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Má pessoa e mau presságio

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 17 de outubro de 2008

George F. Will, um dos mais renomados colunistas do campo conservador, não está satisfeito com a tônica da campanha republicana, segundo a qual “não são tanto as idéias de Obama que são ruins – ele é que é má pessoa”.

No instante em que milhões de americanos estão sendo lesados nas suas contas de aposentadoria, afirma Will no seu artigo do dia 9 no Washington Post, “o esforço de McCain-Palin para fazer o eleitorado focar os olhos nas ligações que Obama teve em Chicago parece surrealista”.

O argumento não difere muito do de E. J. Dionne – um obamista – que comentei dias atrás: o público não quer saber do passado dos candidatos, mas de como eles vão governar o país e resolver os problemas do presente. No fundo, ambos os colunistas apóiam-se numa regra de etiqueta – um lugar-comum da retórica tradicional – segundo a qual debates devem concentrar-se em idéias e deixar intactas as pessoas.

Mas lugares-comuns são argumentos padronizados aplicáveis a uma multiplicidade de situações diversas, cuja diferença específica, por isso mesmo, lhes escapa. Uma idéia só pode ser discutida “em si mesma”, sem menções à pessoa do seu emitente, quando sua formulação é intelectualmente completa o bastante para garantir que ela não muda de significado quando troca de porta-voz ou de contexto. Isso só acontece com teorias científicas e filosóficas altamente abstratas. Com opiniões de políticos, jamais. A rigor, o único sentido que uma declaração de palanque pode ter é a história pregressa do seu emitente, que ela prolonga e esclarece no contexto atual, com graus variados de coerência e credibilidade conforme a situação. Quando Fidel Castro disse: “Jamais fomos comunistas”, ele era um novato na cena política, ansioso por atrair as simpatias do mundo. Quando ele declarou mais tarde: “Sempre fomos marxistas-leninistas”, era já um ditador consagrado, seguro do apoio soviético. A primeira declaração foi apenas uma captatio benevolentiae, a segunda a proclamação oficial de uma aliança efetivamente existente.

A necessidade de referir as palavras à pessoa que as profere torna-se ainda mais patente numa disputa eleitoral, quando não se trata de escolher entre idéias abstratas, mas de preencher um cargo: cargos não são ocupados por idéias, mas por pessoas. Uma vez empossado, o candidato vencedor pode mudar de idéia, mas não de caráter. As propostas de governo que ele apresente durante a campanha não são teorias que possam ser julgadas em si mesmas, porém indícios do seu caráter e da sua capacidade – indícios que, precisamente, só podem ser avaliados em função do seu passado.

Em terceiro lugar, as associações que um político tenha forjado ao longo da sua carreira não são detalhes externos que em nada afetem a hipotética pureza das suas convicções pessoais: são a substância mesma do esquema de poder que lhe dá sustentação política e financeira e cujos anseios e interesses pesarão muito mais sobre a conduta dele no cargo do que as meras idéias que ele possa ter na cabeça, idéias que, se vierem a se opor aos ditames do esquema, só condenarão seu agente ao isolamento e ao fracasso.

No caso de Obama, examinar a pessoa, o passado e as associações torna-se ainda mais obrigatório por dois motivos incontornáveis:

Primeiro: Seu discurso de campanha contrasta de tal maneira com todas as suas ações e palavras anteriores, que ninguém pode votar nele com consciência de causa sem ter primeiro esclarecido se ele mudou de idéia sinceramente ou se o novo make-up com que ele se apresenta é apenas um disfarce. Muitos adeptos de Obama – e alguns dos mais entusiásticos entre eles, como por exemplo Louis Farrakhan (v. http://www.wnd.com/index.php?fa=PAGE.view&pageId=77539) – não escondem que lhe dão apoio precisamente em razão das idéias radicais que ele defendeu outrora (e daquelas mesmas associações comprometedoras que agora ele nega), e não do seu discurso moderado de hoje, que aceitam apenas como concessão tática provisória. Alguém no campo obamista deve estar enganado a respeito do seu candidato: ou os que o aplaudem por ser um esquerdista fanático, pró-terrorista e anti-americano (como o indicam seus votos no Senado e suas ligações com William Ayers, Raila Odinga, Jeremy Wright, Louis Farrakhan e similares), ou os que confiam nele por ser moderado e patriota como seu discurso eleitoral sugere. Os dois lados não podem ter razão ao mesmo tempo. Fugir dessa questão e concentrar o debate tão-somente no conteúdo do discurso eleitoral em si é fazer desse discurso um fetiche hipnótico em vez de tentar compreendê-lo no seu sentido real e concreto.

Segundo: Obama é um recém-chegado, sua carreira política a mais curta e sua biografia a mais obscura e duvidosa que um candidato à presidência americana já apresentou ao público. O próprio Obama não faz o menor esforço para esclarecer seu passado, antes busca encobri-lo por meio de subterfúgios e mentiras já várias vezes desmascaradas. Por exemplo, ele disse que jamais militou num partido socialista: já apareceram as provas de que militou em dois (v. http://newsbusters.org/blogs/p-j-gladnick/2008/10/08/will-msm-report-obama-membership-socialist-new-party). Ele disse que mal conhecia William Ayers: já está claro que foi nomeado por Ayers para a ONG Chicago Annenberg Challenge e ambos juntos arrecadaram um bocado de dinheiro para organizações esquerdistas.

Essa conduta já é suspeita o bastante, mas o respaldo solícito que ela recebe uniformemente da grande mídia chega a ser assustador, denotando uma fraude jornalística geral e organizada, muito mais temível, pelo alcance universal das suas conseqüências, do que a ocultação da existência do Foro de São Paulo pela mídia brasileira (se eu não tivesse visto este último episódio com os olhos da cara não acreditaria no que eles estão me mostrando agora).

Episódios essenciais, não só da biografia pessoal de Obama, mas da sua militância política, são omitidos sistematicamente pelos jornais e pela TV ou só saem em versão expurgadíssima, higienizada e embelezada, contrastando com a espetaculosa exibição dos menores detalhes íntimos da vida da família Palin, apresentados sempre com vagas insinuações de escândalo precisamente porque em si mesmos nada têm de escandaloso ou relevante. Alguns daqueles episódios, bastante recentes aliás, de 2006 e 2007, mostram um Obama tão diferente daquele que aparece nos debates, que nenhum observador isento pode deixar de notar o contraste e perguntar se a imagem de bom menino veiculada pela propaganda eleitoral do candidato, com a ajuda cúmplice da grande mídia, não é antes uma farsa sinistra destinada a colocar na presidência dos EUA, sob pretextos calmantes, um revolucionário odiento e pelo menos tão anti-americano quanto Hugo Chávez e Ahmadinejad.

Pelo menos uma das faces de Obama que os eleitores americanos não conhecem é tão repugnante que, ao tomar conhecimento dela, você perde na hora todo interesse pelas “propostas de governo” que ele tenha a apresentar, e começa a se perguntar quanto o senso de moralidade dos dirigentes democratas precisou baixar para que aceitassem sepultar fatos tão essenciais e construir em cima do sepulcro a imagem integralmente postiça de um candidato confiável e tranqüilizante, do qual nada mais restasse a discutir senão suas “idéias”.

Essa face, invisível ao povo americano pelo menos até o último dia 10, quando o WorldNetDaily publicou as provas cabais da sua existência (v. http://www.wnd.com/index.php?fa=PAGE.view&pageId=77508), é a mais visível no Quênia, país onde Obama teve uma atuação política cem vezes mais decisiva, em escala local, do que jamais teve na América até o início da presente campanha eleitoral. Essa atuação consistiu em apoiar abertamente o líder queniano Raila Odinga e em tentar ]manipular em favor dele o próprio Senado americano. Odinga não é só um notório comunista e agitador anti-americano. É culpado de assassinato em massa. Em 2007, tendo perdido as eleições para presidente, ele desencadeou uma onda de violência, dirigida especialmente contra cristãos, mandando queimar mais de oitocentas igrejas, algumas com gente dentro, matando mais de mil pessoas e expulsando de suas casas aproximadamente quinhentas mil. A matança só parou quando Odinga foi nomeado primeiro-ministro. Obama não lhe negou apoio antes, durante ou depois desses acontecimentos.

Will e Dionne chamariam isso de “velhas ligações do tempo de Chicago”? Diriam que responsabilizar Obama por suas próprias ações em favor de Odinga é “inculpação por associação”, “insulto pessoal”, argumentum ad hominem? Achariam “surrealista” que alguém visse nessas ações um indício mais significativo da índole política e do caráter de Barack Hussein Obama do que suas promessas de campanha?

Não sei, mas sei o que eu diria no lugar deles: o destino que Obama prenuncia para a América não está nas suas promessas de futuro, mas nos fatos do seu passado.

Não chega a ser maravilhoso que um político tão enfatuado das suas “raízes africanas” se esmere tanto em esconder o mais importante episódio africano da sua biografia, que até hoje lhe rende a gratidão e o respeito dos seguidores de Odinga, ao ponto de prenderem e expulsarem do Quênia o repórter do WorldNetDaily, Jerome Corsi, enviado ao país para investigar o que Obama andara fazendo por lá?

Não há mais espaço no presente artigo para expor em detalhe outros capítulos edificantes desse exemplum vitae humanae que o pastor racista Louis Farrakhan chama, literalmente, “o Messias”. Digo apenas que ter uma carreira universitária integralmente financiada por árabes anti-americanos não é “culpa por associação”; receber ajuda de campanha do estelionatário Tony Resko e depois de eleito influenciar prefeituras para que investissem nos negócios dele não é “culpa por associação”; bloquear as medidas do governo destinada a frear os abusos de Fannie Mae e depois receber 100 mil dólares em contribuições dessa empresa não é “culpa por associação”; falsificar uma certidão de nascimento e usar de manobras judiciais para escapar à exigência de mostrar um documento autêntico não é “culpa por associação”; e muito menos é “culpa por associação” militar na Acorn (aquela que de quebra distribui milhares de títulos de eleitor falsos – v. http://news.yahoo.com/s/ap/20081009/ap_on_el_ge/voter_fraud) em favor de empréstimos bancários a devedores insolventes, e depois tentar despejar na conta dessa ONG vinte por cento dos lucros obtidos pelo governo na operação de socorro montada para tapar os rombos desses mesmos empréstimos. Nada disso é “culpa por associação”, e não há nada de surrealista em querer elucidar esses fatos. Surrealista é pretender que o eleitor pode chegar a uma escolha sensata ouvindo o que um candidato diz e fechando os olhos ao que ele fez. Naturalmente, quem ache o contrário é instantaneamente acusado de racista: prova inequívoca de que a campanha de Obama não usa de chantagem racial para proteger o candidato contra a revelação de seus crimes.

Relembrando o irrelembrável

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 14 de abril de 2008

O general e historiador comunista Nelson Werneck Sodré, descrevendo no seu livro A Fúria de Calibã os horrores apocalípticos da perseguição a intelectuais logo após o golpe de 1964, que ele não hesita em nivelar ao que sucedeu na Alemanha de Hitler, acaba se traindo ao relatar que, naquele mesmo período, publicou não sei quantos livros, teve não sei quantas críticas favoráveis, algumas entusiásticas, foi brindado com alguns prêmios literários e no fim ainda recebeu uma homenagem no Instituto Brasileiro de História Militar, em cerimônia realizada na presença… do presidente da República, marechal Humberto Castelo Branco.

Jamais um historiador consentiu em personificar tão escandalosamente um exemplum in contrarium da sua descrição geral dos fatos. É o esplendor da paralaxe cognitiva realçado por uma efusão de histrionismo macunaímico. Já imaginaram Fidel Castro prestando homenagem a um historiador anticomunista? Ou Hitler indo à Academia de Berlim para conceder honrarias universitárias a um cientista social anti-racista?

Nada mais ridículo do que a tentativa de pintar o regime de 1964 como uma ditadura totalitária, empenhada em sufocar o trabalho da inteligência em geral e o dos intelectuais esquerdistas em especial.

Na verdade, um breve exame dos anuários da Câmara Brasileira do Livro, como já apontou com mira certeira o embaixador J. O. de Meira Penna, basta para mostrar que nunca a indústria editorial esquerdista prosperou tanto como naquele tempo, tanto em volume de livros publicados quanto na absorção de generosas verbas governamentais distribuídas de maneira exemplarmente – ou ingenuamente — apolítica. Pouco antes de morrer, o saudoso Ênio Silveira, dono da maior editora comunista do país, a Civilização Brasileira, me confessou que sua empresa jamais teria chegado ilesa ao fim da década de 80 sem os subsídios que ele próprio ia esmolar pessoalmente nas altas esferas de um governo federal alegadamente empenhado – segundo hoje se ensina em todas as escolas — em esmagar no berço toda manifestação do pensamento esquerdista.

A demissão de umas dúzias de professores esquerdistas no começo do regime não os impediu de ensinar, nem de publicar livros, nem de escrever em jornais — só os privou de receber dinheiro público para fazer propaganda comunista. Se isso lhes doeu tanto, não foi porque sua exclusão da universidade oficial trouxesse algum dano substantivo à cultura brasileira (sob esse aspecto ela trouxe até algum benefício): foi porque o dinheiro público é o alimento essencial da elite esquerdista, a qual, como se confirmou abundantemente depois da sua ascensão ao poder, se acha credenciada por uma espécie de direito natural a consumi-lo em quantidades ilimitadas, sem ter de prestar contas e, a exemplo do MST, sem precisar nem mesmo assinar recibo.

As vítimas dessa odiosa essa privação alimentar, que foram aliás pouquíssimas, sobretudo em comparação com o número de intelectuais cubanos exilados, não sofreram nenhum entrave sério ao exercício das atividades culturais na iniciativa privada, onde, ao contrário, os empreendimentos esquerdistas proliferaram como nunca, entre outras razões pela ajuda milionária que começaram a receber de fundações estrangeiras, também sem nunca ter de prestar contas. Foi também durante os governos militares que os intelectuais e artistas de esquerda, pondo em prática os ensinamentos de Antonio Gramsci, trataram de abocanhar todos os espaços nas universidades, nas instituições culturais e na indústria editorial, desalojando um a um os conservadores que, quando veio a redemocratização, já estavam tão marginalizados e isolados que a eleição de Roberto Campos para a Academia Brasileira, em 1999, surgiu como uma anomalia escandalosa e quase inacreditável.

No domínio do jornalismo, só forçando muito a realidade os esquerdistas se poderiam queixar de perseguição, de vez que o órgão mais visado pela censura foi justamente o mais conservador de todos, O Estado de S. Paulo , enquanto os semanários esquerdistas superlotavam as bancas e sofriam incomodidades, é certo, mas nem de longe comparáveis à pressão contínua que o governo impunha ao jornal dos Mesquita (não venham com conversa para cima de mim, porque eu trabalhava lá nessa época e vi tudo de perto). A simples contagem de cabeças basta para mostrar que o relativo pluralismo existente nas redações em 1964 foi cedendo lugar à hegemonia esquerdista mais descarada, até o ponto de que, dos anos 80 em diante, os grandes jornais fizeram questão de ter pelo menos um direitista no seu corpo de articulistas para atenuar a impressão de uniformidade ideológica que fluía de cada uma de suas páginas, do noticiário policial até as colunas sociais, mas sobretudo das seções de arte e cultura, onde uma hegemonia se somava a outra. Coube a Paulo Francis, a Roberto Campos e depois a mim representar o papel dessas exceções que confirmavam a regra. Nos regimes totalitários, a opinião da mídia, por definição e por uma questão de mera sobrevivência, vai se amoldando cada vez mais ao discurso oficial, até desaparecer toda possibilidade de oposição. A história do jornalismo brasileiro nos vinte anos de governo militar seguiu o curso simetricamente inverso, com a mídia em peso apoiando o golpe em 31 de março de 1964 e depois tornando-se cada vez mais esquerdista até que, no fim do governo Figueiredo, já não sobrava nos jornais e canais de TV um só jornalista que ousasse se opor ao consenso esquerdista e mencionar em voz alta, mesmo com restrições, os méritos mais óbvios de um regime que alcançara progressos econômicos jamais igualados antes ou depois (a expressão “nunca nêfte paíf…” é um salto anacronístico de trinta anos).

Seja nos órgãos de educação e cultura, seja no jornalismo, a esquerda, em vez de ser calada e marginalizada, foi indo cada vez mais para o topo e falando cada vez mais alto, até que já não se podia ouvir nenhuma outra voz senão a sua: se tagarelice esquerdista fosse alta cultura, o tempo dos militares teria sido o apogeu da nossa história intelectual até então (digo “até então” porque nada se compara ao brilho e à majestade da Era Lula). Mas, como é difícil fazer-se de intelectual excluído e ao mesmo tempo imperar sobre a cultura de um país ao ponto de poder decidir quem entra e quem sai, a intelligentzia esquerdista se atrapalha um pouco na narrativa daquele período, ora chamando-o de “anos de chumbo”, ora de “anos dourados”. Talvez não seja confusão, é claro, apenas uma natural alternância estilística, conforme essa coletividade de pessoas exemplares deseje acentuar como tudo em volta era feio ou como ela própria era bela. A língua pérfida de Daniel Más dizia que a segunda dessas expressões se referia, na verdade, aos pacotinhos dourados em que a cocaína era entregue, na pérgola do Copacabana Palace, às estrelas das letras e das artes que ali se dedicavam mais altos afazeres intelectuais de que se tem notícia. Caso esta versão seja fidedigna, ela não suprime a anterior, antes a reforça metonimicamente, designando pela cor da embalagem o efeito do estupefaciente que induzia aquelas criaturas a imaginar que brilhavam como ouro sob um céu de chumbo.

***

Tive meus arranca-rabos com o general Andrade Nery e os teria de novo pelas mesmíssimas razões, mas não posso deixar de cumprimentá-lo por sua reação viril à tentativa de usar as Forças Armadas numa operação tão vexatória como a retirada dos agricultores brasileiros para dar lugar a uma “nação indígena”. Falando pelos companheiros de farda aos quais o código disciplinar impõe um mutismo indignado, o general disse o que todos os militares brasileiros gostariam de dizer: as Forças Armadas existem para defender o Brasil, não para destrui-lo sob pretextos politicamente corretos. Espero que a ocasião sirva para alertar o general quanto à verdadeira origem das pressões globalistas que ameaçam o futuro deste país, origem sobre a qual eu não poderia ser mais claro nem mais concludente do que fui nos meus antigos das últimas semanas.

 

Acordo secreto

Olavo de Carvalho


Diário do Comércio (editorial) , 29 de outubro de 2006

Da nossa geração não se pode dizer que viveu, mas que rastejou em silêncio: os jovens rumo à decrepitude, os velhos rumo a sepulturas sem honra.

(Tácito, historiador romano, c. 56 – c. 117 a. D.).

O ponto alto do debate de sexta-feira foi a declaração de Lula de que nenhum governo anterior investigou tão a fundo ou esteve tão bem informado sobre os crimes de corrupção quanto o seu. Não é mesmo maravilhoso que o mais avisado dos presidentes nada saiba dos crimes cometidos por cinco de seus próprios ministros? Não é uma delícia que o governo que enxerga tudo da delinqüência espalhada no país inteiro ignore o que se passa no Palácio do Planalto?

Mas não pensem que a inconsistência do seu próprio discurso seja motivo de preocupação para Lula. Estontear a platéia com um bombardeio de afirmações contraditórias tem sido há anos a técnica essencial da propaganda lulista. Na eleição de 2002, explorou-se até o limite da alucinação o paradoxo de um personagem que merecia ao mesmo tempo a compaixão devida aos iletrados e a reverência devida a um sábio, conhecedor profundo dos problemas brasileiros, doutor honoris causa e candidato virtual à Academia Brasileira de Letras. Agora, ele é simultaneamente o homem da visão de raios-x, a quem nenhum delito escapa, e o pobre ingênuo ludibriado por seus mais próximos amigos e colaboradores.

Mais ingênuo ainda, porém, é quem vê nisso uma prova de confusão mental e incompetência petista. Que incompetência mais estranha, essa que sempre vence a competência alheia! Na verdade, é impossível acreditar que, com tantos cientistas sociais, psicólogos, estrategistas e engenheiros comportamentais a serviço do PT e do Foro de São Paulo, ninguém ali tenha ensinado aos chefes da campanha petista as virtudes estupefacientes da estimulação contraditória e da dissonância cognitiva. Mas nem isso seria preciso: qualquer militante, minimamente treinado na dialética de Hegel e Marx para raciocinar segundo duas linhas de dedução opostas e explorar o duplo sentido das palavras e situações, está habilitado para fazer de trouxa os mais espertos empresários, políticos tradicionais e oficiais das Forças Armadas, viciados numa semântica literaralista e num raciocínio desesperadoramente linear.

Outro detalhe especialmente suculento do debate foi Alckmin enfatizar que os membros do PCC não são do seu partido, como quem diz que são do outro. Com isso ele mostrou saber da ligação íntima entre PT e PCC. Mas, se sabia, por que se calou? E, se preferiu calar, por que não o fez por completo? Por que deixou escapar uma alusão velada que pelo menos os telespectadores informados entenderam perfeitamente bem? O discurso de Alckmin está obviamente travado por algum controle oculto, a que ele, sem apreciá-lo, se curva por necessidade ou oportunismo.

Mas não é preciso sondar conspirações para explicar isso. Tanto o PT quanto o PSDB – e a quase totalidade das carreiras políticas nos outros partidos – nasceram da resistência à ditadura militar, quando a cumplicidade implícita da oposição moderada com a esquerda terrorista era condição indispensável à sobrevivência de ambas. Removido o inimigo comum, perseverou a obediência ao pacto de lealdade: a disputa é legítima, mas denunciar a trama revolucionária da esquerda radical é “fazer o jogo da direita”. Por mais que a esquerda assanhada os rotule de direitistas – e é um alívio para ela tê-los como extremo limite do direitismo admissível –, os tucanos e tutti quanti ainda são, no seu próprio entender, herdeiros morais da tradição esquerdista, de vinte anos de luta que culminaram na lei de anistia e nas “Diretas Já”. A nação inteira está sendo enganada por esse acordo secreto entre irmãos inimigos. Tucanos e similares podem acusar a petezada de crimes menores, mas denunciar a criminalidade pesada, o narcotráfico, os seqüestros, os homicídios, seria trair a causa comum, o objetivo mútuo de varrer a direita do mapa mediante a total ocupação do espaço pelas disputas internas entre a esquerda e a direita da esquerda.

Pode ter havido um acordo explícito nesse sentido, e informações recentes sugerem que houve. Mas nem era preciso: o ódio comum ao fantasma da “direita”, somado à origem uspiana comum das duas esquerdas, é suficiente para persuadir a ala moderada das vantagens de uma luta fingida, travada sobre um fundo de cumplicidade tácita com a ala revolucionária, terrorista, seqüestradora e narcotraficante. Sem contar, é claro, o fato de que muitos dos moderados do tempo da ditadura não o eram senão em aparência, já que pertenciam às mesmas organizações dos terroristas, apenas desempenhando nelas as funções de camuflagem legal, de acordo com a técnica da duplicidade de vias que é uma constante da estratégia comunista desde Lênin.

A geração inteira dos políticos que fizeram carreira na “luta contra a ditadura”, em suma, está comprometida a ocultar e proteger a violência da esquerda radical. Pode-se combater a “corrupção”, usando a mesma linguagem com que se denunciaria a “direita” se no poder ela estivesse. “Colarinho branco”, afinal, é expressão que tem óbvias ressonâncias de luta de classes. Serve para ser usada pelas duas alas. Mas seqüestros, homicídios e narcotráfico são sacrossantos: são as armas da revolução. Denunciá-los seria traição à causa comum de todas as esquerdas. Por isso o pacto de silêncio domina não só a política partidária, mas a grande mídia inteira, dirigida por gente da mesma geração e da mesma extração ideológica de tucanos e petistas. Alckmin pode odiar esse pacto, mas sabe que violá-lo às escâncaras seria condenar-se ao ostracismo definitivo entre os “filhotes da ditadura”. Ele pode sussurrar insinuações entre dentes, mas jamais revelará em voz alta o segredo tenebroso em que assenta, há vinte anos, toda a política nacional.

A conjunção dos dois fatores aqui assinalados – o uso maciço da estimulação contraditória e o pacto geracional de silêncio em torno dos crimes maiores da esquerda – basta para explicar toda a decadência moral e intelectual do Brasil ao longo de duas décadas. A geração de políticos, jornalistas e intelectuais que hoje está por volta dos sessenta anos – a minha geração – é a mais perversa e criminosa de todas quantas já nasceram neste país. Ela é culpada da idiotização e dessensibilização moral do país, origem de todos os crimes que hoje culminam na matança anual de cinqüenta mil brasileiros. Comparados a essa geração, os mais bárbaros torturadores do Dói-Codi eram apenas aprendizes na escola da delinqüência.

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