Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de outubro de 2011
Que os brasileiros vêm-se tornando um povo de egoístas cínicos não é nenhuma grande novidade. Mas no Estadão de 9 de outubro o prof. José de Souza Martins explica o fenômeno como reação coletiva à falta de liberdade que a nação sofreu no período militar. Teríamos passado, segundo ele, da repressão à esculhambação. Apelar tão resolutamente à metáfora hidráulica de fluxo e refluxo como princípio explicativo já é, em si, um delito mental que não se deveria perdoar num sociólogo, especialmente quando este vem com o título de “professor emérito”. O prof. Martins não recorreria a esse automatismo pueril se ele não lhe desse a oportunidade de cumprir o mandamento número um do Decálogo Uspiano: lançar a culpa de tudo, sempre e invariavelmente, na maldita ditadura.
Infelizmente essa intenção devota esbarra em alguns obstáculos invencíveis.
Metade da população brasileira tem menos de 30 anos e não pode ter sofrido nenhuma privação de liberdade num regime que terminou duas décadas e meia atrás. Só o que essa gente sabe da ditadura é o que lhe foi transmitido por professores, jornalistas e artistas de TV – os “intelectuais” no sentido elástico que Antonio Gramsci dá ao termo. O mau comportamento dos brasileiros não pode portanto ser uma reação direta a experiências de trinta ou quarenta anos atrás, mas o resultado da educação que receberam, das crenças e reações que aprenderam. Se alguém achou que as incomodidades sofridas no período militar justificavam a permissão para a busca irrefreada de satisfações egoístas como uma espécie de compensação psicológica, foram os “intelectuais”, não a população em geral. Esta limitou-se a praticar o que eles lhes ensinaram – e quando o resultado começou a aparecer, com toda a sua feiúra deprimente, logo veio um porta-voz dos “intelectuais” para fazer o que eles costumeiramente fazem: apagar as pistas de suas próprias ações, jogar as culpas nos outros e aproveitar o desastre como oportunidade para reforçar sua autoridade de conselheiros da nação.
Mas também é errado imaginar que dentro do próprio círculo de “intelectuais” uma ética de auto-indulgência viesse como resposta a uma situação local especialmente opressiva. Na década de 60, a onda hedonista brotou simultaneamente em dezenas de países, a maioria dos quais não passou por ditadura militar nenhuma. Nos focos principais de onde a moda irradiou – a França e os EUA –, os mais extremados apologistas do “prazer” desfrutavam não só de uma liberdade invejável, mas de financiamentos bilionários vindos das altas esferas do establishment (a história de Alfred Kinsey é, sob esse aspecto, modelar: v. Judith Reisman, Kinsey: Crimes and Consequences, Institute for Media Education, 3rd. ed., 2003). Não faz sentido atribuir a causas locais um fenômeno de escala universal. Os “intelectuais” da taba aderiram à ideologia do prazer porque quiseram, porque era a moda internacional, e não porque a isso os forçasse o governo militar. Quando a repassam a jovens e crianças nas escolas, estão apenas formando as novas gerações à sua imagem e semelhança, mas sempre, é claro, com o cuidado de se isentar preventivamente de qualquer responsabilidade pelas eventuais conseqüências adversas.
Ademais, a análise do prof. Martins erra também por anacronismo. O culto do prazer a todo preço não surgiu no Brasil após o advento da Nova República, mas já nos anos 60, fomentado não só pela influência das modas culturais importadas, mas por toda uma militância local onde se destacaram importantes órgãos de mídia como Realidade, Nova e Cláudia, sem contar uma infinidade de publicações menores como O Pasquim, Ex, Rolling Stones, Flores do Mal e não sei mais quantas, todas dirigidas por ativistas de esquerda empenhados em destruir o capitalismo por via vaginal, o cristianismo por via ano-retal ou ambos por via dupla. Uma coisa não pode ser reação tardia a outra coisa quando ambas acontecem simultaneamente.
Para piorar, o prof. Martins não assinala como sintoma da desordem moral nacional só a busca de satisfações imediatas a todo preço, mas também a cobiça financeira, a sede de bens materiais. Ora, como é possível explicar esse fenômeno como reação de alívio subseqüente a uma situação repressiva, e ao mesmo tempo acusar a ditadura de ter fomentado o espírito capitalista, o consumismo, o culto da mercadoria e o império da “lei de Gérson”? Ou a ditadura incentivou as pessoas a subir na vida por meio do capitalismo ou as inibiu de fazer isso, alimentando nelas um desejo insatisfeito a que só puderam dar vazão na Era Lula. As duas coisas ao mesmo tempo, não pode ser. (Continua.)