Olavo de Carvalho
Época, 9 de dezembro de 2000
O sujeito pensa que disse, mas não disse nada
Não posso deixar de aplaudir a sugestão do ministro Weffort de que o grego e o latim devem voltar a nossas escolas. A sugestão, é claro, parecerá odiosa aos cretinos que imaginam que a cultura é um instrumento que você compra para fazer com ela o que quiser, e com base nessa premissa alegam que as línguas clássicas “não servem para nada”. É característico do semiletrado não compreender a cultura senão como utensílio ou como adorno, sem enxergar que ela não existe para nós fazermos alguma coisa com ela, mas para ela fazer algo conosco: para nos construir e nos fortalecer enquanto seres capazes de consciência.
Nada no repertório dos conhecimentos humanos tem esse poder educativo como os estudos clássicos. Uma boa injeção de gramática latina e filosofia grega, na juventude, nos torna imunes, na idade madura, à infinidade de estupefacientes culturais que hoje danam as melhores inteligências.
Não digo que esse remédio, sozinho, possa deter a alucinante precipitação da inteligência nacional ladeira abaixo. Mas pode melhorar a compreensão da linguagem, que hoje raia, nas elites, o analfabetismo funcional.
Arrastados no declínio da fala geral, mesmo os homens mais preparados acabam por perder de todo a compreensão do que lêem e mesmo do que dizem.
Tomo como exemplo a declaração do deputado José Genoíno: “Há dois documentos da Igreja que prezo muito e coloco no mesmo patamar do Manifesto Comunista: Os Dez Mandamentos e O Sermão da Montanha”.
Se Os Dez Mandamentos põem Deus acima de todas as coisas, o homem que diz amá-los tanto quanto a uma filosofia que professa expulsar Deus dos céus está, no ato, declarando que para ele o culto a Deus e o ódio a Deus valem exatamente o mesmo. Obviamente pode-se desprezar por igual essas duas coisas, ou amá-las em sentido desigual, mas jamais amá-las por igual. Isso decorre da simples apreensão do sentido do enunciado, e é esta apreensão que na declaração do deputado falha por completo.
Considerados na mesma clave de sentido, Os Dez Mandamentos e o Manifesto Comunista nunca têm valores idênticos. Se um diz a verdade, o outro mente.
Não há terceira alternativa. Nem Genoíno nem qualquer outro ser humano pode amá-los “no mesmo patamar” sem, no ato, declarar guerra àquilo que diz. Se ele afirmasse que seu coração oscila entre dois pólos, ou então que ama os dois textos em planos diversos, ou que nenhum deles lhe diz nada exceto como documento histórico, tudo estaria bem. Ao expor como emblema convencional da harmonia dos contrários algo que, de fato, é a mútua hostilidade dos incompatíveis, ele cai no tipo de linguagem auto-hipnótica que hoje domina nossos debates públicos, uma linguagem que, em vez de despertar a consciência, a entorpece.
Quando tentei explicar isso a uma platéia que não era de iletrados nem de estudantes, mas de juízes de Direito, alguns me objetaram que eu estava exigindo rigor lógico de uma frase que deveria ser compreendida em sentido poético ou plurissenso; e tive a maior dificuldade para explicar à platéia a diferença entre a multiplicidade de sentidos da fala poética e a ausência de sentido de uma afirmação que se eletrocuta a si mesma. Pois para compreender isso é preciso captar a diferença entre uma mera contradição lógico-formal (já que uma verdade pode ser perfeitamente expressa em termos contraditórios) e a contradição efetiva, real, entre dois atos interiores que não podem coexistir exceto como erro de auto-interpretação do falante, isto é, como sinal de que ele, rigorosamente, não sabe o que diz.