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Individualistas e coletivistas

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 28 de março de 2011

 

Aí vão, conforme anunciei, algumas notas para a próxima rodada do debate com o prof. Duguin.

Comecei minha mensagem inaugural apontando a assimetria entre um indivíduo isolado, que fala apenas em seu próprio nome, e o líder que expressa a vontade política de um partido, de um movimento, de um Estado ou de um grupo de Estados.

O prof. Duguin viu aí a cristalização simbólica da oposição entre individualismo e coletivismo, Ocidente e Oriente.

Essa não me parece ser uma aplicação correta das regras do simbolismo, que tanto ele quanto eu aprendemos em René Guénon.

Um simbolismo genuíno deve respeitar as fronteiras entre distintos planos de realidade, em vez de confundi-los. Onde o prof. Duguin viu um símbolo, eu vejo apenas uma metáfora, e aliás bastante forçada.

O individualismo como nome de uma corrente ideológica é uma coisa; outra completamente diversa, sem nenhuma conexão com ela, é a posição de um ser humano na base, no meio ou no topo da hierarquia de comando. Desta não pode se deduzir aquela, nem ver na posição social de um indivíduo um “símbolo” da sua identidade ideológica real ou suposta. Caso contrário, todo escritor sem suporte numa organização política seria necessariamente um adepto do individualismo ideológico, incluídos nisso os fundadores do nacional-bolchevismo, Limonov e Duguin, no tempo em que começaram, solitários e ignorados do mundo, a especular suas primeiras idéias. Ser um indivíduo isolado é uma coisa; ser um individualista é outra, quer tomemos a palavra “individualista” no sentido de hábito moral ou de convicção ideológica. A dedução implícita no “simbolismo” que o prof. Duguin acredita ter encontrado é um perfeito non sequitur. O simbolismo autêntico, segundo René Guénon, deve ir para além e para cima da lógica, em vez de ficar abaixo das suas exigências mais elementares.

Mais ainda, em vez de colar à força na minha lapela o distintivo de adepto do individualismo ocidental, o prof. Duguin poderia ter perguntado o que penso a respeito. Afinal, a liberdade de expressão num debate não consiste apenas no poder que cada um dos debatedores tem de responder “x” ou “y” a uma questão dada, mas também, e eminentemente, na sua possibilidade de rejeitar a formulação da pergunta e recolocar a questão toda desde seus fundamentos, conforme bem lhe pareça.

Na minha modestíssima e individualíssima opinião, “individualismo” e “coletivismo” não são nomes de entidades históricas substantivas, distintas e independentes, separadas como entes materiais no espaço, mas rótulos móveis que alguns movimentos políticos usam para carimbar-se a si próprios e a seus adversários. Ora, a ciência política, como já afirmei, nasceu no momento em que Platão e Aristóteles começaram a entender a diferença entre o discurso dos vários agentes políticos em conflito e o discurso do observador científico que tenta entender o conflito (que mais tarde os agentes políticos aprendessem a imitar a linguagem da ciência não invalida em nada essa distinção inicial). Logo, nossa principal obrigação num debate intelectualmente sério é analisar os termos do discurso político para ver que ações reais se insinuam por baixo deles, em vez de tomá-los ingenuamente como traduções diretas e francas de realidades prontas.

Com toda a evidência, os termos “individualismo” e “coletivismo” não expressam princípios de ação lineares e unívocos, mas dois feixes de tensões dialéticas, que se exteriorizam em contradições reais cada vez que se tente levar à prática, como se isto fosse possível, uma política linearmente “individualista” ou “coletivista”.

Desde logo, e para ficar só nos aspectos mais simples e banais do assunto, cada um desses termos evoca de imediato um sentido moralmente positivo junto com um negativo, não sendo possível, nem mesmo na esfera da pura semântica, separar um do outro para dar a cada um dos termos uma conotação invariavelmente boa ou má.

O “individualismo” sugere, de um lado, o egoísmo, a indiferença ao próximo, a concentração de cada um na busca de seus interesses exclusivos; de outro lado, sugere o dever de respeitar a integridade e a liberdade de cada indivíduo, o que automaticamente proíbe que o usemos como mero instrumento e coloca portanto limites à consecução de nossos propósitos egoístas.

O “coletivismo” evoca, de um lado, a solidariedade, o sacrifício que cada um faz de si pelo bem de todos; de outro lado, evoca também o esmagamento dos indivíduos reais e concretos em nome de benefícios coletivos abstratos e hipotéticos que em geral permanecem hipotéticos e abstratos para sempre.

Quando vamos além da mera semântica e observamos as políticas autonomeadas “individualistas” e “coletivistas” em ação no mundo, notamos que a duplicidade de sentido embutida nos termos se materializa em efeitos políticos paradoxais, inversos aos bens ou males subentendidos no uso desses termos como adornos ou estigmas.

O velho Hegel já ensinava que um conceito só se transmuta em realidade concreta mediante a inversão do seu significado abstrato.

Essa transmutação é uma das mais notáveis constantes da história humana.

O coletivismo, como política da solidariedade geral, só se realiza mediante a dissolução das vontades individuais numa hierarquia de comando que culmina na pessoa do guia iluminado, do Líder, do Imperador, do Führer, do Pai dos Povos. Nominalmente incorporando na sua pessoa as forças transcendentes que unificam a massa dos joões-ninguéns e legitimam quantos sacrifícios a ela se imponham, essa criatura, na verdade, não só conserva em si todas as fraquezas, limitações e defeitos da sua individualidade inicial, mas, quase que invariavelmente, se deixa corromper e degradar ao ponto de ficar abaixo do nível de integridade moral do indivíduo comum, transformando-se num doente mental desprezível. Hitler explodindo de fúria ou rolando no chão em transes de delírio persecutório, Stalin deleitando-se de prazer sádico em condenar à morte seus amigos mais íntimos sob a alegação de crimes que não haviam cometido, Mao Dzedong abusando sexualmente de centenas de meninas camponesas que prometera defender contra a lubricidade dos proprietários de terras, mostram que o poder político acumulado nas mãos desses indivíduos não aumentou de um só miligrama o seu poder de controle sobre si mesmos, apenas colocou à sua disposição meios de impor seus caprichos individuais à massa dos súditos desindividualizados. A solidariedade coletiva culmina no império do “Indivíduo Absoluto” enaltecido por Julius Evola. E esse indivíduo, que a propaganda recobre de todas as pompas de um enviado dos céus, não é jamais um exemplo de santidade, virtude e heroísmo, mas sim de maldade, abjeção e covardia. O absoluto coletivismo é o triunfo do Egoísmo Absoluto.

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