudo o que critico, chegou a proclamar que a subsistência da democracia na Itália do pós-guerra foi obra do gramscismo imperante no Partido Comunista Italiano.
É com certeza a coisa mais burra que já saiu da boca de um pretenso historiador. Raiva descontrolada é vexame na certa. O regime democrático só sobreviveu na Itália graças à derrota acachapante que, contra todas as previsões iluminadas, a Democracia Cristã de Alcide De Gasperi, mobilizando o apoio de toda a população católica na primeira eleição geral realizada após a queda do fascismo, impôs em 18 de abril de 1948 ao Front Popular comunista, que desde então foi saindo do cenário político, por etapas sucessivas, para a lata de lixo da História.
Se o sr. Villa quiser alguma bibliografia sobre o assunto, posso lhe fornecer, mas só se ele pedir com jeito.

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