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Um discurso

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 25 de setembro de 2015

          

Nada ilustra melhor o estado de coisas numa sociedade do que a linguagem dos seus homens públicos. Aprendi isso com Karl Kraus e até hoje não vi esse critério falhar.
Num de seus últimos discursos, o comandante do Exército, general Eduardo Villas-Boas, afirmou que as Forças Armadas estão conscientes da atual “derrocada dos valores”, mas que sua missão é preservar acima de tudo a “estabilidade” e a “legalidade”.
Ora, se o poder instituído é ele próprio o agente principal da derrubada dos valores – coisa que ninguém mais pode razoavelmente negar –, preservar sua estabilidade é garantir-lhe os meios de continuar a demolir esses valores tranqüilamente, imperturbavelmente, impunemente, sob a proteção de fuzis, tanques e navios de guerra pagos com o dinheiro do povo que ele espolia e engana. É a estabilidade da destruição.
Não creio que essa fosse a intenção subjetiva do general, mas é o sentido objetivo que suas palavras adquirem no contexto real. Lido nessa perspectiva, seu discurso é mais uma amostra do emocionalismo psitacídeo em que se transformou a fala brasileira nas últimas décadas, no qual as palavras valem pelas nuances emotivas associadas diretamente ao seu significado dicionarizado, independentemente dos fatos e coisas a que fingem aludir. Em termos de linguística, o significado usurpa o espaço do referente, que desaparece nas brumas da inexistência.
Quando à segunda expressão, “legalidade”, ela não tem nada a ver com a ordem legal substantiva, já destruída há tempos e que só subsiste na função de referente suprimido: ela visa apenas a marcar a diferença entre os militares de hoje e os de 1964, exigência indispensável do código “politicamente correto” contra o qual o general havia acabado de resmungar umas palavrinhas desprovidas de qualquer efeito objetivo até mesmo sobre o seu próprio discurso.
O general Villas-Boas não é nenhum imbecil e com certeza não é um homem desonesto. O que caracteriza o presente estado de coisas é precisamente que até os homens honestos e inteligentes começam a falar na linguagem dos cretinos e cretinizadores, pelo simples fato de que já não há outra disponível.
A finalidade dessa linguagem é construir aquilo que Robert Musil e, na esteira dele, Eric Voegelin, chamavam de “Segunda Realidade”, uma espécie de mundo paralelo feito inteiramente de significados dicionarizados e sem nenhum fato ou coisa dentro. Uma vez removida para a Segunda Realidade, a mente humana já não serve como instrumento de orientação na realidade genuína, mas conserva apenas duas funções essenciais: o engano e o auto-engano, que passam a vigorar como “ações políticas”, com resultados previsivelmente bem distintos das intenções alegadas.
Os dois milhões de manifestantes que foram às ruas protestar em março e setembro, com o apoio de 93% da população, diziam e berravam da maneira mais clara os nomes dos inimigos contra os quais se voltavam: PT e Foro de São Paulo. Centenas de videos do youtube confirmam isso de maneira incontestável.
A Constituição Brasileira, Título I, Art. 1o., alínea V, parágrafo único, estabelece: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.” Que significa esse “ou diretamente”? Significa que os representantes eleitos, ocupantes do Executivo e do Legislativo,  são um “poder instituído”, o qual, por definição, não se sobrepõe jamais ao “poder instituinte”, a massa popular que o criou e que conserva o direito de suprimi-lo a qualquer momento pela sua ação direta.
Como, dos 7% que ainda apoiavam o governo àquela altura, 6% o consideravam nada mais que “regular”, o apoio substantivo de que ele desfrutava  era de apenas um por cento. Nunca um governo foi rejeitado de maneira tão geral e avassaladora. Com ele, eram rejeitados também os ajudantes diretos e indiretos que o mantinham no poder contra a vontade do povo: congressistas omissos, juízes cúmplices, mídia chapa-branca.
O povo, em suma, voltava-se frontalmente contra o “sistema” como um todo, sabendo-o aparelhado  a serviço do esquema comunolarápio e do Foro de São Paulo, a maior organização subversiva e criminosa que já existiu na América Latina, empenhada em colocar o roubo, o homicídio, o narcotráfico e a mentira em doses oceânicas a serviço da ambição de poder total, não só sobre o país, mas sobre o continente.
O termo “estabilidade” designa uma qualidade, não uma substância. Estabilidade é sempre de alguma coisa, isto é, de uma ordem ou sistema. Ora, nas passeatas de março e setembro havia claramente duas ordens ou sistemas em confronto.
De um lado, a ordem normal e constitucional, em que a maioria absoluta da nação, manifestando sua vontade de maneira direta e inequívoca, exigia o fim das entidades criminosas, PT e Foro de São Paulo. Do outro lado, o sistema federal de exploração, manipulação, roubo e auto-engrandecimento insano. De qual dessas duas ordens o general desejaria “manter a estabilidade”?
Ele não esclareceu esse ponto, que é a substância mesma do assunto nominal do seu discurso. Preferiu o adjetivo sem substantivo, como aliás é de praxe no Brasil de hoje. Acredita piamente ter dito alguma coisa porque a sua linguagem, coincidindo com os usos gerais do dia, soa bem aos seus próprios ouvidos e aos de todos aqueles que não precisam da realidade, só de palavras.
Não creio ser demasiado pessimista ao prever que, enquanto os homens inteligentes e honestos continuarem falando na linguagem que os charlatães inventaram para seu exclusivo uso próprio, o Brasil continuará vivendo na Segunda Realidade, onde um governo criminoso apoiado por 1% da população constitui a “ordem”, e sua manutenção no poder por juízes e congressistas comprados é a única forma de “estabilidade” possível.

A destruição da inteligência

Olavo de Carvalho

Digesto Econômico, 14 de julho de 2014

Aprender, imitar e introjetar o vocabulário, os tiques e trejeitos mentais e verbais da escola de pensamento dominante na sua faculdade é, para o jovem estudante, um desafio colossal e o cartão de ingresso na comunidade dos seus maiores, os tão admirados professores.

A aquisição dessa linguagem é tão dificultosa, apelando aos recursos mais sutis da memória, da imaginação, da habilidade cênica e da autopersuasão, que seria tolo concebê-la como uma simples conquista intelectual. Ela é, na verdade, um rito de passagem, uma transformação psicológica, a criação de um novo “personagem”, apoiado no qual o estudante se despirá dos últimos resíduos da sentimentalidade doméstica e ingressará no mundo adulto da participação social ativa.

É quase impossível que essa identificação profunda com o personagem aprendido não seja interpretada subjetivamente como uma concordância intelectual, ao ponto de que, no instante mesmo em que repete fielmente o discurso decorado, ou no máximo faz variações em torno dele, o neófito jure estar “pensando com a própria cabeça” e “exercendo o pensamento crítico”.

A imitação é, com certeza, o começo de todo aprendizado, mas ela só funciona porque você imita uma coisa, depois outra, depois uma infinidade delas, e com a soma dos truques imitados compõe no fim a sua própria maneira de sentir, pensar e dizer.

No aprendizado da arte literária isso é mais do que patente. O simples esforço de assimilar auditivamente a maneira, o tom, o ritmo, o estilo de um grande escritor já é uma imitação mental, uma reprodução interior daquilo que você está lendo. A imitação torna-se ainda mais visível quando você decora e declama poemas, discursos, sermões ou capítulos de uma narrativa. Porém nas suas primeiras investidas na arte da escrita é impossível que você não copie, adaptando-os às suas necessidades expressivas, os giros de linguagem que aprendeu em Machado de Assis, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Balzac, Stendhal e não sei mais quantos. Esse exercício, se você é um escritor sério, continua pela vida a fora. Quando conheci Herberto Sales – que Otto Maria Carpeaux julgava o escritor dotado de mais consciência artística já nascido neste país –, ele estava sentado no saguão do Hotel Glória com um volume de Proust e um caderninho onde anotava cada solução expressiva encontrada pelo romancista, para usá-la a seu modo quando precisasse. Já era um homem de setenta e tantos anos, e ainda estava praticando as lições do velho Antoine Albalat.[1] É assim, por acumulação e diversificação dos recursos aprendidos, que se forma, pari passu com a evolução natural da personalidade, o estilo pessoal que singulariza um escritor entre todos. T. S. Eliot ensinava que um escritor só é verdadeiramente grande quando nos seus escritos transparece, como em filigrana, toda a história da arte literária.

Em outros tipos de aprendizado, a imitação é ainda mais decisiva. Nas artes marciais e na ginástica, quantas vezes você não tem de repetir o gesto do seu instrutor até aprender a produzi-lo por si próprio! Na música, quantas performances magistrais o pianista não aprende de cor até produzir a sua própria!

Nas ciências e na tecnologia, o manejo de equipamentos complexos nunca se aprende só em manuais de instrução: o aluno tem de ver e imitar o técnico mais experiente, num processo de assimilação sutil que engloba, em doses consideráveis, a transmissão não-verbal. [2]

Por que seria diferente na filosofia? Compreender uma filosofia não se resume nunca em ler as obras de um filósofo e julgá-las segundo uma reação imediata ou as opiniões de um professor. É impregnar-se de um modo de ver e pensar como se ele fosse o seu próprio, é olhar o mundo com os olhos do filósofo, com ampla simpatia e sem medo de contaminar-se dos seus possíveis erros. Se desde o início você já lê com olhos críticos, buscando erros e limitações, o que você está fazendo é reduzir o filósofo à escala das suas próprias impressões, em vez de ampliar-se até abranger o “universo” dele. Erros e limitações não devem ser buscados, devem surgir naturalmente à medida que você assimila novos e novos autores, novos e novos estilos de pensar, pesando cada um na balança da tradição filosófica e não da sua incultura de principiante. Não seria errado dizer que, entre outros critérios, um professor de filosofia deve ser julgado, sobretudo, pelo número e variedade dos autores, das escolas de pensamento, das vias de conhecimento que abriu em leque para que seus estudantes as percorressem.[3]

Não é preciso mais exemplos. Em todos esses casos, a imitação é o gatilho que põe em movimento o aprendizado, e em todos esses casos ela não se congela em repetição servil porque o aprendiz passa de modelo a modelo, incorporando uma diversidade de percepções e estilos que acabarão espontaneamente se condensando numa fórmula pessoal, irredutível a qualquer dos seus componentes aprendidos.

Mas o que acontece se, em vez disso, o aluno é submetido, por anos a fio, à influência monopolística de um estilo de pensamento dominante, aliás muito limitado no seu escopo e na sua esfera de interesses, e adestrado para desinteressar-se de tudo o mais sob a desculpa de que “não é referência universitária”?

Se durante quatro, cinco ou seis anos você é obrigado a imitar sempre a mesma coisa, e ainda temendo que o fracasso em adaptar-se a ela marque o fim da sua carreira universitária, a imitação deixa de ser um exercício temporário e se torna o seu modo permanente de ser – um “hábito”, no sentido aristotélico.

É como um ator que, forçado a representar sempre um só personagem, não só no palco mas na vida diária, acabasse incapaz de se distinguir dele e de representar qualquer outro personagem, inclusive o seu próprio. Pirandello explorou magistralmente essa situação absurda na peça Henrique IV, onde um milionário louco, imaginando ser o rei, obriga os empregados a comportar-se como funcionários da côrte, até que eles acabam se convencendo de que são mesmo isso.

Toda imitação depende de uma abertura da alma, de uma impregnação empática, de uma suspension of disbelief em que o outro deixa de ser o outro e se torna uma parte de nós mesmos, sentindo com o nosso coração e falando com a nossa voz. Se praticamos isso com muitos modelos diversos, sem medo das contradições e perplexidades, nossa mente se enriquece ao ponto do nihil humanum a me alienum, daquela universalidade de perspectivas que nos liberta do ambiente mental imediato e nos torna juízes melhores de tudo quanto chega ao nosso conhecimento. Não é errado dizer que o julgamento honesto e objetivo depende inteiramente da variedade dos pontos de vista, contraditórios inclusive, que podemos adotar como “nossos” no trato de qualquer questão.

Em contrapartida, o enrijecimento da alma num papel fixo abusa da capacidade de imitação até corrompê-la e extingui-la por completo, bloqueando toda possibilidade de abertura empática a novos personagens, a novos estilos, a novos sentimentos e modos de ver.

Habituado a tomar como referência única o conjunto de livros e autores que compõe o universo mental da esquerda militante, e a olhar com temerosa desconfiança tudo o mais, o estudante não só se fecha num provincianismo que se imagina o centro do mundo, mas perde realmente a capacidade de aprendizado, tornando-se um repetidor de tiques e chavões, caquético antes do tempo.

Quem não sabe que, no meio acadêmico brasileiro, a receita uniforme, há mais de meio século, é Marx-Nietzsche-Sartre-Foucault-Lacan-Derrida, não se admitindo outros acréscimos senão os que pareçam estender de algum modo essa tradição, como Slavoj Zizek, Istvan Meszaros ou os arremedos de pensamento que levam, nos EUA, o nome de “estudos culturais”?

Daí a reação de horror sacrossanto, de ódio irracional, não raro de repugnância física, com que tantos estudantes das nossas universidades reagem a toda opinião ou atitude que lhes pareça antagônica ao que aprenderam de seus professores. Não que estejam realmente persuadidos, intelectualmente, daquilo que estes lhes ensinaram. Se o estivessem, reagiriam com o intelecto, não com o estômago. O que os move não é uma convicção profunda, séria, refletida: é apenas a impossibilidade psicológica de desligar-se, mesmo por um momento, do “eu” artificial aprendido, cuja construção lhes custou tanto esforço, tanto investimento emocional.

Justamente, a convicção intelectual genuína só pode nascer da experiência, do longo demorado com os aspectos contraditórios de uma questão, o que é impossível sem uma longa resignação ao estado de dúvida e perplexidade. A intensidade passional que se expressa em gritos de horror, em insultos, em afetações de superioridade ilusória, marca, na verdade, a fragilidade ou ausência completa de uma convicção intelectual. A construção em bloco de um personagem amoldado às exigências sociais e psicológicas de um ambiente ideologicamente carregado e intelectualmente pobre fecha o caminho da experiência, portanto de todo aprendizado subseqüente.

A irracionalidade da situação é ainda mais enfatizada porque o discurso desse personagem o adorna com o prestígio de um rebelde, de um espírito independente em luta contra todos os conformismos. Poucas coisas são tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade de um corpo docente.

No auge da alienação, o garoto que passou cinco anos intoxicando-se de retórica marxista-feminista-multiculturalista-gayzista nas salas de aula, que reage com quatro pedras na mão ante qualquer palavra que antagonize a opinião de seus professores esquerdistas, jura, depois de ler uns parágrafos de Bourdieu para a prova, que a universidade é o “aparato de reprodução da ideologia burguesa”. Aí já não se trata nem mesmo de “paralaxe cognitiva”, mas de um completo e definitivo divórcio entre a mente e a realidade, entre a máquina de falar e a experiência viva.

Se, conforme se observou em pesquisa recente, cinqüenta por cento dos nossos estudantes universitários são analfabetos funcionais[4] – não havendo razão plausível para supor que a quota seja menor entre seus professores mais jovens –,  isso não se deve somente a uma genérica e abstrata “má qualidade do ensino”, mas a um fechamento de perspectivas que é buscado e imposto como um objetivo desejável.

Não que a presente geração de professores que dá o tom nas universidades brasileiras tenha buscado, de maneira consciente e deliberada, a estupidificação de seus alunos. Apenas, iludidos pelo slogan que os qualificava desde os anos 60 do século XX como “a parcela mais esclarecida da população”, tomaram-se a si próprios como modelos de toda vida intelectual superior e acharam que, impondo esses modelos a seus alunos, estavam criando uma plêiade de gênios. Medindo-se na escala de uma grandeza ilusória, incapazes de enxergar acima de suas próprias cabeças, tornaram-se portadores endêmicos da síndrome de Dunning-Kruger[5] e a transmitiram às novas gerações. Os cinqüenta por cento de analfabetos funcionais que eles produziram são a imagem exata da sua síntese de incompetência e presunção.

 


Notas:

[1] V. Antoine Albalat, La Formation du Style par l’Assimilation des Auteurs (Paris, Alcan, 1901).

[2] V. sobre isso as considerações de Theodore M. Porter em Trust in Numbers. The Pursuit of Objectivity in Science and Public Life,  Princeton University Press, 1995, pp. 12-17.

[3] Digo isso com a consciência tranqüila de haver cumprido esse dever. Ao longo dos anos, introduzi no espaço mental brasileiro mais livros e autores essenciais  do que todos os corpos docentes de faculdades de filosofia neste país, somados aos “formadores de opinião” da mídia popular. Em vez de me agradecer, ou de pelo menos ter a sua curiosidade despertada pela súbita abertura de perspectivas, estudantes e professores, com freqüência, me acusaram de “citar autores desconhecidos” – dando por pressuposto que tudo o que é ignorado no seu ambiente imediato é desconhecido do resto do mundo e não tem a mais mínima importância.

[4] V. http://www.folhapolitica.org/2014/02/pesquisador-conclui-que-mais-da-metade.html.

[5] Efeito Dunning-Kruger: incapacidade de comparar objetivamente as próprias habilidades com as dos outros. “Quanto menos você sabe sobre um assunto, menos coisas acredita que há para saber.” V. David McRaney, You Are Not So Smart, London, Oneworld Publications, 2012, pp. 78-81.

A animalização da linguagem

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 6 de maio de 2013

          

No penúltimo estágio da degradação cultural, a linguagem perde toda referência aos objetos de experiência e se reduz a um conjunto de sinais de reconhecimento grupal. O que as pessoas dizem já não tem nada a ver com fatos e coisas de um “mundo” objetivo, mas expressa apenas o reflexo de simpatia ou antipatia com que os membros de um grupo distinguem os “de dentro” e os “de fora”. Quando o ouvinte de um discurso diz que “concorda” ou “discorda”, isso não significa que o conteúdo ouvido reflete ou nega os dados acessíveis da sua experiência real, mas apenas que o falante usou dos cacoetes de linguagem que parecem identificá-lo como um membro do grupo ou como um estranho, como um “amigo” ou “inimigo”. Desaparecido do horizonte o quadro externo que deve servir de mediador entre falante e ouvinte, o acordo ou desacordo entre estes baseia-se agora nos puros sinais de uma identidade coletiva automaticamente reconhecível, como, entre os cães e lobos, o cheiro dos seus genitais ou os resíduos da sua urina no chão. Os sinais sonoros ainda são os mesmos da linguagem humana, mas a regra semântica imanente é a da comunicação animal.

Mas também é claro que esse tipo de reconhecimento não pode expressar uma concordância no sentido profundo e etimológico dos corações que se encontram. Sentimentos pessoais não são signos lingüísticos, são dados de realidade, que, por isso mesmo, permanecem inacessíveis ao uniformismo dos códigos de reconhecimento. Seria mesmo inconcebível que uma modalidade de comunicação incapaz de apreender até os dados da experiência exterior e pública pudesse lidar com a matéria mais fina dos sentimentos individuais. Estes recuam para o subsolo do inconsciente e do inexpressável, o que torna ainda mais enfáticas e vigorosas, como compensação, as ostentações de afinidade grupal. O reflexo de aprovação ou repulsa é expresso com tanto mais feroz intensidade quanto menos corresponde à individualidade da experiência interior e quanto mais reflete apenas a ânsia de identificação com um grupo mediante a hostilidade ao grupo contrário.

Não é de espantar que, suprimida a possibilidade de expressar sentimentos pessoais autênticos, o código uniforme que os substitui e encobre apele, com freqüência crescente, à expressão direta e ostensiva dos impulsos sexuais, que nem por serem de uma repetitividade desesperadoramente mecânica deixam de simular, nesse novo panorama das relações humanas, a função outrora desempenhada pelas confissões íntimas. “Sair do armário”, “assumir-se”, exibir-se despudoradamente em palavras ou gestos, já nada tem de uma confissão: é a inscrição pública num grupo de pressão, premiada imediatamente por manifestações gerais de solidariedade.

O último estágio atinge-se quando esse tipo de comunicação se alastra para fora das conversações banais e debates de botequim e invade a esfera da linguagem “culta” dos jornais, dos debates parlamentares e das teses acadêmicas.

        Quase que obrigatoriamente, o que hoje em dia passa por “argumento”, nesses meios, é o chavão identificador que não procura impugnar as provas do adversário, nem mesmo seduzi-lo, mas apenas reiterar o apoio dos concordantes, fazer número, aumentar o poder de pressão mediante a ostentação de uma força coletiva unida, coesa, cada vez mais impaciente, cada vez mais intolerante. Ninguém debate para mostrar que tem razão, mas apenas para separar quem está do “seu” lado de quem está “do lado dos outros”. As discussões não têm mais objetos: só sujeitos.

        Quando, trinta anos atrás, o comunista chamava o inimigo de “reacionário”, isso correspondia a uma catalogação ideológica precisa, com traços discerníveis na realidade. Quando hoje a feminista enragée  ou o gayzista histérico clamam contra a “elite patriarcal conservadora e machista”, estão aludindo a uma entidade perfeitamente inexistente. A elite neste país, como aliás na Europa e nos EUA, é acentuadamente feminista e gayzista. Resíduos de machismo só subsistem nas classes mais baixas, e um autêntico conservadorismo moral só permanece vivo entre religiosos banidos dos ambientes chiques. Por que, então, atacar um dragão de papel? Precisamente porque é de papel. Nada reforça mais a unidade e a agressividade de um grupo odiento do que a investida fácil, barata e sem riscos contra um inimigo imaginário. De passagem, o inimigo real, o povo cristão, é pintado com as cores repulsivas da classe capitalista que o despreza e marginaliza. Se usassem de categorias sociológicas objetivas para descrever a situação, os inflamados próceres desses movimentos teriam de reconhecer que não lutam contra um poder discriminador, mas contra discriminados e perseguidos, gente sem chance na grande mídia, na carreira universitária e nas festas dobeautiful people. Seria terrivelmente desmoralizante. A linguagem dos sinais animais contorna esse perigo, sufocando a realidade sob o apelo histérico da identidade grupal.

       

***

        Se querem um exemplo de como ainda é possível, mesmo nesse estado de coisas animalizante, usar a linguagem no pleno sentido humano, tornando a realidade presente e fazendo-a falar por si mesma com eloqüência quase angélica, ouçam a pregação da advogada e pastora Damares Alves, da Igreja Batista, em http://www.youtube.com/watch?v=BKWc0sUOvVM, sobre a guerra de extermínio moral empreendida pelo governo petista, com a ajuda de grupos bilionários nacionais e estrangeiros, contra as crianças deste país. Mesmo feministas e gayzistas não podem ouvi-lo com indiferença. É, sem favor nenhum, o discurso mais importante e mais valioso proferido em português do Brasil no último meio século.

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