Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 22 de abril de 2013
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 22 de abril de 2013
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 30 de agosto de 2010
Quando o nosso presidente diz: “Ainda não sabemos que tipo de socialismo queremos”, ele ecoa aquilo que é talvez o mais clássico Leitmotiv do pensamento revolucionário. Karl Marx já opinava que era inútil tentar descrever como seria o socialismo, já que este iria se definindo a si mesmo no curso da ação anticapitalista. O argumento com que Lula justifica sua afirmativa – leiam em America Libre – é exatamente esse. Em 1968, entre as explosões de coquetéis Molotov que tiravam o sono do establishmentfrancês, Daniel Cohn-Bendit declarava, com orgulho, que os estudantes revolucionários queriam “uma forma de organização social radicalmente nova, da qual não sabem dizer, hoje, se é realizável ou não”. E a versão mais sofisticada do marxismo no século XX, a Escola de Frankfurt, baseou-se inteiramente na convicção de que qualquer proposta definida para a construção do socialismo é bobagem: só o que importa é fazer “a crítica radical de tudo quanto existe”. Critiquem, acusem, caluniem, emporcalhem, destruam tudo o que encontrem pela frente, e alguma coisa melhor vai acabar aparecendo espontaneamente. Se não aparecer, tanto melhor: a luta continua, como diria Vicentinho. Herbert Marcuse resumiu o espírito da coisa em termos lapidares: “Por enquanto, a única alternativa concreta é somente uma negação.” Tal como o Deus da teologia apofática, o alvo final do movimento revolucionário é sublime demais para que seja possível dizer o que é: só se pode dizer o que não é – e tudo o que não participa da sua indefinível natureza divina está condenado à destruição. Destruição que não virá num Juízo Final supramundano, com a repentina absorção do tempo na eternidade – coisa na qual os revolucionários não acreditam –, e sim dentro da História terrestre mesma, numa sucessão macabra de capítulos sangrentos: não podendo suprimir todo o mal num relance, só resta ao movimento revolucionário a destruição paciente, progressiva, obstinada, sem limite, nem prazo, nem fim. Cumpre-se assim a profecia de Hegel, de que a vontade de transformação revolucionária não teria jamais outra expressão histórica senão “a fúria da destruição” (v. meu artigo “Uma lição de Hegel”, aqui publicado em 14 de novembro de 2008, http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html).
Nessas condições, é óbvio que duzentos milhões de cadáveres, a miséria e os sofrimentos sem fim criados pelos regimes revolucionários não constituem objeção válida. O revolucionário faz a sua parte: destrói. Substituir o destruído por algo de melhor não é incumbência dele, mas da própria realidade. Se a realidade não chega a cumpri-la, isso só prova que ela ainda é má e merece ser destruída um pouco mais.
É claro que, na política prática, os revolucionários terão de apresentar algumas propostas concretas, uma aqui, outra acolá, seduzindo mediante engodo os patetas que não compreendem a sublimidade do negativo. Mas essas propostas não visam jamais a produzir no mundo real os benefícios que anunciam: visam somente a enfatizar a maldade do mundo e a aumentar, na mesma proporção, a força de empuxe do movimento destruidor. Eis a razão pela qual este último não conhece fracassos: como o processo avança mediante contradições dialéticas, todo fracasso de uma proposta concreta, aumentando a quota de mal no mundo, se converte automaticamente em sucesso da obra revolucionária de destruição. Nada incrementou o poder do Estado comunista como o fracasso retumbante da coletivização da agricultura na URSS e na China (50 milhões de mortos em menos de dez anos). O fracasso de Stalin em usar o nazismo como ponta-de-lança para a invasão das democracias ocidentais converteu-se em aliança destas com os soviéticos e na subseqüente concessão de metade do território europeu ao domínio comunista: precisamente o objetivo inicial do plano. A queda da URSS, em vez de extinguir o comunismo, espalhou-o pelo mundo todo sob novas identidades, confundindo o adversário ao ponto de induzir os EUA à passividade cúmplice ante a ocupação da América Latina pelos comunistas. E assim por diante.
Mais ainda: como as propostas concretas não têm nenhuma importância em si mesmas, não apenas cabe trocar uma pela outra a qualquer momento, mas pode-se com igual desenvoltura defender políticas contraditórias simultaneamente, por exemplo incentivando o sex lib, o feminismo e o movimento gay no Ocidente, ao mesmo tempo que se fomenta o avanço do fundamentalismo islâmico que promete matar todos os libertinos, feministas e gays. Só se escandaliza com isso quem seja incapaz de perceber a beleza dialética do processo.
Se não têm nenhum compromisso com qualquer proposta concreta, muito menos podem os revolucionários ter algum sentimento de culpa ante os resultados medonhos das suas ações. O que quer que aconteça no trajeto é sempre explicado, seja como destruição necessária, justa portanto, seja como reação do mundo mau, que deste modo atrai sobre si novas destruições, ainda mais justas e necessárias. Isso é tanto mais assim porque o estado paradisíaco final a ser atingido (ou a demonstrar-se impossível por ser o mundo ainda mais mau do que o revolucionário supunha no começo) não pode ser descrito ou definido de antemão, mas tem de criar-se por si mesmo no curso do processo. Por isso o movimento revolucionário não pode reconhecer como obra sua nenhum estado de coisas que ele venha a produzir historicamente. O que quer que esteja acontecendo não é jamais – “ainda” não é – o socialismo, o comunismo, a jóia perfeita na qual o movimento revolucionário poderá reconhecer, no momento culminante do Fim da História, o seu filho unigênito: é sempre uma transição, uma etapa, uma conjuntura provisória, criada não pelo movimento revolucionário, mas pelo confronto entre este e o mundo mau; confronto que por sua vez faz parte, ainda, do próprio mundo mau, ao qual portanto cabem todas as culpas.
Por sua própria natureza, a promessa indefinida é auto-adiável, e nenhum preço que se pague por ela pode ser considerado excessivo, não sendo possível um cálculo de custo-benefício quando o benefício também é indefinido.
A oitava maravilha do mundo, na minha modesta opinião, é que pessoas alheias ou hostis aos ideais revolucionários imaginem ser possível uma convivência pacífica e democrática com indivíduos que, pela própria lógica interna desses ideais, se colocam acima de todo julgamento humano e só admitem como medida das suas ações um resultado futuro que eles mesmos não podem nem querem dizer qual seja ou quando virá. Só o conservador, o liberal-democrata, o crente devoto da ordem jurídica, pode imaginar que a disputa política com os revolucionários é uma civilizada concorrência entre iguais: o revolucionário, por seu lado, sabe que seu antagonista não é um igual, não é nem mesmo um ser humano, é um desprezível mosquito que só existe para ser esmagado sob as rodas do carro da História.
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 18 de junho de 2009
Os exemplos da inversão psicótica de sujeito e objeto são tão abundantes na produção escrita da intelectualidade revolucionária, que a única dificuldade para encontrá-los é o embarras de choix. O caso que vou comentar aqui é interessante porque ilustra esse mecanismo em dois níveis ao mesmo tempo: na reação de um professor de filosofia aos acontecimentos imediatos e na sua análise de transformações sociais mais duráveis e profundas.
Quando os alunos da USP, pela milésima vez, ocuparam o prédio da instituição, depredando o que podiam e intimidando seus colegas e professores para que interrompessem as aulas e aderissem ao quebra-quebra – ações que a profª. Olgária Matos, muito significativamente, definiu como “manifestação pacífica” –, outro professor da Faculdade de Filosofia, Vladimir Safatle, protestou contra a intervenção policial que pôs fim ao ataque, rotulando-a de “brutalidade securitária”. Se com isso ele não provou nada em favor dos manifestantes, ao menos demonstrou não saber distinguir, na escolha do seu vocabulário, entre a segurança pública e a indústria de seguros. Depois dessa performance literária quase presidencial, ele ainda se julgou habilitado a avaliar o desempenho intelectual dos estudantes, jurando que não eram simples arruaceiros, mas alunos aplicados, empenhados em altas tarefas científicas. Tendo examinado alguns trabalhos acadêmicos do referido, concluí que ele tem toda a razão ao qualificar de bons alunos os depredadores, pois correspondem às expectativas do mestre.
A título de amostra, examinemos o estudo “Certas Metamorfoses da Sedução: Destruição e Reconfiguração do Corpo na Publicidade Mundial dos Anos 90”, reproduzido no site do autor, http://www.geocities.com/vladimirsafatle/, entre outras efusões do seu – como direi? – intelecto. Sem exigir-lhe cobardemente uma filosofia, coisa que nenhum membro do seu departamento jamais teve e que é totalmente dispensável para ali ser havido como filósofo, vejamos como o professor se sai na numa área bem mais modesta do conhecimento, a sociologia da publicidade,
Ele começa por observar que, no período mencionado, a imagem do corpo humano nos anúncios publicitários mudou muito. Em vez do corpo como imagem estável e positiva da pessoa, apareciam agora duas novidades: de um lado, o corpo como entidade fluida e mutável, sujeita a toda sorte de alterações (piercings, pinturas extravagantes e até mutilações); de outro, o corpo como imagem da sua própria destruição – pessoas desalinhadas, mulheres pálidas com roupas de luto, homens com aparência de doentes, de cocainômanos, de aidéticos, de moribundos e até de cadáveres. Para dizer isso, ele leva mais de dez páginas, naquele estilo posado, tipicamente uspiano, com razoável dose de erros de gramática e farto uso de uma terminologia forçada que deve lhe parecer muito científica. E olhem que Safatle é uma das criaturas mais inteligentes que já passaram por aquela subseção do Instituto Butantã. Mas o interessante vem quando ele passa a explicar as causas do fenômeno. Para ele, a destruição do corpo na publicidade reflete um astuto mecanismo da lógica do mercado que, vendo esgotado o potencial das imagens estereotipadas de beleza e integridade corporal usuais nos anos 60, decidiu incorporar os elementos de rebelião e inconformismo, de modo a neutralizá-los mediante “rupturas internas controladas” e colocá-los a serviço de “novos processos de mercantilização da negatividade”.
Para chegar a essa conclusão, ele confessa que usou métodos lacanianos de investigação, segundo os quais a imagem corporal de cada um é construída por introjeção de padrões estereotipados vindos do exterior, da maldita sociedade. “Isto significa fundamentalmente que a experiência de produzir uma imagem corporal é alienação de si no sentido de submissão da referência-a-si à referência-a-outro…” (frase maravilhosa na qual eu mesmo, fazendo-me de co-autor, tive de colocar a crase para que se tornasse inteligível). “Não há – prossegue Safatle – nada de próprio na imagem do corpo. Lacan dirá que o corpo próprio, na verdade, é corpo do Outro.” Quando a repetição das imagens corporais positivas “transformou a publicidade em alvo maior da crítica à ideologia da sociedade de massa,… esta crítica foi logo assumida pela própria publicidade. Tratava-se de uma publicidade que ridicularizava a própria publicidade e certos aspectos da cultura de consumo…”.
Os dois elementos em jogo são aí a cultura de massas do “capitalismo tardio”, com sua estereotipagem positiva das imagens corporais, e a crítica cultural que se volta contra esses estereótipos com um radicalismo que, seguindo o exemplo de Lacan, não hesita em destruir a própria noção de corpo pessoal, acusada de ser uma camuflagem da dominação psíquica imposta pelo Outro ao infeliz morador do corpo. Dessa oposição resulta, segundo Safatle, a síntese que nos anos 90 absorve e instrumentaliza a destruição do corpo, transformando o que era inicialmente crítica cultural em “novos processos de mercantilização”.
Essa análise pode funcionar como exemplo daquilo que, na USP, passa como alta manifestação de inteligência e até como “trabalho científico”. Mas os conceitos lacanianos usados na análise já são, por si, exemplos claros de inversão psicótica. Dizer que a imagem do eu se forma por introjeção de padrões exteriores e que isto configura uma “alienação” é obviamente autocontraditório. Se a imagem do eu não existe antes da introjeção, não há nada que esta possa “alienar”. Ou a introjeção dos padrões exteriores é a própria origem da imagem, ou é a sua alienação: as duas coisas ao mesmo tempo ela não pode ser de maneira alguma, a não ser na hipótese de que exista um eu substancial metafísico anterior à sua própria construção como auto-imagem – hipótese que todo materialista como Lacan e Safatle tem de rejeitar in limine.
Partindo do princípio de que a imagem corporal é alienação, a única coisa decente que resta a fazer é destruí-la, evidentemente. Pode-se fazer isso com piercings, mutilações, ou com ataques lacanianos à sociedade malvada que impingiu ao sujeito aquilo que, no seu isolamento de menino-lobo, ele não poderia adquirir de maneira alguma: um eu. Mas destruir para quê? Para que da destruição da imagem estereotipada pudesse surgir um “verdadeiro eu”, seria preciso que este existisse antes e independentemente da introjeção, com o que voltamos à hipótese metafísica lacanianamente inaceitável. Mas, se a destruição não visa a desenterrar da massa dos estereótipos um impossível “eu autêntico”, então é claro que a destruição só tem como objetivo a própria destruição – um mecanismo que Hegel já previra com muita antecedência (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/081114dc.html). No legado da escola de Frankfurt, mais ainda quando enfeitado de lacanismo, a destruição é, com efeito, a única ocupação decente a que, no inferno geral do “capitalismo tardio”, se podem entregar as pessoas boas e inteligentes como o prof. Vladimir Safatle e seus aplicados alunos da USP. O que o professor não suporta é que tão boas intenções tenham sido maquiavelicamente absorvidas e instrumentalizadas pelo “capitalismo tardio” e transformadas em meios de incentivar o consumo, aumentar a produção e espalhar riquezas. Isso é mesmo um insulto intolerável.
[Continua.]