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O anti-horizonte

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 1o de março de 2001

A geração que hoje domina o cenário mental brasileiro não recebeu, na juventude, senão uma única influência formadora: a das ideologias de esquerda. Digo “ideologias”, no plural, porque nela confluíam o marxismo-leninismo tradicional, o social-nacionalismo e a New Left (mitologia cubana inclusa). Mas no fundo diferiam muito pouco: cada uma oferecia pretextos diferentes para convalidar a busca obsessiva da mesma finalidade, elevada ao estatuto de sentido último da existência: a destruição do capitalismo.

Duas subcorrentes que poderiam ter aberto vias alternativas – o pensamento católico e a New Age – foram facilmente neutralizadas, castradas, absorvidas na corrente geral, perdendo toda substância própria e reduzindo-se a excipientes da fórmula socialista: o catolicismo forneceu o arremedo de Evangelho que inspira as comunidades de base, a New Age perverteu-se em protesto cocainófilo, pansexual, gay e feminista contra a “moral burguesa” (entre nós identificada, por um prodigioso rodopio semântico, com o pensamento católico conservador). Documentos históricos dessas absorções redutivas são, respectivamente, os escritos da dupla Betto & Boff e os do hoje quase esquecido Luís Carlos Maciel.

A cabeça da minha geração foi moldada na supressão e na mutilação. Autores, livros, idéias, fatos eram selecionados segundo um recorte prévio destinado a confirmar o discurso pronto. Isso não quer dizer que fosse proibido ler livros “de direita”. Podíamos lê-los, sim – mas só aqueles que confirmassem a imagem estereotipada que fazíamos da direita e contra os quais a esquerda tivesse um contraveneno retórico na ponta da língua. Os autores para os quais não se tinha resposta dividiam-se em duas classes: aqueles cujo nome, jamais mencionado, ia sendo esquecido até desaparecer por completo, e aqueles que eram guardados fora do alcance dos nossos olhos pela precaução asséptica de um rótulo infamante, quase sempre o inverso simétrico do que eram na verdade.

Não era só pregação ideológica. Era todo um sistema de reações e percepções que se automatizavam como reflexos e acabavam por engolir totalmente a nossa personalidade. E a ênfase do sistema estava menos em nos passar determinadas crenças do que em infundir-nos a repulsa prévia e temerosa a idéias, coisas e pessoas que desconhecíamos por completo e que assim perdíamos todo desejo de conhecer.

Dos 25 anos de idade até hoje, não fiz senão abrir minha alma a todas as influências, a todos os interesses, a todas as riquezas culturais e espirituais que a coerção mental esquerdista, até então, me havia tornado inacessíveis. Quanto mais vivo e aprendo, mais me espanto de como era acanhado, mesquinho, somítico, regressivo o anti-horizonte no qual os mestres da minha geração quiseram me prender. Anti-horizonte no qual estão presos, ainda, quase todos os meus coetâneos, mesmo aqueles que imaginam ter “passado para o outro lado”, como se uma tão profunda mutilação espiritual pudesse ser curada por uma simples troca de carteirinha e como se aliás a própria definição estereotípica dos dois lados não fosse ainda a mesma de sempre, apenas com os valores nominalmente invertidos (digo nominalmente porque a efetiva renúncia ao socialismo é tão dolorosa quanto a recuperação de um drogado, e a pressa indecente com que uns quantos anunciam sua mutação prova que ela não ocorreu senão in verbis).

Mas, quanto mais me espanto com isso, mais me horrorizo com a mutilação ainda mais funda, com o estreitamento duplamente compressivo que, num repasse infernal, essa geração está impondo aos jovens de hoje. Os cinqüentões criados num quarto escuro não se contentam com transmitir a seus filhos sua ojeriza à luz, ao sol, ao espaço aberto. Não. Furam-lhes os olhos e os tapam no fundo de uma caverna, para privá-los da possibilidade mesma de conceber que exista luz, sol, espaço aberto no mundo real.

O escândalo do ‘Código 12’

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 15 de fevereiro de 2001

A revelação de pretensas descobertas históricas, que envolveriam dois ex-presidentes da República numa trama sinistra para o assassinato de inimigos políticos, sugere, uma vez mais, que a USP não é propriamente uma universidade e sim uma gigantesca central de adestramento de propagandistas revolucionários, adornada, aqui e ali, de algumas escolas técnicas e científicas regularmente eficientes, destinadas a dar ao conjunto o mínimo indispensável de respeitabilidade acadêmica que justifique o consumo voraz de verbas estatais.

Segundo foi noticiado na TV, pesquisadores da USP teriam localizado, entre os papéis do antigo Dops, uma mensagem na qual o general João Batista de Figueiredo, então chefe do SNI, transmitia ao nosso embaixador em Portugal a ordem, emanada do presidente da República, General Ernesto Geisel, de aplicar um tal “Código 12” em cima de dois exilados, um deles o almirante Cândido Aragão. “Código 12”, segundo os criptógrafos uspianos, significa matar o sujeito e fingir causa acidental.

Não examinei os papéis, mas, qualquer que seja o seu teor, as conclusões factuais que se pretende tirar deles não resistem, por si, ao mínimo exame crítico.

Em primeiro lugar, o próprio nome cifrado da operação já é duvidoso. O que aparece nos documentos não é “Código 12”: é “Oyykl”. Para acompanhar o raciocínio uspiano, temos de aceitar que “Oyykl”, com o perdão da palavra, significa Código 12, e que Código 12 significa a porcaria acima mencionada. A sutileza criptográfica da mensagem já brada aos céus que nenhuma conclusão a respeito pode ser aceita “prima facie”, sem verificação por técnicos de fora de uma instituição que assumiu, como seu dever pedagógico primordial, sujar a reputação do regime militar e de tudo quanto a ele esteja associado mesmo remotamente.

Uma corporação acadêmica que não se inibe de discriminar seu próprio reitor, vetando o estudo de livros dele como fez com Miguel Reale, e que chega ao cúmulo de dificultar, durante décadas, o acesso de seus alunos de ciências sociais às idéias do único dos nossos sociólogos que tem envergadura universal — Gilberto Freyre –, não deve ser chamada de preconceituosa, porque o termo é doce demais. Ela é simplesmente sectária. Que os arquivos do Dops, em vez de ser colocados sob a guarda de uma comissão mista supra-ideológica, sejam entregues a essa suspeitíssima instituição, para que os utilize como matéria-prima de shows publicitários a pretexto de ciência histórica, já é algo, para o meu gosto, demasiado chocante.

Mas ainda há, nas conclusões uspianas, muitas aberrações a ser explicadas, se explicação tiverem. Por exemplo: nada, no mundo, pode justificar que o chefe de um serviço secreto, ao efetivar a secreta execução de uma secretíssima operação ilegal, o faça… por vias diplomáticas! Por que raios um oficial militar, que tem sob suas ordens diretas profissionais habilitados para missões de guerrilha, sabotagem e quantas mais truculências o adestramento de combate inclua, no momento de passar à ação transmite a ordem, não a eles, mas a um funcionário civil? Seria o embaixador um agente mais qualificado do que os militares para convocar e acionar os executores da ordem homicida? A coisa é tão estúpida que raia o impensável.

Menos ainda haverá explicação razoável para o fato de que, ao enviar à embaixada de Lisboa o memorando assassino em vez de remetê-lo a destinatário mais apropriado, o chefe da conspiração urdida em altos círculos federais ainda fizesse tirar cópias do sigiloso documento para uma repartição estadual paulista…

Porém o mais inverossímil da trama é a vítima. Por que, em pleno processo de abertura democrática, o governo se comprometeria numa arriscada operação para mandar matar, no exterior, um inimigo esquecido, aposentado, política e militarmente inócuo? Já em 1964 a agressividade do almirante Aragão contra o novo regime revelara ser apenas um blefe, quando sua ameaça de invadir o Palácio das Laranjeiras com um batalhão de fuzileiros navais se desfez como por mágica ante a simples reação verbal enérgica do governador Carlos Lacerda. Se, à frente de tropas armadas, tudo o que ele conseguiu fazer foi sair da história para entrar no esquecimento, que milagre poderia tornar tão temível, onze anos depois, esse velho balão furado?

Não, um plano governamental para transmutar um almirante de opereta em mártir da causa esquerdista seria insensato demais, contraproducente demais, suicida demais para que pudéssemos acreditar nele à primeira vista, confiados na pura autoridade de meninos uspianos, ansiosos para acrescentar a contribuição da sua criatividade pessoal ao filme de Bela Lugosi em que a máquina esquerdista de desinformação vem transformando a história – digamos que o seja – do período militar.

Por fim, resta o fato de que as vítimas, após a data fatídica, continuaram passando bem e ignorando por completo a sua morte anunciada…

Tudo isso prova, no mínimo, que a acusação é duvidosa e sua divulgação afoita. Se nem mesmo uma simples denúncia jornalística se exime do dever de ser inspecionada “pelos dois lados” antes de estampar-se em manchete, por que uma revelação histórica que se arroga foros de seriedade acadêmica deveria ser alardeada pela TV antes de submeter-se à inspeção de historiadores profissionais alheios ou antagônicos à fé ideológica de seus autores?

Sacerdócio do Anticristo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 1o de fevereiro de 2001

Cuba é o único país do Ocidente onde o cidadão pode ser preso por mandar batizar um filho. Quando um ex-sacerdote diz ver nesse país “o reino de Deus na Terra”, está claro que ele não se despiu apenas da batina, nem da fé católica, mas dos últimos vestígios de moral cristã, mesmo laicizada, que ainda pudessem restar no seu coração de apóstata.

Isso não quer dizer que seja um ateu. O ateísmo é uma rejeição da fé, não uma inversão dela. A inversão coloca no topo o que estava embaixo, chamando o inferno de céu, odiando o que Deus ama e amando o que Deus abomina. O Anticristo não é um não-Cristo, uma supressão do Cristo: é um Cristo às avessas, que ilude as multidões porque corresponde ao Cristo ponto por ponto, apenas de cabeça para baixo. Por isso o ex-sacerdote não se torna ateu. De certo modo, continua sacerdote. Sem isso, não poderia oficiar o rito diante do crucifixo invertido.

A inversão não troca somente o alto pelo baixo, mas o interior pelo exterior. Toda religião, e o cristianismo também, possui um núcleo de doutrina imutável e uma infinidade de símbolos exteriores que mudam com o tempo, refletindo a adaptação da fé às modas culturais e às variações do imaginário popular. Numa época com forte senso da hierarquia, a imagem de Cristo-Rei sugeria a analogia da Nova Aliança com a estabilidade da ordem social e cósmica. Numa sociedade democrática, predomina a imagem do Cristo simples e popular, a circular anônimo entre mendigos e prostitutas. Cristo contém em si, inseparavelmente, a autoridade e a simplicidade. A moda cultural enfatizará autonomamente uma ou outra, de maneira que ela acabe por se tornar, sozinha, o emblema do cristianismo. A essa altura, que faz a Igreja do Anticristo? Enverga esse emblema e o ostenta com tal espalhafato, que ele acaba por encobrir e substituir o núcleo da fé, jogando-o fora em nome de algo que, aos olhos da multidão, passa pelo mais puro cristianismo.

A divinização dos símbolos da realeza permitiu que a autoridade do Cristo-Rei personificada no monarca legitimasse, sem grande escândalo público, a matança de bispos e santos. Numa época de igualitarismo, a moda cultural é a “igreja dos pobres”. Em seu nome são renegados e abolidos os Dez Mandamentos, o Credo e cada palavra do Evangelho, sem que ninguém se dê conta de ter-se afastado do cristianismo um só milímetro. Proibir a missa, criminalizar o batismo, matar multidões de crentes tornam-se provas de profunda fé cristã.

Quanto mais adventício, periférico e desprezível é o símbolo, maior seu poder de usurpar o lugar do simbolizado. Não conhecemos com certeza, por exemplo, a figura real do Jesus histórico. Todas as suas representações são imaginárias. Algumas épocas conceberam-no com os traços nobres de um príncipe, outras com a fisionomia rústica de um camponês; umas, como um adulto atlético, de olhar severo; outras, como um jovem de expressão sonhadora e barba rala. Na nossa época, onde à moda populista se somou a idolatria da juventude, veio a predominar esta última imagem. E a coincidência fortuita dela com os traços de Ernesto Che Guevara basta para dar verossimilhança à identidade essencial desse genocida frio e psicopata com o próprio Jesus Cristo, proclamada pelo sacerdote acima referido. Esaú trocou sua primogenitura por um prato de lentilhas, que ao menos o alimentou por umas horas; o sacerdote de que estou falando sugere que a troquemos pela contemplação idiota de um “poster” que, se fosse o dos Beatles, funcionaria igualmente bem para essa finalidade.

Mas quem é o tal sacerdote? Alusões e indiretas, sobretudo proferidas com ar de inocência, não são do meu estilo. Se me perguntarem se estou falando do tal de Betto, responderei que indiscutivelmente sim, com a ressalva de que não o aponto como indivíduo e sim como amostra casual de um tipo cujo nome é legião. Tanto que chego a confundi-lo com o sr. Boff, em razão da xifopagia espiritual que os une, e, não conseguindo distinguir nenhum dos dois do peruano Gutierrez que de certo modo os gerou, poderia aplicar a qualquer dos três a descrição acima, sem mudar uma só palavra. Pouco importam, enfim, os nomes: o sacerdócio do Anticristo é missão impessoal como um comissariado do povo na extinta URSS, e ninguém lhe vende a alma sem entregar, com ela, a identidade pessoal.

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