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Gerenciando os danos

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de maio de 2015

          

No último programa da Joice Hasselmann, o sr. Marco Antonio Villa, sem citar o meu nome, já que não é homem para isso, voltou a chamar-me de “embusteiro”, “171” e coisas similares, desta vez por ter atribuído ao dramaturgo comunista Bertolt Brecht a seguinte frase, dita a propósito dos condenados nos Processos de Moscou: “Se eram inocentes, tanto mais mereciam ser fuzilados.”
Brecht, segundo Villa, jamais disse isso.
É tudo invenção minha. Infelizmente, o episódio é testemunhado pelo filósofo Sidney Hook na página 493 do seu livro de Memórias, Out of Step. An Unquiet Life in the 20th. Century (New York, Carrol& Graf, 1987) e, segundo Paul Johnson – em Intellectuals, página 190 da edição de 2007 da Harper Perennial (agradeço ao Filipe G. Martins este lembrete) –, foi confirmado por outra testemunha, o prof. Henry Patcher, da City University.leia
O leitor pode verificar por si mesmo nas imagens que acompanham este artigo.
Novamente fica esclarecido quem é o embusteiro.
Mas o embuste do qual o sr. Villa fez a sua especialidade profissional não teria maior relevância se consistisse apenas em mentir contra alguém do qual ele sabe praticamente nada e que nunca lhe fez mal nenhum.
Birras individuais sem motivo, mesmo quando levam a obsessões difamatórias, são matéria para consultórios de psicoterapia, não para discussão pública.

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Mas o anti-olavismo espumante do sr. Villa não é uma loucura sem método. Há nele toda a racionalidade perversa de uma estratégia política calculada para montar na onda da revolta popular antipetista e, esvaziando-a de todo conteúdo ideológico, revertê-la no fim das contas em benefício da mesma “revolução gramsciana” que criou o PT, o instaurou no poder e o dotou de todos os meios de mentir, trapacear e roubar sem jamais ser punido.
Muito antes de que o sr. Villa entrasse em cena, eu já havia mostrado essa estratégia em ação no Brasil (leia aqui e aqui).
Trata-se do velho artifício esquerdista de limpar-se na sua própria sujeira. Quando crimes e iniquidades longamente negados e explicados como invencionices da “imprensa burguesa” crescem ao ponto de se tornar impossível escondê-los, a esquerda rouba de seus adversários o discurso de denúncia, num esforço tardio e desesperado, mas não raro bem-sucedido, de saltar do banco dos réus para a tribuna dos acusadores.
O procedimento retórico empregado nessa operação é sempre o mesmo: reconhecer os delitos, mas atribuir sua culpa à “direita”, passando a chamar retroativamente de direitistas os mesmos líderes que durante décadas a esquerda em peso reconhecera como as personificações quintessenciais do mais puro esquerdismo.
Se fizeram isso até com Stálin – e, na França de 1968, com o Partido Comunista inteiro – por que não haveriam de fazê-lo também com Lula, na hora do aperto?
Se já esboçaram reações desse tipo em 2004 e 2006, quando os escândalos eram ainda incipientes, por que não haveriam de reencená-las, com mais ênfase ainda, no momento em que os feitos do PT se revelam, aos olhos do povo, como recordes mundiais de corrupção dignos de figurar no Guiness?
Para desempenhar sua parte no empreendimento, o sr. Villa faz das tripas coração para persuadir a plateia a engolir duas mentirinhas bobas nas quais nem ele mesmo acredita:
Primeira: Nem Lula nem o PT têm nada de comunistas. Lula não passa de um direitista empenhado em defender o grande capital.
Segunda: Só quem pode e deve fazer algo contra o descalabro petista são as “nossas instituições democráticas”: o Congresso e o sistema judiciário. As massas que tratem de refrear seus impulsos belicosos e de obedecer a seus “legítimos representantes”. Tudo o que vá além desse limite é “saudosismo da ditadura”.
Comentarei aqui só a primeira delas, deixando a segunda para um artigo vindouro.
Com o objetivo de sustentar a tese do direitismo petista o comentarista tem de estreitar propositadamente o seu horizonte de visão até que nada caiba nele além de um “esquema de corrupção” do qual se beneficiam, junto com o PT, alguns grandes grupos bancários e empresariais. Para fazer disso um “direitismo” é preciso operar no corpo da realidade alguns cortes drásticos, suprimindo:
(a) o fato de que o esquema tem financiado o crescimento das organizações de esquerda até o ponto em que só elas, e mais partido nenhum, podem apresentar candidatos à presidência;
(b) o fato de que as verbas do Estado brasileiro têm sido usadas generosamente para salvar o movimento comunista na América Latina e na África, injetando vida nova em regimes ditatoriais economicamente moribundos;
(c) o fato de que essas mesmas verbas alimentam o crescimento da “revolução cultural” gramsciana em todas as áreas da vida social, promovendo sistematicamente a derrubada dos valores que na perspectiva gramsciana representam a “ideologia burguesa”;
(d) o fato de que o dinheiro público fomenta o crescimento ilimitado de “movimentos sociais” criminosos, cada vez mais reconhecidos como entidades imunes à aplicação das leis.
E por aí vai. As vantagens financeiras que alguns banqueiros e empresários têm levado nesse esquema não são nada mais que as migalhas que o próprio Lênin recomendava atirar a uma burguesia idiota o bastante para abdicar de todo poder político próprio – e até de um discurso ideológico próprio – em troca de um dinheiro sujo que só serve para escravizá-la cada vez mais à liderança esquerdista.
É só suprimir esses fatos, e pronto: transferida a patifaria lulista para a “direita”, o público está preparado para contentar-se com um antipetismo higienizado, castrado, apolítico, incapaz de trazer qualquer dano às organizações de esquerda, mas bem capaz de salvá-las do desastre que elas mesmas criaram.
Tal é o antipetismo do sr. Villa e de outros iguais a ele: puro gerenciamento de danos.

Por linhas tortas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de abril de 2015          

Na vasta bibliografia sobre temas nacionais, especialmente a assinada por autores de esquerda, não há tópico mais abundantemente estudado, explorado, revirado de alto a baixo, do que “a revolução brasileira”. Perdão. É com maiúsculas: Revolução Brasileira.
Livros com esse título, ou com essa expressão no título, foram produzidos por Nelson Werneck Sodré, Franklin de Oliveira, Octávio Malta, Celso Furtado, Pessoa de Moraes, Guerreiro Ramos, Azevedo do Amaral, Jamil Almansur Haddad, Florestan Fernandes, Moisés Vinhas, Danton Jobim, Hélio Silva, José Maria Crispim, Celso Brant e uma infinidade de outros, sem contar aqueles, muito mais numerosos, que trataram do mesmo assunto sem ostentá-lo no título.
Pode parecer estranho o interesse quase obsessivo por esse fenômeno num país que não atravessou nenhuma experiência comparável às revoluções da França, da América, da Rússia, da Espanha ou mesmo do México, limitando-se a nossa sanha revolucionária, a escaramuças locais com derramamento de sangue relativamente modesto no ranking internacional.
No entanto, a referência naqueles títulos não é a nenhum episódio histórico em particular, grande ou pequeno. “Revolução brasileira”, na acepção geral que o termo assumiu numa longa tradição de “interpretações do Brasil”, designa algo como um rio que flui, uma história inteira, um processo intermitente na superfície, contínuo no fundo.
Na verdade, não houve um único grande acontecimento histórico que se pudesse chamar “Revolução Brasileira”. É a série inteira dos pequenos que leva esse nome, designando uma intenção, uma teleologia simbólica subjacente a todos eles: o processo pelo qual o povo, inicialmente um bando de desgarrados e escravos mantidos em obediência estrita sob o peso de uma clique de altos funcionários e senhores de terras (mais tarde banqueiros e capitães de indústria), vai aos poucos emergindo de um estado de passividade abjeta para tentar se tornar o senhor e autor da sua própria História, sempre com sucesso inferior às suas mais ambiciosas expectativas, e por isso mesmo fadado a repetir a tentativa de novo e de novo, em escala um pouco maior.
Contra quem se volta precisamente esse processo? Qual a “classe dominante” que se tenta remover de cima para dar espaço à iniciativa popular? As tentativas de defini-la em termos do marxismo ortodoxo, como “burguesia capitalista exploradora do proletariado”, falharam miseravelmente, tal a míngua de proletários e burgueses num país de poucas indústrias, onde a burguesia industrial só conseguiu ela própria algum espaço quando carregada no colo pela ditadura estatista, semifascista, de Getúlio Vargas.
Na verdade, os autores marxistas não conseguiram sequer entrar num acordo quanto às etapas iniciais e mais remotas do processo, anteriores à Independência, uns falando de “feudalismo”, outros de “capitalismo rural”, outros, ainda, propondo a teoria de uma formação socioeconômica sui generis, alheia às categorias usuais do marxismo, o “escravismo colonial”.
Quem melhor definiu o vilão da história, a meu ver, foi Raymundo Faoro, no clássico Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro (Globo, 1958; ainda prefiro a primeira edição à versão reescrita de 1974, mais volumosa).
Partindo de noções obtidas em Max Weber, Faoro redefinia a índole e os objetivos da Revolução Brasileira em termos mais adequados à realidade do que qualquer marxista teria podido fazer no lugar dele. E eu não conseguiria resumir sua tese com mais exatidão do que o fez Fábio Konder Comparato (leia aqui):
“Para Raymundo Faoro, a sociedade brasileira – tal como a portuguesa, de resto – foi tradicionalmente moldada por um estamento patrimonialista, formado, primeiro, pelos altos funcionários da Coroa, e depois pelo grupo funcional que sempre cercou o Chefe de Estado, no período republicano. Ao contrário do que se disse erroneamente em crítica a essa interpretação, o estamento funcional governante, posto em evidência por Faoro, nunca correspondeu àquela burocracia moderna, organizada em carreira administrativa, e cujos integrantes agem segundo padrões bem assentados de legalidade e racionalidade. Não se trata, pois, daquele estamento de funcionários públicos encontrável nas situações de ‘poderio legal com quadro administrativo burocrático’ da classificação weberiana, mas de um grupo estamental correspondente ao tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada. ”
O livro demorou para atrair a atenção pública, mas a segunda edição apareceu como uma balsa para os náufragos numa época em que, esfaceladas as guerrilhas, a esquerda brasileira buscava caminhos para a redemocratização do país e ansiava por um discurso que não soasse demasiado comunista aos ouvidos do governo militar – um esforço cujo primeiro resultado objetivo veio com a fundação do PT em 1980.
Faoro tornou-se quase espontaneamente o santo padroeiro do novo partido. Sua casa era frequentada assiduamente pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, que em 1989 chegou a convidá-lo, em vão, para ser candidato à vice-presidência.
Vestindo a camiseta faoriana de inimigo primordial da apropriação privada dos poderes públicos, o PT fez um sucesso tremendo nos anos 90, como denunciador-mor da corrupção nas altas esferas federais e promotor de uma vasta campanha pela “ética na política”, que resultou na quase beatificação do seu líder principal (quando Lula viajava pelas áreas mais pobres do Nordeste, doentes vinham lhe pedir que os curasse por imposição de mãos, como os reis da França).
Àquela altura, o partido parecia mesmo resumir e encarnar o espírito da “Revolução Brasileira”, com toda a expectativa messiânica embutida nesse símbolo. Daí a vitória espetacular de Lula na eleição de 2002.
Aconteceu – sempre acontece alguma coisa – que a liderança esquerdista em geral, e a petista em especial, não lia nem seguia só Raymundo Faoro. Desde os anos 60-70 lia com deleitação crescente os Cadernos do Cárcere e as Cartas de Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano e criador da estratégia comunista mais sutil e mais calhorda de todos os tempos: a “revolução cultural” a ser implementada mediante a “ocupação de espaços” em todos os órgãos da administração pública, da mídia, do ensino etc., para culminar no momento em que todo o povo seria socialista sem saber e o partido se tornaria “um poder onipresente e invisível”.
Se Faoro forneceu ao PT a sua identidade aparente e a base do seu discurso “ético”, foi Gramsci quem deu à agremiação a sua estratégia e as suas táticas substantivas. “Gramscismo sob pretextos faorianos” é uma expressão que resume perfeitamente bem a política do PT ao longo de toda a sua existência.
Nunca um partido teve tão bela oportunidade de colocar em prática uma estratégia estritamente comunista sob uma camuflagem weberiana tão insuspeita.
Tudo parecia perfeito. Diante de uma plateia sonsa, a quem a sugestão de que houvesse algum comunismo nisso soava como delírio de “saudosistas da Guerra Fria”, o partido foi “ocupando espaços” e concentrando poder até fazer da administração federal inteira – sem contar o sistema de ensino e a mídia – o instrumento servil dos seus objetivos privados.
Nenhum, nenhum dos seus guias iluminados notou que era impossível fazer isso sem que o partido se transformasse, ele próprio, no odioso e odiado “estamento burocrático”, com o formidável agravante de que, na ânsia de concentrar todo o poder em suas mãos, e sempre enleado na boa consciência de servir à causa da Revolução Brasileira, passou a roubar, trapacear e explorar o povo incomparavelmente mais do que todos os estamentos anteriores.
Faoro morreu em maio de 2003, quatro meses depois de Lula tomar posse no seu primeiro mandato, e não teve tempo de meditar, nem muito menos de alertar o PT, quanto ao desastre que a síntese artificiosa e perversa, o “faorogramscismo”, anunciava como desenvolvimento fatal do processo.
Inevitavelmente, os papéis se inverteram: transmutado por obra do gramscismo na encarnação máxima e mais cínica do “tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada”, o PT, quando por fim a população em massa se voltou contra ele, revoltada ante os maiores escândalos financeiros de todos os tempos, no fundo dos quais ela enxergava ainda que vagamente a premeditação gramsciana, viu-se perdido, desorientado, atônito, seus líderes ora escondendo-se no palácio como aristocratas assustados na Paris de 1789, ora tentando camuflar o medo mediante bravatas truculentas de um ridículo sem par.
Sim, a Revolução Brasileira está nas ruas. É ela, e não outro personagem qualquer. E veio com mais força do que nunca, brotando da pura espontaneidade popular, quase sem líderes (ou com tantos que se diluem uns aos outros), sem dinheiro, sem respaldo em partidos – o povo contra o “estamento burocrático”. Como diria o próprio alvo supremo da ira popular, “nunca ânftef na iftória dêfte paíf” esse povo demonstrou vontade tão firme e inabalável de ser seu próprio mentor e guia, de criar sua própria História, de mandar às favas todos os importantões e de calar de vez as bocas dos mentirosos. A começar pelas da sra. Rousseff e do sr. Lula.
Quem mandou o PT confiar nas falsas espertezas do gramscismo? Deus realmente escreve direito por linhas tortas.

Nunca ântef na iftória dêfte paíf…

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 2 de fevereiro de 2015

Reunindo aproximadamente um milhão de pessoas e repetindo-se em várias cidades de março a junho de 1964, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi o maior protesto de rua observado até então na nossa História – maior, provavelmente, do que muitos movimentos similares, com signo ideológico invertido, que viriam nas décadas de 80 e 90.

No entanto, é certo que, na origem, nada teve de popular ou espontâneo. Foi longamente planejada por um grupo de devotados conspiradores, com vasto apoio da grande mídia – a começar pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand (mais de oitenta jornais, estações de rádio e canais de TV em todo o país) -, de empresas bilionárias como o grupo Light, de vários governadores, deputados e senadores e de importantes organizações da sociedade civil, como a Liga das Senhoras Católicas, a ABI, a OAB, os sindicatos patronais em peso e a maioria do clero católico.

Não se pode dizer que foi propriamente um movimento popular, mas uma mobilização popular orquestrada pela elite, uma obra de engenharia política.
Pega de surpresa, derrubada sem que fosse preciso dar um só tiro, a liderança esquerdista saiu em debandada, com uma pressa obscena de salvar a pele, mas logo em seguida procurou redimir-se ao menos intelectualmente, entregando-se a uma séria revisão crítica dos seus erros estratégicos e planejando um retorno triunfal a longo prazo.

A mais oportuna contribuição individual a esse esforço foi a do editor Ênio Silveira, que, publicando em tradução as obras do fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci, e fundando duas revistas inspiradas nas concepções desse grande estrategista político (Civilização Brasileira e Paz & Terra), indicou aos comunistas e seus parceiros o caminho a seguir.

Esse caminho consistia em tomar do adversário, mediante longa, paciente e discreta infiltração, o comando das entidades capacitadas a organizar a mobilização popular. Roubar da direita, sem que esta percebesse, o monopólio da engenharia política.
As guerrilhas, concomitantemente, serviram apenas como “bois de piranha”, atraindo a atenção do governo para desviá-la da operação mais vasta e silenciosa que acabaria por mudar os destinos do país.

Partindo de uma base modesta, limitada ao movimento estudantil e a alguns sindicatos da região do ABC, os comunistas e filo comunistas foram dominando passo a passo a grande mídia, a OAB, a ABI, a Igreja Católica, etc.

Vinte anos decorreram antes que a aplicação do método gramsciano de “ocupação de espaços” produzisse o seu primeiro resultado espetaculoso: a campanha das “Diretas Já”, em 1984, formulada – de acordo com o preceito de Gramsci – numa linguagem puramente cívica, sem qualquer apelo comunista explícito. Oito anos depois, o movimento “Fora Collor” já vinha com um tom ideológico um pouco mais definido.

Essas duas campanhas seguiram fielmente o modelo organizacional da “Marcha da Família”, com ricas e poderosas entidades controlando a massa e construindo ex post facto, mediante as falsificações históricas usuais nesse tipo de coisas, o mito da “revolta popular”.

Tanto em 1964 quanto em 1984 e 1992, o povo brasileiro só entrou em cena como massa de manobra. A troca do pretexto ideológico não alterou em nada a substância do fenômeno, reduzido, em todos esses casos, a uma bem sucedida obra de manipulação arquitetada e dirigida desde cima.

Nada disso é o que se observa agora, seja na série de protestos anti-PT a partir de 15 de novembro do ano passado, seja na valente carreata dos caminhoneiros até Brasília.

Tudo começou, na verdade, da maneira mais impremeditada, espontânea e anárquica que se pode imaginar. Começou com a imprevista reação popular à fraude do “Passe Livre”.

O governo federal, interessado em desestabilizar a administração estadual de seu desafeto Geraldo Alckmin em São Paulo, contratou baderneiros Black Blocs e dúzias de Pablos Capilés para que, sob a desculpa ridícula e artificiosa de protestar contra um aumento ínfimo do preço das passagens de ônibus, saíssem pelas ruas posando de pobres espoliados, quebrando tudo, agredindo policiais, ateando fogo em carros e aterrorizando a população.

Mas a massa, em vez de se deixar atemorizar, aproveitou a ocasião para expressar sua verdadeira revolta, que não era contra o sr. Alckmin – pelo qual também não morria de amores, é claro – e sim contra o promotor mesmo da confusão: o governo federal ladrão, mentiroso, manipulador, parceiro íntimo de narcotraficantes, sequestradores e ditadores genocidas.

A massa anárquica, sem qualquer comando, organização ou programa ideológico, tomou de assalto as ruas, gritando mais alto que os agitadores e infundindo medo naqueles que tencionavam amedrontá-la.

Tão surpreso e assustado ficou o aprendiz de feiticeiro com o efeito inverso obtido pela sua mágica que, ponderando que “quanto mais mexe, mais fede”, chamou de volta os agitadores pagos e ordenou que permanecessem quietinhos em suas casas, aguardando que o dragão despertado por acidente se esquecesse de tudo e voltasse a cair no sono.

Mas o dragão havia tomado gosto pela coisa. Vendo o governo trêmulo e inerme por trás de uma cortina de blefes e garganteios, saiu às ruas de novo e de novo, num “crescendo” que agora culmina no movimento dos caminhoneiros.

Ao longo de todos esses episódios, não se viu um só político à frente da massa, uma só empresa ou ONG bilionária subsidiando os revoltados, um só investidor estrangeiro oferecendo ajuda, um só partido político manifestando alguma solidariedade ou um só órgão de mídia noticiando os acontecimentos sem minimizá-los, distorcê-los pejorativamente ou achincalhá-los de maneira velada ou ostensiva.

A Rede Globo colaborou descaradamente com uma jogada maligna do governo ao espalhar a notícia falsa de que um acordo tinha sido firmado e os caminhoneiros tinham desistido da carreata.

Até mesmo o Canal Veja, tão odiado pelos petistas por noticiar frequentemente os escândalos financeiros do governo Dilma, não conseguiu falar dos caminhoneiros sem criticá-los por atrapalhar o trânsito nas estradas.

Em compensação, os moradores, os comerciantes das cidades do interior por onde passa a carreata, os pequenos proprietários rurais e uma infinidade de pessoas das classes sociais mais humildes correm para as estradas para aplaudir os caminhoneiros, oferecer-lhes comida e até dinheiro para a gasolina.
Passada de boca em boca, pessoalmente ou pela internet, as palavras-de-ordem emanam do povo e se espalham entre o próprio povo, enquanto, no topo da sociedade, uns rosnam de raiva impotente, tramando vingancinhas fúteis na pessoa do juiz Moro, que nada tem a ver com o movimento, outros fazem de conta que nada está acontecendo.

Este é, em quinhentos e tantos anos de existência do Brasil, o primeiro movimento autenticamente popular, espontâneo, nascido de baixo, sem comandantes chiques, sem estrategistas profissionais, sem interferência nem apoio das elites falantes, do beautiful people, do grande capital ou da grande mídia.

Se o sr. Lula tivesse um pingo da consciência social que alardeia, agora sim seria o seu momento de proclamar: “Nunca ântef na iftória dêfte paíf…”

Qualquer pessoa no uso perfeito das suas faculdades mentais percebe a diferença.
Um cientista social incapaz de notá-la, ou indisposto a reconhecê-la, revela uma dose de inépcia e de desonestidade que faz jus à sua expulsão vergonhosa e definitiva de toda profissão intelectual.

Esse é o caso, precisamente, do economista e ex-ministro, prof. Luiz Carlos Bresser Pereira, que, diante de fatos cujo sentido brada aos céus e só um louco negaria, não se vexa de assumir o papel desse  louco e atribuir a revolta popular ao “ódio que os ricos têm do PT”.

Que raio de sociologia é essa, em que caminhoneiros e carreteiros se tornam a elite milionária, e os donos da mídia chapa-branca os pobres e oprimidos?
No cérebro do professor, os estereótipos mais tolos da propaganda petista se impregnaram com tamanha força, que o impedem de enxergar – ou de admitir – aquilo que qualquer criança do interior está vendo com os olhos da cara.

Não há atitude mais vergonhosa para um intelectual do que prevalecer-se de glórias acadêmicas passadas – modestas, mas nem por isso irreais – para tentar insuflar numa mentirinha tola e já desmoralizada de antemão, um arremedo pífio de credibilidade.

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