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O direito de insultar

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 22 de dezembro de 2005

Raros presidentes americanos tiveram planos tão ambiciosos como George W. Bush, e a razão pela qual ele é tão odiado é que esses planos, aparentemente inviáveis mesmo a longuíssimo prazo, estão se realizando com velocidade alucinante. A consolidação da democracia no Iraque é tão irreversível que a minoria sunita desistiu de boicotar o processo e até os terroristas abdicaram de tentar anarquizar as últimas eleições (o número de ataques baixou em setenta por cento). Os países em torno improvisam reformas, não querendo ser passados para trás pela onda democratizante, enquanto as tropas americanas continuam firmes no apoio às metas do presidente, resistindo a todas as chantagens e seduções que, na guerra do Vietnã, debilitaram tão facilmente o seu espírito de combate.

Espalhar a democracia no Oriente Médio é uma realização que não fica abaixo da vitória de Ronald Reagan na Guerra Fria. A diferença é que esta se tornou visível da noite para o dia, com a queda do muro de Berlim e a autoliquidação da URSS, ao passo que os resultados visados pelo presidente Bush só podem aparecer aos poucos, espalhados em diversos países e diluídos no fluxo de notícias desfavoráveis que a oposição democrata, firmemente encastelada na grande mídia, produz diariamente para encobri-los.

“Notícias” não é bem a palavra. “Factóides” seria mais apropriado. No começo, impressionaram muito. Chegaram quase a persuadir a opinião pública de que gritos, sustos e gozações humilhantes, impostos a terroristas presos em Guantanamo ou Abu-Ghraib, eram crimes contra a humanidade comparáveis às torturas físicas hediondas que levam os prisioneiros políticos de Cuba, da China ou das ditaduras islâmicas ao desespero e à morte. Aos poucos, a diferença escamoteada acabou aparecendo naturalmente. A orquestra de exageros premeditados conseguiu mesmo é dissolver o impacto da palavra “tortura”, fazendo dela uma mera figura de linguagem.

Houve também as denúncias escabrosas contra figurões do Partido Republicano. Mas os lucros fabulosos da Hallyburton no Iraque acabaram se mostrando inexistentes, enquanto a acusação de “ruptura de sigilo” jogada contra o vice-presidente Dick Cheney vai se revelando cada vez mais uma pegadinha montada pelo marido mentiroso de uma agente da CIA. E, vendo que as imputações criminais lançadas contra Tom De Lay não vão mesmo dar em nada, os democratas já passaram ao plano B: espalhar na mídia que o ex-líder republicano na Câmara gasta muito dinheiro de campanha passeando de avião e hospedando-se em hotéis de cinco estrelas. Mesmo que nisso De Lay não ficasse muito abaixo da gastadora Hillary, restaria ainda a pergunta: E daí?

Revoltados de ter de contentar-se com resultados jornalísticos, sem trazer dano judicial substantivo ao entourage do presidente, os democratas voltaram seu ódio contra os jornalistas conservadores. Queriam vingar-se das revelações desmoralizantes que acabaram com a carreira de Dan Rather e baixaram as vendas do New York Times . Gastaram uma nota preta em investigações para queimar alguma reputação, mas tudo o que conseguiram foi descobrir que o radialista Rush Limbaugh, desde uma operação na coluna, ficara viciado em analgésicos. Rush passou umas semanas entalado numa confusão judicial, mas emergiu mais perigoso e aplaudido do que antes.

Então os frustrados, no auge do desespero, resolveram vingar-se em alguém mais fraco: saltaram sobre Michele Malkin, uma linda colunista filha de imigrantes vietnamitas, que escreve artigos arrasadores contra o esquerdismo chique do establishment democrata. Mas, não descobrindo nada contra ela, espalharam na internet o grito de dor da impotência enraivecida: “Alguém precisa dar um tiro entre aqueles dois olhinhos puxados.”

A própria Michele, notando os progressos da apelação entre as fileiras da esquerda, dedicou a eles seu último livro, Unhinged: “Destrambelhados”. É a palavra que melhor descreve o estado de espírito de uma facção que, vendo desfazer-se um a um seus ideais, seus argumentos, sua razão de ser, já não dispõe senão do último consolo: o direito de insultar.

Mas o esvaziamento moral não significa, ainda, derrota publicitária ou eleitoral. As realizações de Bush, complexas e abrangentes, precisam de tempo para consolidar-se e ser compreendidas pelo público. Enquanto isso, a confusão favorece o adversário. A curto prazo, o xingamento puro, sem pé nem cabeça, pode ainda ser uma arma mortífera.

Lá vem encrenca

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de dezembro de 2005

WASHINGTON, D.C. – Quarta-feira da semana passada, li num despacho da agência Efe, reproduzido em vários jornais brasileiros, o seguinte: “ O presidente George W. Bush afirmou hoje que admite a responsabilidade pelos erros existentes nos dados dos serviços de Inteligência, que foram determinantes na decisão de lançar a guerra contra o Iraque”. O jornalista que escreve uma coisa dessas deveria ser processado e preso por fraude. Bush, que não teve responsabilidade nenhuma por aqueles erros, estaria mentindo contra si mesmo se a assumisse. Ele se declarou responsável pela decisão de ir à guerra, não pela produção dos erros de inteligência que afetaram parcialmente essa decisão. O texto do seu discurso do dia 13 é claro e não dá margem a nenhuma confusão entre uma coisa e outra. O despacho da Efe é, com toda a evidência, falsificação proposital, não sei se fabricada diretamente pela agência internacional ou resultado de maquiagem aplicada nas redações brasileiras. Mas, como se sabe, contra Bush vale tudo. Nos EUA, todo mundo entendeu o pronunciamento do presidente como um sinal de recuperação do seu poder de iniciativa depois de um período de inércia e paralisia. O discurso atemorizou e confundiu os democratas, ao ponto de jogá-los num esforço desesperado para tentar apagar da memória pública a pregação derrotista de uns dias atrás, com que esperavam fazer dano ao presidente e que só serviu para colocá-los numa posição humilhante. O discurso foi, manifestamente, uma vitória de George W. Bush. Transformar uma exibição de superioridade moral numa patética confissão de culpa é o suprassumo da falsificação.

Ademais, as informações que Bush recebeu do serviço secreto britânico sobre armas de destruição em massa não estavam tão erradas quanto o público imagina. Muitas dessas armas foram realmente encontradas (já mencionei aqui a lista publicada no livro de Richard Miniter, Disinformation). Dizer que elas não existiam, que Bush as inventou, é desinformação criminosa, colaboração ativa com o inimigo. Bush sabe disso, mas o número de traidores nos altos círculos de Washington é tão grande que, se ele dissesse a verdade a respeito deles, desencadearia a maior crise política da história americana. Ele tem procurado contornar a situação, tentando desarmar os traidores pouco a pouco, discretamente, ao mesmo tempo que, em público, os trata como se fossem patriotas bem intencionados. Aqui todo mundo sabe que é fingimento, que a elite esquerdista do Partido Democrata é uma quinta-coluna, que Bush está simplesmente tratando de ganhar terreno aos poucos por não sentir que tem força para sustentar ao mesmo tempo uma guerra no exterior e uma crise de governabilidade no interior. Os Clintons, os Kennedys e tutti quanti , por sua vez, fazem de conta que querem a volta dos soldados americanos, mas, na hora H, votam contra ela. Agem assim porque sabem que, quando Bush se livrar da carga iraquiana, estará pronto para esmagá-los como quem pisa numa lagartixa. Ele tem informações suficientes para mandar muitos deles para a lata de lixo ou para a cadeia. Tem evitado usá-las, porque isso seria o fim do Partido Democrata, a destruição do tradicional equilíbrio bipartidário que é a base da democracia americana. Mas, se acuado, não terá remédio senão lançar o ataque final. E aí haverá choro e ranger de dentes. Os republicanos estão tão armados que têm medo de si mesmos.

Um item importante do arsenal, guardado com a maior discrição durante meses e que está para ser liberado pelo secretário Rumsfeld para discussão no Congresso, é o sumiço de um dossiê que, um ano antes do 11 de setembro, revelava a presença em território americano de uma célula da Al-Qaida chefiada pelo terrorista Mohammed Atta, um dos mentores do atentado ao World Trade Center. Na época, o investigador do Departamento de Defesa que estava seguindo essa pista, o tenente-coronel Tony Shaffer, foi simplesmente impedido de passar a informação ao FBI, que assim não pôde desmantelar a célula. Impedido por que? Porque o então presidente Clinton – conforme escrevi na Zero Hora de Porto Alegre 30 de maio de 2004 – “havia centralizado na Casa Branca o controle direto de todos os órgãos de segurança e bloqueado propositadamente as comunicações entre eles. A CIA, o FBI e outras agências estavam então conduzindo investigações paralelas sobre as verbas ilegais de campanha dadas ao candidato Clinton pelo exército da China e os subseqüentes favores que, uma vez eleito, o gratíssimo presidente prestou aos serviços de espionagem chineses. Sem intercâmbio de informações, os investigadores não puderam, na época, juntar os fios da trama.”

Paulo Francis costumava dizer que Clinton sairia da Casa Branca algemado. Saiu livre, mas a nação pagou por isso um preço intolerável: as informações sobre Mohammed Atta não chegaram ao FBI e a operação terrorista que poderia ter sido abortada foi levada a cabo com sucesso literalmente… estrondoso. Foi decerto o maior crime que um presidente dos EUA já cometeu contra o país, com o agravante do motivo torpe: esquivar-se de pagar por um crime anterior.

Mas a sujeira não terminou aí. Em 2003, estava reunida a famosa comissão parlamentar de inquérito cuja principal ocupação foi abafar a responsabilidade do Congresso pela declaração de guerra baseada em informações inexatas e jogar a culpa de tudo em George W. Bush. Ela improvisou para isso até mesmo um heroizinho postiço, Richard Clarke, que brilhou por quinze minutos e depois desapareceu para sempre na noite dos tempos quando se comprovou que não só seu depoimento era falso como sua identidade também era (isso já deveria ter bastado para esvaziar a comissão, mas a mídia, que emprestara todos os seus megafones a Clarke, foi discretíssima ao noticiar sua desmoralização). Pois bem: o coronel Shaffer passou a essa comissão um dossiê com todas as informações sobre a célula de Mohammed Atta e sobre a supressão delas pelo governo Clinton. A comissão fez de conta que não viu. No seu relatório final, um tratado de antibushismo, nem sequer mencionou o dossiê. Nenhuma ocultação de crime é perfeita se não se oculta a si mesma. A comissão completou o trabalho sujo de Bill Clinton.

Para vocês entenderem por que ela fez isso, têm de saber um detalhe: a assessora que Clinton designou para tapar os canais de comunicação entre os serviços de inteligência chamava-se Jamie Gorelick. Quem é ela? Entre os favores prestados pelo governo Clinton à China em retribuição da ajuda de campanha, favores que os órgãos de inteligência estavam justamente investigando na ocasião, estava a permissão dada a uma subsidiária da General Electric para vender ao exército chinês equipamentos que, segundo se revelou depois, serviam para a fabricação de mísseis intercontinentais direcionados ao território norte-americano. Jamie Gorelick era advogada dessa subsidiária. Se ela tivesse saído do palco no fim do governo Clinton já teria levado para casa uma bela folha de serviços criminosos. Mas em 2003 ela era deputada — e foi designada para qual comissão? Essa mesma comissão da qual eu estava falando. Ou seja: a criadora do bloqueio geral que paralisou os serviços de segurança e possibilitou o atentado de 11 de setembro foi encarregada de investigar as falhas de segurança que possibilitaram o atentado de 11 de setembro. Não é de espantar que o dossiê de Tony Shaffer fosse para o beleléu.

O tenente-coronel, depois disso, andou denunciando a sujeira toda, com o apoio do deputado Curt Weldon (que já mencionei aqui). Mas a denúncia teve boa cobertura só na Foxnews, em programas de rádio, na internet e nuns poucos jornais pró-Bush. A grande mídia, que tem mais amor por Bill Clinton do que a mãe dele, abafou a história até fazê-la desaparecer por completo. E o próprio presidente Bush, cuja persistente discrição quanto aos crimes dos seus adversários políticos beira a abnegação suicida, simplesmente proibiu que Weldon convocasse Shaffer a depor no Congresso. Às vezes não entendo a cabeça desse sr. Bush, uma espécie de Gonçalo Ramires americano, tão desengonçado, tão inarmônico consigo mesmo, tão ousado numas coisas e tímido em outras quanto o personagem de Eça de Queiroz. O homem capaz de declarar guerra ao mundo parece preferir antes deixar que os adversários internos o matem a agulhadas do que jogar logo sobre eles a bomba que tem na mão, capaz de destrui-los todos de uma vez. Ele me lembra o verso de Rimbaud, “ par délicatesse j’ai perdu ma vie ”. Mas, quaisquer que fossem as suas razões íntimas para manter o silêncio, elas parecem não ter resistido à queda de popularidade. Curt Weldon disse esta semana na CNN que o secretário Rumsfeld está para liberar a convocação de Shaffer. “Finalmente o povo americano vai saber a verdade”, afirmou o deputado. Quando acontecer, nem todo o clintonismo da mídia chique poderá abafar a explosão. Talvez nem mesmo a mídia brasileira, a mais mentirosa do mundo, consiga esconder um escândalo desse porte.

A campanha de ódio movida pelos democratas contra George W. Bush é tão violenta, tão histriônica, tão forçada, tão desproporcional com os modestos pecados do presidente – e sobretudo tão injusta para com o sucesso alegadamente impossível que ele está obtendo em consolidar a democracia no Iraque –, que não pode se inspirar tão-somente em motivos ideológicos. A eles soma-se uma desesperada articulação de esforços para salvar a pele de Bill Clinton, de Jamie Gorelick e da comissão do 11 de setembro inteira. É preciso muitos crimes imaginários para encobrir tanta corrupção, tanto perjúrio, tanta alta traição. Tal como aconteceu com o PT no Brasil, os campeões do moralismo indignado, os donos da tribuna de acusação, acabarão se revelando os maiores criminosos de todos. Weldon e Shaffer são dois rottweilers mantidos na coleira só pela mão incerta de Donald Rumsfeld. O secretário está só medindo o tamanho da encrenca que a dupla vai armar quando ele a soltar no galinheiro democrata. E parece que está começando a gostar da idéia.

***

Estou acompanhando, divertido, o bate-boca entre Diogo Mainardi e Alberto Dines sobre quem manda no jornalismo brasileiro, o PT ou a Opus Dei. Até o momento, dez a zero para o Mainardi. Dines não conseguiu apontar um só agente daquela organização católica nos altos escalões da mídia nacional. Se algum há, está bem camuflado ou é um monstro de timidez, pois não ousa sequer dizer uma palavrinha contra o anticristianismo militante que erigiu em norma de redação o hábito de carimbar de “extremismo de direita” a simples oposição à lei do aborto. Diga-se de passagem que o próprio Mainardi aprova essa lei, apenas recusando-se a defendê-la pelos meios torpes que se tornaram de praxe entre os coleguinhas – e essa recusa já basta, é claro, para que ele próprio seja catalogado na temível “extrema direita”.

O “Observatório da Imprensa” de Alberto Dines não é uma entidade independente. É um órgão militante, ponta-de-lança do esquerdismo internacional que lhe paga as contas. Já provei isso e nunca fui desmentido. Mainardi, que eu saiba, não recebe dinheiro de nenhuma organização política, mas, pelos critérios da esquerda, o simples salário de jornalista profissional, tão limpo quando pago a esquerdistas, se torna uma espécie de propina corruptora quando vai parar num bolso politicamente incorreto. No jornalismo brasileiro, todos os valores foram invertidos. Quando Dines é subsidiado diretamente pelos interesses políticos que defende, pratica jornalismo idôneo ao ponto de ser aceito como juiz da credibilidade alheia. Quando Mainardi escreve com liberdade aquilo que pensa, é um corrupto a soldo de interesses tenebrosos.

É de espantar que, quantos mais brasileiros aprendem a ler, menos sejam entre eles os interessados em ler jornal?

Absurdo monumental

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 22 de agosto de 2005

Enquanto o povo inteiro se emociona com a mirabolante sucessão de escândalos do Mensalão, outros acontecimentos, mais discretos porém ainda mais reveladores da ruína moral e intelectual da nação, podem passar totalmente despercebidos.

Escolhi este porque é, em si, um monumento ao desastre.

O leitor sabe que quem torce pelo Flamengo é flamenguista, quem vota no Maluf é malufista, quem se dói de amores por Lula é lulista, quem quer ver o comunismo implantado no mundo é comunista. Mas, segundo decisão unânime da Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais do DF, quem defende a prática do aborto não pode ser chamado de abortista. Ah, isso não. O Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz, do Pró-Vida de Anápolis, SP, entidade que luta contra a legalização do aborto, foi condenado a pagar R$ 4.250,00 de multa por ter designado com esse termo uma notória defensora (bem subsidiada pela fundação MacArthur, é claro) do direito de matar bebês no ventre de suas mães, em quantidade ilimitada, a mero pedido das ditas cujas. Pior: o sacerdote foi informado pela autoridade judicial de que doravante deve abster-se de usar a palavra proibida não só ao falar da mencionada senhora, ou senhorita, mas de qualquer outra pessoa, por mais abor(CENSURADO)ista que seja.

Não sei o nome dos juízes que compõem a Turma. Mas sei que das duas uma: ou a proibição que baixaram se aplica a todos os cidadãos brasileiros ou exclusivamente ao Pe. Lodi. Na primeira hipótese, os signatários dessa nojeira ultrapassaram formidavelmente suas atribuições de magistrados e se autopromoveram a legisladores, com o agravante de que usaram dessa inexistente prerrogativa para instaurar, pela primeira vez na História universal da jurisprudência, a proibição de palavras (e logo de um termo banal do idioma, consagrado em dicionários e em pelo menos 24 mil citações no Google). Na segunda, terão negado a um cidadão em particular o direito de livre expressão desfrutado por todos os demais, configurando o mais descarado episódio de discriminação pessoal já registrado nos anais do hospício judicial brasileiro.

Num caso, usurpam a autoridade do Congresso e a usam para baixar uma lei digna da Rainha de Copas. Noutro, infringem a Constituição que lhes incumbe defender.

Bem, uma ordem que tem dois significados possíveis, antagônicos entre si e cada um absurdo em si mesmo, é, com toda a evidência, uma ordem sem significado nenhum.

Como obedecê-la, portanto? Obedecer a uma ordem é traduzir o seu significado em atos. Não havendo significado, a obediência é impossível. Ninguém pode se curvar a ela sem anular, no ato, os princípios constitucionais e legais que fundamentam a autoridade mesma de quem a emitiu.

Aos juízes da Turma Recursal cabe, portanto, a invenção desta novidade jurídica absoluta: a sentença auto-anulatória.

Se pretendem seriamente que ela seja cumprida, portanto, os magistrados brasilienses violam não somente um dos princípios fundamentais do Direito, que reza “ad impossibilia nemo tenetur” (ninguém é obrigado a fazer o impossível), mas também as leis da lógica elementar, a ordem causal da ação humana e, enfim, a estrutura inteira da realidade. Perto disso, aquele famoso prefeito de cidade do interior que mandou revogar a lei da gravidade foi um primor de modéstia, já que suspendeu somente uma das leis da mecânica clássica, deixando o resto da ordem universal em paz. O próprio Deus jamais sonhou remexer tão fundo os pilares do cosmos como o pretenderam os meritíssimos, já que anunciou desfazer no Juízo Final tão-somente o universo corpóreo presentemente conhecido, conservando intactos o princípio de identidade e os nexos de causa e efeito, sem o que não poderia julgar os vivos e muito menos os mortos. Sto. Tomás de Aquino ensinava que a onipotência divina não tem limites externos mas os tem internos: não pode anular-se a si própria, decretando uma absurdidade intrínseca. Para os juízes da Turma Recursal, isso não é obstáculo de maneira alguma.

Se os leitores pensam que a comédia parou por aí, enganam-se. Uma sentença que não tem sentido lógico requer interpretação psicológica. Mas quando tentamos sondar a obscuridade mental de onde suas excelências extraíram o fruto patético de suas caraminholações, defrontamo-nos com uma dificuldade insuperável: ou esses juízes compreendem o sentido do que assinaram, ou então assinaram a esmo, de supetão, num arrebatamento paroxístico que só poderia alegar em defesa própria o atenuante da insanidade. No primeiro caso, são um grupo revolucionário místico-gnóstico pelo menos tão perigoso quanto o de Jim Jones, empenhado em corrigir os erros do Todo-Poderoso mediante a supressão da realidade. No segundo, estão absolutamente incapacitados para a função judicial ou aliás para qualquer outra, sendo obrigação da corregedoria removê-los imediatamente do cargo e devolvê-los aos cuidados de suas respectivas mães, para que estas apliquem nos seus bumbuns os corretivos requeridos em casos de molecagem intolerável.

Incapaz de atinar com algum sentido lógico ou psicológico na enormidade judiciária brasiliense, acredito no entanto que posso encontrar para ela uma explicação sociológica: Suas Excelências são o produto acabado da universidade brasileira. Quatro décadas de desconstrucionismo, multiculturalismo, “direito alternativo”, teologia da libertação e slogans politicamente corretos, sem nenhum contrapeso de racionalidade científica e educação clássica, bastam para infundir em pessoas clinicamente sãs a doença espiritual do irracionalismo anticósmico, de modo que, continuando a agir de maneira normal no dia a dia, são subitamente atacadas de autodivinização aguda quando no exercício de alguma função que lhes pareça ter relevância ideológica. Aí, sem a menor hesitação de consciência, passam a exigir que dois mais dois dêem cinco, que os pássaros voem para trás, que as vacas produzam vinho francês em vez de leite e que a soma dos ângulos internos dos triângulos dê 127,5. E fazem tudo isso acreditando cumprir uma alta missão ético-social. Já vamos para a terceira geração de estudantes brasileiros afetados por essa grotesca deformidade do espírito. Não é de espantar que, elevados ao cargo de magistrados, esses meninos tenham alguma dificuldade de discernir entre a toga judicial e a capa do Super-Homem.

Pompeius Minimus

Como não há nenhuma direita politicamente atuante no país, a esquerda a toda hora inventa uma, para lançar sobre ela as culpas de seus próprios crimes ou simplesmente para não ter de confessar que não tem antagonistas, que todo o seu heroísmo consiste em brandir uma espada de papelão contra sua própria sombra, num palco vazio. Mas, sendo difícil apontar nomes representativos de uma corrente política inexistente, é natural que, ao selecionar suas vítimas pré-alvejadas, ela dê preferência aos personagens mais execrados do dia, atribuindo postiçamente um sentido ideológico a atos cometidos em mero interesse próprio, de modo que a direita assim surgida ex nihilo pareça não somente existir como também ser algo de indiscutivelmente ruim. Às vezes, porém, o truque falha – pois é difícil fazer o povo enxergar algum conteúdo doutrinal nas mesquinhas bandalhices de um João Alves ou do Juiz Lalau. Nesses casos, a esquerda apela ao recurso extremo de usar alguns de seus próprios membros como palha para estufar o espantalho direitista, como fez com a família Sarney, com a socialdemocracia tucana e por fim com a mídia inteira. Essa ingratidão dos diabos, que num instante atira ao lixo pais, protetores, amigos e cúmplices de uma vida inteira, também traz algum benefício secundário, na medida em que prepara a opinião pública, sutilmente, para acostumar-se à idéia de viver no futuro paraíso socialista, onde as únicas correntes políticas existentes serão a esquerda da esquerda, o centro da esquerda e a direita da esquerda, tudo isso reunido sob o nome de “democracia aprofundada”.

Em qualquer das duas opções, porém, a verossimilhança do boneco falhava num ponto. Que raio de direita era aquela, que nunca aparecia numa manifestação pública, que não tinha um jornal ou revista para leitura de seus militantes, que não fazia uma assembléia, uma reunião, um debate interno sequer? Como era possível que uma força onipotente, causadora de todos os males do país, só pudesse ser designada por seus efeitos remotos, sem jamais ser vista fisicamente em parte alguma?

Como era possível que figuras tão inconexas como, por exemplo, Paulo Maluf, José Serra, Jair Bolsonaro, o embaixador dos EUA e até eu, que nunca nos falamos nem tivemos motivo para isso, compuséssemos, sem sabê-lo, uma força política coesa, organizada, capaz de bloquear maldosamente a marcha das forças populares em direção à glória final do socialismo? Que laço misterioso, que magnetismo desconhecido nos reunia em algum salão secreto da terra do nunca, tomava decisões em nosso nome sem nos avisar, baixava instruções aos esquadrões etéreos de nossos militantes compostos de pura antimatéria e, assim, impunha por toda parte o poder temível da “direita”?

Não, não era possível continuar assim. Algum sinal físico da existência da maldita direita tinha de ser inventado. A oportunidade para isso apareceu por pura sorte, faz uma semana.

Foi o seguinte:

Gostem ou não gostem, o deputado Roberto Jefferson é a principal atração do circo nacional. Todos querem vê-lo, ouvi-lo, decifar o enigma do herói-patife que mandou para o beleléu a própria carreira política pelo simples prazer — sublime, admito — de fazer em cacos a indústria petista do crime. A Associação Comercial de São Paulo não escapou à curiosidade geral. Cometeu a imprudência de convidar seus membros e o público em geral para tirar as dúvidas numa conversa direta com o personagem. Mal sabia ela, com todos os seus cento e tantos anos de experiência, que a malícia esquerdista consegue transformar qualquer coisa em qualquer outra coisa e ainda chamar isso de “jornalismo”. Encarrega-se da mágica, desta vez, Roberto Pompeu de Toledo, tardio homônimo do general romano Pompeius Magnus, que não enfrentou as legiões de César mas realiza semanalmente proeza ainda mais dificultosa, provando que é possível fazer sucesso no jornalismo opinando com desenvoltura e segurança sobre assuntos dos quais não tem a mínima idéia. Nas mãos desse enrolador emérito, o encontro realizado no Hotel Jaraguá transmuta-se – por fim! – numa manifestação política da “direita”, com o deputado Jefferson transfigurado no Newt Gingrich brasileiro e a platéia casual, com todos os seus Pompeus de Toledo inclusos, numa massa de militantes a delirar de “entusiasmo adolescente” (sic) ante as propostas maquiavélicas de um plano de ação reacionário.

Uma vez provada assim a existência da direita organizada, Pompeius Minimus passa à etapa seguinte: desmoralizar o inimigo antes de lhe dar tempo de passar da hipótese à realidade. Nada melhor, para esse fim, do que imputar-lhe conteúdos ideológicos inexistentes, criados por simples inversão dos méritos auto-atribuídos da esquerda. Assim, pois, se esta se alardeia a rainha da justiça social, a direita tem de ser, naturalmente, a apologista das desigualdades. Pouco importa a Pompeius Parvus que só o capitalismo tenha conseguido dar aos pobres alguma existência digna, ou que a distância econômica entre pobres e ricos, no socialismo, seja consolidada pela exclusão política dos descontentes, tornando oficial e definitiva a barreira entre as classes. Tratando-se de tomar palavras por coisas, o simples contraste semântico entre os termos “igual” e “desigual” basta como prova da infinita superioridade moral do socialismo.

Num giro verbal ainda mais suíno, Pompeius Minor atribui aos conspiradores da direita a intenção de queimar a reputação dos esquerdistas por meio do argumento retoricamente suicida de declarar que “eles são tão ruins quanto nós”. Quem lê jornal sabe que apelar ao equivalentismo moral tem sido o último recurso do partido governista surpreendido com as calças na mão. Por meio desse expediente, ele procura atenuar as diferenças brutais entre a corrupção avulsa e incruenta de seus antecessores e o império petista do crime com todo o seu envolvimento em homicídios, conspiração com narcoterroristas internacionais e suborno maciço da classe política praticamente inteira. Pompeius Infimus eleva à enésima potência a eficácia desse truque infame, colocando-o na boca dos próprios difamados. Se ele pensa que engana a alguém com essa porcaria, deve ter razão. O Brasil está tão maluco que o pessoal já não se contenta com acreditar em duendes, mulas sem cabeça, extraterrestres, cachaça diet e propaganda petista: acredita em Roberto Pompeu de Toledo.

Em tempo

1) Tal como anunciei aqui, George W. Bush acaba de nomear Thomas Shannon para o lugar do mocorongo Roger Noriega. Péssima notícia para Hugo Chavez.

2) A mídia nacional não está prestando atenção ao acontecimento mais importante do momento: as manobras militares conjuntas da China e da Rússia. O grande eixo do mal, quebrado pelo ex-presidente Reagan, começa a soldar-se de novo.

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