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Foi um desastre

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 12 de janeiro de 2014

          

      Nenhum historiador, nenhum leitor informado pode conceber a grande literatura da primeira metade do século XX sem os nomes de G. K. Chesterton, Léon Bloy, T. S. Eliot, François Mauriac, Julien Green, Flannery O’Connor, Georges Bernanos, Paul Claudel, Miguel de Unamuno, Gerard Manley Hopkins, Graham Greene, Evelyn Waugh, Charles Péguy, Hugo von Hoffmansthal, Hermann Broch, Gertrud von Le Fort, Giovanni Papini, Giuseppe Ungaretti, Henrik Sienkiewicz, José Maria de Pereda. Que há de comum entre esses autores – e muitos outros que omiti? São todos escritores católicos, não só porque se assumiam publicamente como membros da Igreja, mas porque suas obras refletem os temas e preocupações que são mais tipicamente caros à alma católica, especialmente o pecado e a Graça. Por meio de seus livros, esses temas entravam na cultura superior da sua época e nas conversações pessoais de milhões de leitores tão naturalmente quanto os temas marxistas entravam por meio de Górki ou Brecht, os esotéricos de Hermann Hesse e W. B. Yeats, os psicanalíticos de Arthur Schnitzler, James Joyce ou Tennessee Williams, e assim por diante.
Não há exagero em dizer que durante esse meio século a experiência católica foi uma das principais, senão a principal força inspiradora da criatividade literária em todo o mundo Ocidental.
Esse florescimento da literatura católica, incomum mesmo em épocas anteriores mais acentuadamente cristãs, foi possível porque, alimentado pelo advento da chamada “psicologia profunda”, o interesse crescente das classes letradas pelo conhecimento da alma humana encontrava na disciplina tradicional do exame de consciência e da confissão um ambiente excepcionalmente favorável.
Nada é mais indispensável ao escritor de ficção do que a conquista daquela voz própria, pessoal no mais alto grau, que fala desde as impressões individuais diretas, e que definha instantaneamente tão logo o senso da experiência concreta é sufocado pela intromissão dos estereótipos e das “idéias gerais”.
A prática do catolicismo consiste muito menos em aderir intelectualmente a doutrinas do que em buscar, com a ajuda dessas doutrinas, um diálogo direto entre a alma do pecador e a única fonte possível da redenção. Todo fiel católico sabe que só perante Deus a alma alcança aquele patamar de sinceridade perfeita que a convivência entre os homens busca em vão imitar. Daí a vivacidade incomum, o penetrante realismo com que a experiência católica se transmuta em representação literária da vida.
Isso explica também por que, nas décadas que se seguiram ao Concílio Vaticano II, a grande literatura católica desapareceu e a mediana, que continua existindo, já não desempenha nem tem fôlego para desempenhar nenhum papel de relevo no mundo da alta cultura.
O Concílio, como se sabe, dividiu a Igreja. De um lado, os entusiastas do “aggiornamento”, ansiosos de conquistar a simpatia do mundo, prostituíram-se a um bom-mocismo esquerdista que pode lhes valer algum aplauso da mídia, mas que no reino da criação literária, onde a “guerra contra o clichê”, como a chamou Martin Ames, é o pão de cada dia, só pode resultar na autodestruição de todos os talentos.
O epitáfio do progressismo católico nas letras foi “Monsignor Quixote” (1982), onde, levado pelo desejo de fazer da mediocridade pomposa de um bispo esquerdista um símbolo de santidade autêntica, Graham Greene, que se notabilizara nas suas obras de ficção pela veracidade psicológica dos personagens, só provou aquilo que todo leitor de romances já sabia: que os estereótipos da moda são a criptonita do gênio literário.
Do outro lado, os tradicionalistas, marginalizados, perseguidos, rejeitados pela autoridade mesma que professavam obedecer, fecharam-se num estado de espírito combatente e rancoroso, que pode inspirar belas tiradas polêmicas, mas seca na raiz a imaginação romanesca. A mais alta personalidade literária dessa facção, o romancista canadense Michael O’Brien, continua produzindo obras dignas de atenção, mas quase sempre debilitadas, em mais ou em menos, por um impulso catequético demasiado ostensivo, que não catequiza ninguém precisamente porque não atrai os leitores não católicos. O que subsiste de literatura católica no mundo entra na categoria dos “interesses especiais”, o que é o mesmo que dizer: não tem voz no universo da alta cultura. Um raro sobrevivente, Walker Percy, nascido em 1919, falecido em 1990, pertence mais à época anterior.
É verdade que dois dos ficcionistas de maior sucesso nas últimas décadas são autores católicos: J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis. Mas ambos são escritores da primeira metade do século XX, apenas descobertos tardiamente pelo público geral graças às adaptações cinematográficas das suas criações.
Examinado na escala menor e local do Brasil, o processo torna-se ainda mais visível, a queda mais vertiginosa e deprimente. Sem mencionar pensadores e doutrinários, só na área de poesia e ficção, e contando apenas os maiores, tínhamos Augusto Frederico Schmidt, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Octavio de Faria, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Alphonsus de Guimaraens Filho. Tudo literatura católica. E hoje? Desde a morte de Bruno Tolentino, o nada seria infinitamente preferível ao que circula com esse rótulo.
Se é verdade que “pelos frutos os conhecereis” e que algo do estado de coisas na sociedade se pode apreender pelos altos e baixos da criação literária, então é preciso dar ao menos um pouco de razão aos tradicionalistas e reconhecer: o Concílio Vaticano II foi um desastre.

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