Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 20 de setembro de 2010
Lenin dizia que, quando você tirou do adversário a vontade de lutar, já venceu a briga. Mas, nas modernas condições de “guerra assimétrica”, controlar a opinião pública tornou-se mais decisivo do que alcançar vitórias no campo militar. A regra leninista converte-se portanto automaticamente na técnica da “espiral do silêncio”: agora trata-se de extinguir, na alma do inimigo, não só sua disposição guerreira, mas até sua vontade de argumentar em defesa própria, seu mero impulso de dizer umas tímidas palavrinhas contra o agressor.
O modo de alcançar esse objetivo é trabalhoso e caro, mas simples em essência: trata-se de atacar a honra do infeliz desde tantos lados, por tantos meios de comunicação diversos e com tamanha variedade de alegações contraditórias, com freqüência propositadamente absurdas e farsescas, de tal modo que ele, sentindo a inviabilidade de um debate limpo, acabe preferindo recolher-se ao silêncio. Nesse momento ele se torna politicamente defunto. O mal venceu mais uma batalha.
A técnica foi experimentada pela primeira vez no século XVIII. Foi tão pesada a carga de invencionices, chacotas, lendas urbanas e arremedos de pesquisa histórico-filológica que se jogou sobre a Igreja Católica, que os padres e teólogos acabaram achando que não valia a pena defender uma instituição venerável contra alegações tão baixas e maliciosas. Resultado: perderam a briga. O contraste entre a virulência, a baixeza, a ubiqüidade da propaganda anticatólica e a míngua, a timidez dos discursos de defesa ou contra-ataque, marcou a imagem da época, até hoje, com a fisionomia triunfante dos iluministas e revolucionários. Pior ainda: recobriu-os com a aura de uma superioridade intelectual que, no fim das contas, não possuíam de maneira alguma. A Igreja continuou ensinando, curando as almas, amparando os pobres, socorrendo os doentes, produzindo santos e mártires, mas foi como se nada disso tivesse acontecido. Para vocês fazerem uma idéia do poder entorpecente da “espiral do silêncio”, basta notar que, durante aquele período, uma só organização católica, a Companhia de Jesus, fez mais contribuições à ciência do que todos os seus detratores materialistas somados, mas foram estes que entraram para a História – e lá estão até hoje – como paladinos da razão científica em luta contra o obscurantismo. (Se esta minha afirmação lhe parece estranha e – como se diz no Brasil – “polêmica”, é porque você continua acreditando em professores semi-analfabetos e jornalistas semi-alfabetizados. Em vez disso, deveria tirar a dúvida lendo John W. O’Malley, org., The Jesuits: Cultures, Sciences, and The Arts, 1540-1773, 2 vols., University of Toronto Press, 1999, e Mordecai Feingold, org., Jesuit Science and the Republic of Letters, MIT Press, 2003).
Foi só quase um século depois desses acontecimentos que Alexis de Tocqueville descobriu por que a Igreja perdera uma guerra que tinha tudo para vencer. Deve-se a ele a primeira formulação da teoria da “espiral do silêncio”, que, em extensa pesquisa sobre o comportamento da opinião pública na Alemanha, Elizabeth Noëlle-Neumann veio a confirmar integralmente em The Spiral of Silence: Public Opinion, Our Social Skin(2ª. ed., The University of Chicago Press, 1993). Calar-se ante o atacante desonesto é uma atitude tão suicida quanto tentar rebater suas acusações em termos “elevados”, conferindo-lhe uma dignidade que ele não tem. As duas coisas jogam você direto na voragem da “espiral do silêncio”. A Igreja do século XVIII cometeu esses dois erros, como a Igreja de hoje os está cometendo de novo.
A sujidade, a vileza mesma de certos ataques são plenejadas para constranger a vítima, instilando nela a repulsa de se envolver em discussões que lhe soam degradantes e forçando-a assim, seja ao silêncio, seja a uma ostentação de fria polidez superior que não tem como não parecer mera camuflagem improvisada de uma dor insuportável e, portanto, uma confissão de derrota. Você não pode parar um assalto recusando-se a encostar um dedo na pessoa do assaltante ou demonstrando-lhe, educadamente, que o Código Penal proíbe o que ele está fazendo.
As lições de Tocqueville e Noëlle-Newman não são úteis só para a Igreja Católica. Junto com ela, as comunidades mais difamadas do universo são os americanos e os judeus. Os primeiros preferem antes pagar por crimes que não cometeram do que incorrer numa falta de educação contra seus mais perversos detratores. Os segundos sabem se defender um pouco melhor, mas se sentem inibidos quando os atacantes são oriundos das suas próprias fileiras – o que acontece com freqüência alarmante. Nenhuma entidade no mundo tem tantos inimigos internos quanto a Igreja Católica, os EUA e a nação judaica. É que viveram na “espiral do silêncio” por tanto tempo que já não sabem como sair dela – e até a fomentam por iniciativa própria, antecipando-se aos inimigos.
A única reação eficaz à espiral do silêncio é quebrá-la – e não se pode fazer isso sem quebrar, junto com ela, a imagem de respeitabilidade dos que a fabricaram. Mas como desmascarar uma falsa respeitabilidade respeitosamente? Como denunciar a malícia, a trapaça, a mentira, o crime, sem ultrapassar as fronteiras do mero “debate de idéias”? Quem comete crimes não são idéias: são pessoas. Nada favorece mais o império do mal do que o medo de partir para o “ataque pessoal” quando este é absolutamente necessário. Aristóteles ensinava que não se pode debater com quem não reconhece – ou não segue – as regras da busca da verdade. Os que querem manter um “diálogo elevado” com criminosos tornam-se maquiadores do crime. São esses os primeiros que, na impossibilidade de um debate honesto, e temendo cair no pecado do “ataque pessoal”, se recolhem ao que imaginam ser um silêncio honrado, entregando o terreno ao inimigo. A técnica da “espiral do silêncio” consiste em induzi-los a fazer precisamente isso.