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Libertação tardia

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 8 de dezembro de 2010

Quando me mostraram um vídeo em que Carlos Vereza, no programa do Jô Soares, falava o diabo do governo, julguei que se tratava de explosão emocional inconseqüente, fútil. O que me levou a essa conclusão foi o fato de que o ator, por baixo de suas acusações aos ocupantes do poder, tentava salvar a honra do discurso esquerdista que, precisamente, os havia colocado lá.

“Aí está – pensei – mais um brasileiro que odeia as conseqüências sem deixar de amar as causas.”

Agora, lendo o seu blog (http://carlosverezablog.blogspot.com/2010/11/forcas-armadas-acordem.html), percebo que Vereza evoluiu muito desde aquele primeiro protesto. Está sinceramente angustiado com o estado de coisas e não cessa de colocar em revisão suas velhas crenças, com notável coragem moral, em busca de uma explicação e de um remédio. O horror que a barbárie petista lhe inspira faz com que ele chegue até a aceitar a conveniência de uma intervenção militar saneadora – idéia que ninguém pode alimentar sem primeiro ter-se libertado de todo preconceito antidireitista e especialmente da visão estereotipada e caluniosa do golpe de 1964, que se consolidou na opinião pública como fruto de uma das mais vastas, obstinadas e irrespondidas campanhas difamatórias que o mundo já conheceu.

Quando um intelectual com raízes esquerdistas tão fundas chega a esse ponto, é que seu desespero ante a feiúra indescritível do panorama político-cultural já expulsou da sua mente os últimos resíduos daquele sentimento de dívida moral que a máquina de dominação esquerdista sabe com tão ardilosa astúcia infundir preventivamente na alma de seus adeptos e simpatizantes, para aprisioná-los numa rede de escrúpulos paralisantes em caso de perda do entusiasmo revolucionário.

Esses fantasmas sempre podem ser expulsos, mas o custo emocional do exorcismo é ainda mais elevado que o do isolamento social, das chacotas, dos insultos, das amizades perdidas, do boicote profissional e demais sanções que a engenhoca infernal do Partido, montada para reinar soberanamente sobre a intimidade mais secreta das consciências, faz desabar sobre o infeliz que, de repente ou pouco a pouco, comece a enxergar a maldade do esquema em que colaborou por anos a fio.

A primeira tentação é a de acusar esse esquema de “incoerência”, condená-lo como infiel a seus próprios princípios, sem perceber que a mescla indissolúvel da política e do crime, das belas palavras com os atos mais hediondos e escabrosos, longe de ser uma traição ou desvio, é ela própria um dos princípios orientadores da estratégia revolucionária desde o tempo de Karl Marx, que considerava a extinção violenta de povos inteiros um preço bem modesto para o advento de um sistema social do qual ele próprio se contentava com ter nada mais que uma idéia muito geral e vaga. O apelo revolucionário de Karl Marx, bem como o de seus sucessores, resume-se na proposta mais cínica que algum celerado já fez a seus irmãos humanos: “Matem e morram por algo que inventei mas que eu mesmo não sei dizer o que é.”

Se perguntamos como foi que promessa tão evanescente logrou seduzir e escravizar tantos milhões de pessoas cultas, a melhor resposta ainda é a do ex-militante Douglas Hyde em seu livro Dedication and Leadership, de 1966: o partido não domina as almas dos militantes pelo que lhes dá, mas pelo que lhes toma. Quanto mais você lhe oferece dedicação, esforço, dinheiro e até a renúncia à sua dignidade pessoal, mais você se sente devedor, porque deu ao movimento revolucionário sua alma e seu coração, toda a sua substância espiritual, e, ante a mera hipótese de sair dele, se sente só, vazio, desprezível, um cadáver moral. Para libertar-se dessa obsessão, é preciso uma espécie de virilidade intelectual que vai se tornando ainda mais rara que a virilidade física.

De longe, aprecio o esforço interior de Carlos Vereza, sabendo que seu despertar veio tarde demais.

Publicado com o título “O despertar, tarde demais”

Geração sanguessuga

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 13 de fevereiro de 2009

Quando François-Noël Babeuf (1760-1797) fundou a primeira organização comunista de massas, ele fixou algumas regras para identificar os militantes capacitados e distingui-los dos oportunistas e aproveitadores. Essas regras foram absorvidas depois pela Primeira Internacional de Karl Marx e se tornaram parte integrante da tradição comunista. São até hoje um dos fatores essenciais que dão força e consistência ao movimento revolucionário. Filippo Buonarrotti, no livro que consagrou à epopéia babeufista, resume algumas delas:

* Devoção aos princípios da organização e disposição de sacrificar a eles o interesse pessoal e os prazeres.
* Coragem, desprezo pelo perigo e pelas dificuldades.
* Paciência e perseverança.
* Respeito pela hierarquia.
* Inviolável respeito à palavra dada, à promessa e aos votos.
* Nenhum desejo de brilhar, de dar impressão ou de se impor.

São normas de senso comum, sem as quais nenhuma organização pode prosperar, nenhum movimento político pode crescer, nenhum grupo humano pode avançar um passo sem tropeçar em dificuldades invencíveis e assistir, impotente, à vitória do inimigo perseverante, devotado, disciplinado e organizado.

Se o PT chegou aonde chegou, não foi pelos ardis maquiavélicos dos ladrões que o lideram. Foi graças ao esforço devotado de milhares de militantes anônimos que durante décadas ofereceram generosamente ao partido seu dinheiro e suas horas de trabalho, enfrentando toda sorte de riscos e dificuldades sem outra esperança senão a de que o socialismo petista pudesse dar a todos os brasileiros uma vida melhor.

Se querem saber por que a direita no Brasil é tão fraca, tão vacilante, tão incapaz de erguer a cabeça e enfrentar o adversário com algum sucesso, perguntem a si próprios quantos liberais e conservadores, no seu círculo de conhecidos, têm alguma daquelas virtudes mínimas requeridas de um militante comunista. Quantos aceitam sacrificar mesmo um pouco de suas ambições capitalistas do presente para assegurar que a democracia capitalista continue existindo no futuro? Quantos não tremem de pavor ante a mera possibilidade de ser, não digo assassinados, não digo surrados, não digo perseguidos, mas simplesmente xingados ou desprezados pelos esquerdistas? Quantos não evitam a companhia de seus correligionários mais corajosos, só para não ser rotulados de extremistas junto com eles, mesmo sabendo que o rótulo é injusto? Quantos entendem a diferença entre defender a liberdade de mercado e beneficiar-se dela deixando a outros menos beneficiados, ou não beneficiados de maneira alguma, o encargo de defendê-la?

Minha experiência, nesse sentido, foi bem decepcionante. Durante muitos anos fui praticamente o único, na grande mídia, a defender os valores que a esquerda odeia – pelo menos o único a defendê-los com alguma eficiência, erguendo a discussão para um plano de exigência intelectual e de franqueza verbal em que meus adversários sentiam falta de ar e preferiam abandonar a luta. Rompi a marteladas o manto de chumbo com que a ideologia dominante esmagava, ora sob insultos atemorizantes, ora sob afetações de desprezo olímpico, toda veleidade de oposição. Contra tudo e contra todos, abri um espaço. Quem veio ocupá-lo? Um exército de militantes, de combatentes, de homens valentes dispostos a honrar o exemplo do antecessor? Sim, vieram alguns com esse espírito, e muito me orgulho deles. Mas em geral o que vi foi uma horda de oportunistas esfomeados, que na atmosfera mais respirável que se abria não viam um horizonte de luta, mas um mercado, uma promessa de lucros fáceis, uma oportunidade de subir na vida sem fazer força. As palavras conservadorismo, liberalismo, democracia, não atingiam os seus corações como um chamamento ao dever: afagavam seus ouvidos como um sussurro sedutor, rebrilhavam em seus olhos como cifrões esculpidos em ouro. Eles entravam, pois, em campo, decididos não a continuar o que eu havia começado, mas a explorá-lo em proveito próprio, vendendo logo a primeira colheita em vez de replantar as sementes. Para isso, evidentemente, tinham de transmutar o fruto do meu trabalho em um produto menos ácido, mais palatável, próprio a ser consumido como divertimento intelectual em vez servir de combustível e munição. Não vinham lutar ao meu lado, mas tentar ocupar o meu lugar o mais rápido possível, chutando para um canto o pioneiro incômodo e substituindo ao seu discurso exigente e implacável o estilo castrado e acomodatício dos oportunistas e dos sedutores.

Como não enxergar a realidade

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 26 de novembro 2007

No meu artigo de 29 de outubro (A inversão revolucionária) prometi dar alguns exemplos de inversão revolucionária, e lá vou eu.

“Revolução” significa um giro, uma inversão de posições. É natural, pois, que as criaturas seduzidas pela idéia revolucionária, nem sempre sendo capazes de virar o mundo de pernas para o ar como pretendem, façam ao menos a revolução dentro de suas próprias cabeças, invertendo as relações lógicas de sujeito e objeto, os nexos de causa e efeito e até a ordem seqüencial dos tempos, enxergando, em suma, tudo às avessas e não admitindo como verdade senão o oposto simétrico daquilo que os fatos dizem, os documentos atestam e a razão proclama.

Não, caro leitor, por esquemático e satírico que pareça, o parágrafo anterior não é uma caricatura, uma figura de linguagem. A inversão da realidade percebida é um esquema de uso tão freqüente e obsessivo no discurso revolucionário, que a dificuldade principal em documentar sua presença é a hesitação na escolha, tão abundantes são os exemplos. Há também um obstáculo secundário, que é a variedade dos tipos de inversão e dos usos que se faz deles. Eis aqui um breve mostruário.

Em primeiríssimo lugar, vem a inversão essencial, estrutural, onipresente no movimento revolucionário porque subjaz à sua própria autodefinição. A promessa de um mundo de paz, amor e liberdade, conferindo aos revolucionários a autorização para realizá-la por meio da violência, do ódio e da opressão, implica necessariamente que as virtudes destinadas a brotar na humanidade futura só podem aparecer nos seus criadores presentes sob a forma invertida do mal e do pecado. A culpa dessa inversão, decerto, nunca é dos revolucionários, mas das condições estabelecidas que opõem uma resistência obstinada ao advento do bem supremo, e que por isso devem ser destruídas a ferro e fogo. É a sociedade má que obriga os homens bons a fazer o mal para destruí-la. Como, porém, não é concebível que os meros beneficiários passivos da sociedade futura sejam moralmente mais elevados do que aqueles que tiveram o trabalho de criá-la, a autoglorificação dos revolucionários como tipos éticos supremos – o “primeiro escalão da espécie humana” no qual Che Guevara modestamente se incluía – traz como corolário incontornável a superioridade da virtude invertida sobre a virtude direta: o pecado cometido pelo revolucionário é mais virtuoso do que as virtudes do homem comum.

Karl Marx, que engravidou sua empregada e recusou todo cuidado paternal ao filho, escreveu páginas furibundas contra os burgueses que abusavam de moças proletárias. Seria estúpido enxergar nisso um caso de mera hipocrisia. Algo de muito mais sinistro está embutido nas desculpas convencionais que, a pretexto de impugnar acusações ad hominem como argumentos filosoficamente válidos contra o marxismo, cavam um abismo ontológico entre Karl Marx, o filósofo da revolução, e Karl Marx, o patrão de Helène Demuth. O primeiro não arca com as culpas do segundo. Não foi enquanto revolucionário que Marx abusou da moça pobre, mas enquanto filho de burguês, herdeiro inerme e portanto vítima das taras da classe dominante. Ao condenar nos outros o mal que ele mesmo praticava, Karl Marx transmutou o pecado burguês em virtude revolucionária. Do mesmo modo, Mao Dzedong, o santo da devoção do PC do B, estuprou algumas dezenas de camponesas adolescentes para que no futuro não houvesse mais fazendeiros ricos capazes de fazer outro tanto. Os habitantes da utopia agrária socialista, é claro, não estuprarão ninguém, mas nem por isso merecerão tanta honra e glória quanto o “Grande Timoneiro” que os conduziu à paz edênica de uma sociedade sem estupros. Eis como estuprar mocinhas, se você é Mao Dzedong, se torna mais virtuoso do que abster-se de fazê-lo, se você é um outro qualquer. Ainda na mesma linha de raciocínio, Che Guevara considerava que, ao fuzilar prisioneiros inermes, era ele próprio, não eles, a vítima sacrificial. É a inversão revolucionária em estado puro – essencial e arquetípica.

Dela nascem inumeráveis tipos derivados, dos quais o mais usual é a identidade sociológica invertida. A liderança revolucionária, bem como o núcleo da militância, compõem-se, predominantemente, de representantes das classes média e alta. Não há dado histórico mais amplamente comprovado. Ele não impede, no entanto, que muitos desses movimentos continuem se denominando proletários, e qualificando de burgueses e pequeno-burgueses os seus opositores, mesmo quando manifestamente proletários. Na Revolução Francesa, por exemplo, a força ativa eram os intelectuais, os aristocratas hostis ao rei, uma parcela do clero e uma massa de manobra composta de delinqüentes e prostitutas. A única rebelião popular que ali se viu foi a da Vendéia, o levante em massa dos camponeses católicos contra o governo revolucionário. E mesmo na sua segunda fase, quando de acordo com a versão clássica da historiografia esquerdista a Revolução perde o seu impulso proletário e se torna um movimento da burguesia, os burgueses, os famosos burgueses capitalistas, estão notavelmente ausentes dos postos de comando. Eles só entram na história, a bem dizer, como aproveitadores menores do saque empreendido pelo governo revolucionário sobre os bens da Igreja, principalmente terras. Terras que, durante séculos, tinham estado entregues ao livre cultivo pelos necessitados, e que agora se tornavam repentinamente propriedades do governo ou dos novos ricos. Por qualquer dos dois lados que a encaremos, a história oficial da Revolução Francesa é pura inversão. Como movimento popular destinado nominalmente a acabar com a fome, a Revolução criou uma multidão de esfaimados – os primeiros autênticos “sem terra” do Ocidente. De outro lado, chamada “Revolução burguesa”, não o foi por ter sido obra da burguesia, mas por ter criado a burguesia como subproduto do roubo estatal. Nos dois casos, a lenda historiográfica consagrada é a inversão simétrica da realidade.

Dos vários movimentos revolucionários ao longo da História, o único que teve o apoio maciço do proletariado foi o nazifascismo, isto é, precisamente aquele que a historiografia pró-comunista e o consenso da grande mídia insistem em definir como um movimento da pequena burguesia e do grande capital. O meticuloso estudo de James Pool (“ Who Financed Hitler: The Secret Funding of Hitler’s Rise to Power, 1919- 1933” , Simon & Schuster, 1997 ) mostra que, malgrado exceções bem conhecidas, alemãs e estrangeiras (os Krupp; Henry Ford), o grosso da alta burguesia alemã via Hitler com extrema desconfiança e não lhe deu nenhuma ajuda substantiva. Até sua ascensão ao poder, que lhe forneceu por fim os meios de “colocar a burguesia de joelhos” (expressão do próprio Hitler), o Partido Nazista subsistiu principalmente das contribuições da militância operária, enquanto o Partido Comunista, na Europa e nos EUA, nadava em dinheiro da alta burguesia. Aliás, seduzir os ricos para arrancar-lhes dinheiro e apoio, em vez de organizar as massas para a luta, foi precisamente a missão específica que Stálin assinalou ao Partido Comunista Americano, cujo sucesso nesse empreendimento deixou marcas que duram até hoje (V. “Double Lives”, de Stephen Koch, New York, The Free Press, 1994).

Nos próximos artigos mostrarei mais alguns tipos de inversão.

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