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Notinhas execráveis

Olavo de Carvalho

Folha de São Paulo, 14 de julho de 2014

          

Excetuada a hipótese da sabedoria infusa, é preciso algumas décadas de experiência para um sujeito entender que a esperança numa vida após a morte é mais realista, mais racional e mais científica do que a aposta em qualquer utopia social terrena. No fim a conclusão é sempre esta: ou o Paraíso ou o Nada. Como o Nada é impossível, resta aquela tentativa incansável e interminável de aproximar-se dele, a qual se chama, tradicionalmente, inferno.

Isso é a vida humana.

Dia a dia acumulam-se os indícios de que ela não cessa com a morte, inclusive esse filme espetacular, Heaven is for Real, em que um menino de quatro anos demonstra saber mais sobre o outro mundo do que em geral os guias iluminados dos povos sabem sobre este.

Em compensação, jamais se viu o menor sinal de que uma sociedade cientificamente planejada pudesse funcionar sem levar milhões de pessoas ao cárcere, ao cemitério ou, no mínimo, ao desespero. Quando Lincoln Steffens, um dos santos de devoção da babaquice jornalística, voltou da URSS informando “Eu vi o futuro e ele funciona”, a coisa já estava mesmo funcionando: fome e miséria, cadáveres para todo lado e a tortura institucionalizada como prática corriqueira pela mais eficiente polícia política de todos os tempos.

Em cada estação de trem, as mães se apinhavam implorando que alguém levasse embora os seus bebês antes que a genial economia socialista os matasse de inanição.

Platão, na República, já demonstrava que mesmo o melhor dos regimes políticos, concebido para agradar o mais exigente dos filósofos, terminaria por se destruir a si mesmo por suas contradições internas, e cederia o lugar a alguma velha porcaria tida pelos otimistas como historicamente superada.

Uma das razões mais constantes para que as coisas sejam assim é que, precisamente, os homens se esquecem de que elas são assim. Jean Fourastié, no seu clássico Les Conditions de l’Esprit Scientifique (Gallimard, 1966), ensina que uma das forças históricas mais decisivas é o esquecimento. De geração em geração, os sábios se entusiasmam de tal modo com as suas novas descobertas que acabam não percebendo que quase sempre a dose de conhecimento perdido é quase igual à do conhecimento conquistado. Deslumbrados com os antibióticos, os circuitos integrados, os clones e as fibras óticas, até hoje não sabemos explicar como os homens de outros tempos, aqueles bárbaros, conseguiram construir as pirâmides do Egito ou manter de pé os vitrais das catedrais góticas.

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Existe uma diferença enorme entre um ideal político substantivo e a camada de adornos verbais de que se reveste. Verbalmente, o socialismo é igualdade, liberdade, etc. e tal. Substantivamente, é a unificação de poder político e econômico, portanto a criação de uma casta governante mais poderosa e mais dominadora do que a anterior. O socialismo não é ruim porque se desviou do seu ideal, mas porque o realizou.

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O discernimento estético é parte integrante da cultura espiritual. A música, as artes plásticas, o cinema e o teatro são armas letais usadas na desumanização das massas, e isto menos pelo conteúdo propagandístico explícito (uma exceção) do que pelo simples fato de dissolverem o senso estético das multidões pela exposição repetida ao feio e disforme apresentado como normal.

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O tempo da pornografia já passou. A moda agora é deformidade corporal, vômito, sangue pisado, pus e cadáveres em decomposição.

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Pessoas que escrevem mal percebem mal, retêm mal, e com a maior facilidade se enganam a si mesmas quanto às suas intenções simplesmente trocando os nomes dos sentimentos que as movem. A literatura e o conhecimento da alma humana sempre andaram juntos. Ninguém pode apreender nuances e sutilezas da vida emocional com uma linguagem tosca, mesmo que gramaticalmente correta.

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O cristianismo jamais teve como objetivo a eliminação da pobreza. Jesus deixou isso muito claro ao dizer: “Sempre haverá pobres entre vós” – e, pior ainda, Ele disse isso num contexto que enfatizava a prioridade dos deveres espirituais sobre quaisquer demandas, mesmo justas e necessárias, da vida material.

Os comunistas não roubaram nenhuma ideia do cristianismo. Ao contrário, emprestaram-lhe a sua própria ideia, para dar a ela o prestígio de um ideal sagrado. A única ideia que os comunistas roubaram do cristianismo não tem nada a ver com eliminação da pobreza. Foi a ideia do Juízo Final, que eles reduziram à escala histórico-social para justificar o seu projeto de matar gente a granel sob um pretexto edificante.

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Seres humanos normais praticam a igualdade nas suas relações pessoais na medida do razoável e aceitam a desigualdade social como uma coisa natural e invencível. Malucos pretendem eliminar a desigualdade social e por isso levam ao extremo a desigualdade pessoal, imaginando-se infinitamente superiores aos demais seres humanos. Mao Dzedong acreditava-se igual aos setenta milhões de chineses que ele mandou para o beleléu?

Comunistas acreditam em “amar a humanidade impessoalmente”, como se abstraída a dimensão pessoal ainda restasse algo de humano. O que amam é uma hipotética humanidade futura construída à imagem deles mesmos, em nome da qual tentam eliminar a humanidade presente.

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Sugestão: Para cada livro de filosofia, leia pelo menos cinco de História. O confronto com os fatos amortece bastante o vício de jogar com conceitos e argumentos. O filósofo que o é pelo puro “gosto dos conceitos abstratos” (fórmula de Sir Michael Dummett tão apreciada por estas bandas) não passará jamais de um menino brincando de Lego.

A promessa autoadiável

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 30 de agosto de 2010

Quando o nosso presidente diz: “Ainda não sabemos que tipo de socialismo queremos”, ele ecoa aquilo que é talvez o mais clássico Leitmotiv do pensamento revolucionário. Karl Marx já opinava que era inútil tentar descrever como seria o socialismo, já que este iria se definindo a si mesmo no curso da ação anticapitalista. O argumento com que Lula justifica sua afirmativa – leiam em America Libre – é exatamente esse. Em 1968, entre as explosões de coquetéis Molotov que tiravam o sono do establishmentfrancês, Daniel Cohn-Bendit declarava, com orgulho, que os estudantes revolucionários queriam “uma forma de organização social radicalmente nova, da qual não sabem dizer, hoje, se é realizável ou não”. E a versão mais sofisticada do marxismo no século XX, a Escola de Frankfurt, baseou-se inteiramente na convicção de que qualquer proposta definida para a construção do socialismo é bobagem: só o que importa é fazer “a crítica radical de tudo quanto existe”. Critiquem, acusem, caluniem, emporcalhem, destruam tudo o que encontrem pela frente, e alguma coisa melhor vai acabar aparecendo espontaneamente. Se não aparecer, tanto melhor: a luta continua, como diria Vicentinho. Herbert Marcuse resumiu o espírito da coisa em termos lapidares: “Por enquanto, a única alternativa concreta é somente uma negação.” Tal como o Deus da teologia apofática, o alvo final do movimento revolucionário é sublime demais para que seja possível dizer o que é: só se pode dizer o que não é – e tudo o que não participa da sua indefinível natureza divina está condenado à destruição. Destruição que não virá num Juízo Final supramundano, com a repentina absorção do tempo na eternidade – coisa na qual os revolucionários não acreditam –, e sim dentro da História terrestre mesma, numa sucessão macabra de capítulos sangrentos: não podendo suprimir todo o mal num relance, só resta ao movimento revolucionário a destruição paciente, progressiva, obstinada, sem limite, nem prazo, nem fim. Cumpre-se assim a profecia de Hegel, de que a vontade de transformação revolucionária não teria jamais outra expressão histórica senão “a fúria da destruição” (v. meu artigo “Uma lição de Hegel”, aqui publicado em 14 de novembro de 2008, http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html).

Nessas condições, é óbvio que duzentos milhões de cadáveres, a miséria e os sofrimentos sem fim criados pelos regimes revolucionários não constituem objeção válida. O revolucionário faz a sua parte: destrói. Substituir o destruído por algo de melhor não é incumbência dele, mas da própria realidade. Se a realidade não chega a cumpri-la, isso só prova que ela ainda é má e merece ser destruída um pouco mais.

É claro que, na política prática, os revolucionários terão de apresentar algumas propostas concretas, uma aqui, outra acolá, seduzindo mediante engodo os patetas que não compreendem a sublimidade do negativo. Mas essas propostas não visam jamais a produzir no mundo real os benefícios que anunciam: visam somente a enfatizar a maldade do mundo e a aumentar, na mesma proporção, a força de empuxe do movimento destruidor. Eis a razão pela qual este último não conhece fracassos: como o processo avança mediante contradições dialéticas, todo fracasso de uma proposta concreta, aumentando a quota de mal no mundo, se converte automaticamente em sucesso da obra revolucionária de destruição. Nada incrementou o poder do Estado comunista como o fracasso retumbante da coletivização da agricultura na URSS e na China (50 milhões de mortos em menos de dez anos). O fracasso de Stalin em usar o nazismo como ponta-de-lança para a invasão das democracias ocidentais converteu-se em aliança destas com os soviéticos e na subseqüente concessão de metade do território europeu ao domínio comunista: precisamente o objetivo inicial do plano. A queda da URSS, em vez de extinguir o comunismo, espalhou-o pelo mundo todo sob novas identidades, confundindo o adversário ao ponto de induzir os EUA à passividade cúmplice ante a ocupação da América Latina pelos comunistas. E assim por diante.

Mais ainda: como as propostas concretas não têm nenhuma importância em si mesmas, não apenas cabe trocar uma pela outra a qualquer momento, mas pode-se com igual desenvoltura defender políticas contraditórias simultaneamente, por exemplo incentivando o sex lib, o feminismo e o movimento gay no Ocidente, ao mesmo tempo que se fomenta o avanço do fundamentalismo islâmico que promete matar todos os libertinos, feministas e gays. Só se escandaliza com isso quem seja incapaz de perceber a beleza dialética do processo.

Se não têm nenhum compromisso com qualquer proposta concreta, muito menos podem os revolucionários ter algum sentimento de culpa ante os resultados medonhos das suas ações. O que quer que aconteça no trajeto é sempre explicado, seja como destruição necessária, justa portanto, seja como reação do mundo mau, que deste modo atrai sobre si novas destruições, ainda mais justas e necessárias. Isso é tanto mais assim porque o estado paradisíaco final a ser atingido (ou a demonstrar-se impossível por ser o mundo ainda mais mau do que o revolucionário supunha no começo) não pode ser descrito ou definido de antemão, mas tem de criar-se por si mesmo no curso do processo. Por isso o movimento revolucionário não pode reconhecer como obra sua nenhum estado de coisas que ele venha a produzir historicamente. O que quer que esteja acontecendo não é jamais – “ainda” não é – o socialismo, o comunismo, a jóia perfeita na qual o movimento revolucionário poderá reconhecer, no momento culminante do Fim da História, o seu filho unigênito: é sempre uma transição, uma etapa, uma conjuntura provisória, criada não pelo movimento revolucionário, mas pelo confronto entre este e o mundo mau; confronto que por sua vez faz parte, ainda, do próprio mundo mau, ao qual portanto cabem todas as culpas.

Por sua própria natureza, a promessa indefinida é auto-adiável, e nenhum preço que se pague por ela pode ser considerado excessivo, não sendo possível um cálculo de custo-benefício quando o benefício também é indefinido.

A oitava maravilha do mundo, na minha modesta opinião, é que pessoas alheias ou hostis aos ideais revolucionários imaginem ser possível uma convivência pacífica e democrática com indivíduos que, pela própria lógica interna desses ideais, se colocam acima de todo julgamento humano e só admitem como medida das suas ações um resultado futuro que eles mesmos não podem nem querem dizer qual seja ou quando virá. Só o conservador, o liberal-democrata, o crente devoto da ordem jurídica, pode imaginar que a disputa política com os revolucionários é uma civilizada concorrência entre iguais: o revolucionário, por seu lado, sabe que seu antagonista não é um igual, não é nem mesmo um ser humano, é um desprezível mosquito que só existe para ser esmagado sob as rodas do carro da História.

Respondendo a um amigo

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 8 de outubro de 2008

Um amigo, cujo nome tenho boas razões para não declarar aqui, envia-me uma carta interessantíssima da qual desejo destacar e comentar duas observações. A primeira refere-se à farsa montada pela Folha de S. Paulo para amortecer o impacto das confissões do espião Morris Sobell, que desmantelaram uma das mentiras mais queridas da esquerda internacional, a alegada inocência do casal Rosenberg (v. www.olavodecarvalho.org/semana/080919dc.html). A segunda, aos rumos gerais do movimento revolucionário no mundo.

Primeira observação: “Se a intelligentzia da esquerda permitiu a Moris Sobell divulgar sua verdade é porque já sabe o poder que conquistou e está limpando seu passado. Como sempre, culpando os mortos. Do ponto de vista do processo de tomada de poder, tambem é uma mudança de paradigma. Mais um ponto de massa crítica foi ultrapassado e a reação ‘alquimica’ se consolida. Sobell ainda deve ter um bocado de poder. Imagine o mundo, agora majoritariamente de esquerda, saber que ele foi o Gagarin da Bomba. É um reconhecimento em vida.”

Comentário: A técnica é sempre a mesma: primeiro a negação categórica, depois o embelezamento retroativo, por fim a confissão, já com valor invertido. Até o Foro de São Paulo, quando saiu das sombras após dezesseis anos de ocultação, veio todo embonecado, com maquiagem e collant, parecia até o Gilberto Gil no baile do Scala Gay. O que foi ocultado como crime passa por uma transfiguração de modo a poder ser alardeado como mérito.

As gerações mais novas nada souberam, e as velhas já se esqueceram, da pletora de eloqüência mendaz que a mídia chique despejou em todo o globo para dar credibilidade postiça à declaração de Fidel Castro, “Quero deixar bem claro que não somos comunistas” – declaração que, alguns anos depois, passado o temor da rejeição internacional, seria substituída pelo seu oposto simétrico: “Quero deixar bem claro que somos marxistas-leninistas.” Este vídeo do youtube – www.youtube.com/watch?v=VNlKFt11Yxc – pode sanar a ignorância de uns e restaurar a memória de outros. Mas mesmo depois disso ambos os grupos continuarão acreditando na mentira cínica de que os terroristas brasileiros dos anos 70 lutavam para restaurar a democracia no Brasil, mentira que fatalmente, no tempo oportuno, será substituída pela confissão ainda mais cínica de que seu objetivo era instaurar aqui uma ditadura comunista nos moldes da cubana, que os financiava precisamente para isso e para nada mais.

Segunda observação: “Por um outro aspecto, olhando os fatos pelo contexto histórico, esse é o caminho da humanidade, não há outro. Durante muito tempo me revoltava contra o que via, hoje vejo a inevitabilidade deste destino. Não adianta me revoltar, me irritar e irritar os outros. É mais util apenas informar, mostrando o que realmente esta se passando. Sim, esse movimento revolucionario terminará. Terminará quando for a tradição sendo atacada por uma nova traição. Mas o mundo ja estará irreconhecivel.”

Comentário: Você tem razão ao dizer que o movimento revolucionário, quando terminar (o que é historicamente inevitável), terá deixado o mundo irreconhecível. É como o vício da cocaína, que o sujeito pode abandonar, mas sem obter nunca os seus neurônios de volta.

Não devemos, é claro, ter a ilusão de reverter o curso dos acontecimentos, mas também não podemos ceder a um fatalismo que só pode nos acanalhar e destruir o sentido da nossa existência. O que temos é de fazer de nossas vidas um testemunho de que o movimento revolucionário não é onipotente, de que é possível sobreviver mesmo sob o seu jugo sem lhe ceder um milímetro da nossa liberdade de consciência, de que é possível cuspir nos ídolos, desprezá-los e humilhá-los sem que eles tenham sequer a cara de pau de fazer algo de substantivo contra nós. O exemplo que deixarmos será, após o fim do pesadelo, a semente da reconstrução do sentido da vida. Deixar esse exemplo é só o que interessa. No Juízo Final, não seremos cobrados pelo que o mundo escolheu fazer, mas apenas pelo que fizemos de nossas próprias vidas.

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