Posts Tagged José Guilherme Merquior

Por baixo da mesa

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 19 de dezembro

Irmão siamês do desconstrucionismo, o multiculturalismo é assim definido por um professor uspiano: “Não tem sentido falar de verdade tout court, só de verdade para um determinado grupo cultural. O multiculturalismo apregoa uma visão caleidoscópica da vida e da fertilidade do espírito humano, na qual cada indivíduo transcende o marco estreito da sua própria formação cultural e é capaz de ver, sentir e interpretar por meio de outras apreciações culturais. O modelo humano resultante é tolerante, compreensivo, amplo, sensível e fundamentalmente rico: a capacidade interpretativa, de observação e até emotiva, se multiplica.” (Roberto Fernández, “Multiculturalismo intelectual”, Revista USP, 42, junho-agosto 1999, pp. 84-95.)

Qualquer pessoa que saiba ler e não tenha passado pela USP percebe que o projeto multiculturalista, assim definido (e essa definição não diverge de outras tantas que circulam nos meios universitários), se estrangula a si próprio no bercinho. Se toda verdade está condicionada à visão de um determinado grupo cultural, ninguém pode “transcender o marco estreito da sua própria formação cultural” e muito menos “ver, sentir e interpretar por meio de outras apreciações culturais”. Se alguém consegue saltar por cima das fronteiras culturais, é porque há uma verdade acima de todas elas e essa verdade é acessível à inteligência humana. O multiculturalismo consiste portanto em fazer na prática aquilo mesmo que na teoria ele proclama ser impossível. É um caso extremo de paralaxe cognitiva, em que o sujeito afirma precisamente o contrário daquilo que o seu próprio ato de afirmar demonstra da maneira mais patente. É o deslocamento radical entre o eixo da experiência intelectual efetiva e o da construção teórica supostamente baseada nela.

A incongruência é tão patente, tão grosseira, que não posso acreditar seja filha da distração, gerada no leito das meras coincidências. Com efeito, a contradição aí embutida só permanece levemente camuflada pelo fato de que seus dois pólos se situam em planos diferentes: a teoria e a prática. O estudante, portanto, só pode continuar envolvido nessa prática se for induzido a jamais confrontá-la com a teoria, isto é, se ele se tornar incapaz de cotejar a expressão verbal da teoria com o conteúdo teorético afirmado implicitamente pela prática. Dito de outro modo: o adestramento no multiculturalismo consiste em habilitar o aluno para se persuadir de que sabe alguma coisa sempre que não sabe o que está fazendo com ela. O multiculturalismo é uma técnica de auto-embotamento intelectual baseada na estimulação contraditória rotinizada.

Não tem sentido, portanto, discuti-lo como teoria nem como prática. Só o que cabe é revelar o ardil psicológico por trás da articulação de ambas, e em seguida denunciar o conjunto como aquilo que é: um instrumento de dominação criado para transformar milhões de universitários em idiotas militantes, hipnotizados e postos a serviço de seus professores.

Às vezes fico até consternado de ver o esforço que brilhantes intelectuais conservadores, como o nosso José Guilherme Merquior, dispenderam em impugnar idéias esquerdistas. Ser bem sucedido nesse esforço não significa nada, quando as idéias não valem por si e são só a camuflagem de alguma operação mais discreta. Se um vizinho safado vai jogar baralho na sua casa com a intenção de ficar passando a mão na perna da sua esposa por baixo da mesa, não é vantagem nenhuma você vencê-lo no jogo. O que importa é virar a mesa e encher o sujeito de porrada.

Independência

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 05 de junho de 2003

Intelectual independente é, por definição, aquele que fala por si, sem se arrogar outra autoridade exceto aquela inerente à inteligência, ao conhecimento e à força da personalidade. Mas, neste país, por mais que um escritor se esforce para ficar longe de partidos e grupos políticos, suas opiniões são sempre lidas como propaganda de algum deles. Basta, para isso, que desagrade aos outros. Certos leitores vão um pouco mais longe: catalogam o infeliz como cérebro de aluguel a serviço de tais ou quais “interesses”. E à palavra “interesses” segue-se quase invariavelmente o adjetivo “inconfessáveis”, dando a entender que o falante está por dentro de segredos importantíssimos.

Tão natural, espontânea e generalizada é essa reação, que ninguém se dá conta de quanto ela revela, não sobre o indivíduo de quem se fala, mas sobre o meio social que assim o julga. É que nesse meio não existe mesmo pensamento senão coletivo e instrumental. A expectativa geral é portanto que ninguém fale por si, mas todos “em nome de” alguma entidade ou grupo de interesses. As divergências de opinião expressam conflitos de ambições, de vontades, não diferentes apreensões do mundo real.

O pensador solitário, que no fundo não luta senão contra sua própria ignorância, é tão estranho e incompreensível nesse ambiente, que sua existência mesma é negada e, para todos os fins de conversação “culta”, ele é substituído pelo seu equivalente mais próximo na ordem volitiva: o tribuno de alguma causa ou interesse, a qual causa e o qual interesse, não sendo os do ouvinte, só podem ser algo de muito pérfido e tenebroso.

Inversa e complementarmente, aquele que se limita a ecoar o discurso do grupo a que pertence o ouvinte é aplaudido como pensador livre e independente, pelo fato mesmo de não ser nada disso. As palavras “liberdade” e “independência”, aí, não significam o que significam. Entram na conversa como expressões genéricas de louvor convencional, à maneira de “notável” ou “esplêndido”. Dissolvido o sentido da liberdade e da independência, estas podem revestir-se então de uma segunda camada de significado postiço, passando a designar o íntimo bem-estar que um grupo de pessoas sente quando suas crenças não são contrariadas, mas antes reforçadas pela autoridade aparente do pensador, evidentemente esplêndido e notável, que lhes dirige a palavra. “Liberdade”, neste segundo sentido, é ausência de desafios, de contestações, de impugnações — de constrangimentos intelectuais, enfim, tão costumeiramente ressentidos (porca miséria!) como imposições autoritárias inaceitáveis. É assim que um escritor, quanto mais subserviente à unanimidade grupal ou partidária, mais será celebrado como corajoso outsider e apóstolo da liberdade, enquanto ao autor verdadeiramente independente se atribuirá uma variada gama de sujeições e vinculações imaginárias.

O mais deprimente em tudo isso é que o escritor assim duplamente isolado — isolado pela sua própria independência e pela incompreensão ambiente — nem sempre agüenta o rojão. Homens de valor como Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior acabaram se comprometendo com grupos políticos, não por interesse vil, é claro, mas em busca de respaldo social para melhor defender-se dos ataques injustos que sofriam, um da direita, outro da esquerda.

No fundo, dou graças a Deus de que os políticões “de direita” me evitem, temendo parecer solidários com as denúncias horríveis que faço contra o atual establishment esquerdista, do qual esperam sempre obter alguma esmolinha. Se gostassem de mim, eu poderia ser tentado a esperar deles algum tipo de apoio. E, se deles me viesse vantagem, ainda que modesta, eu teria me transformado num tipo vagamente parecido com o retrato que querem pintar de mim os fanáticos e cretinos de toda sorte: comunistas, petistas, direitistas laroucheanos, nacionalisteiros, anti-semitas, etc. Por frouxa que fosse a semelhança, ela me faria mal.

Antes mal interpretado do que mal acompanhado.

Mesmo a mais dura solidão intelectual é reconfortante quando nela se pode viver como o Espinosa do soneto de Machado, que “acha na independência o seu salário”, ou, melhor ainda, repetir com plena sinceridade os versos do outro Machado, o grande don Antonio:

A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
El pán que me alimenta y el lecho donde yago.

Veja todos os arquivos por ano