Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 26 de fevereiro de 2007
Quando a verdade se torna óbvia demais e as mentes obstinadas continuam a negá-la sem que se possa acusá-las de ocultação interesseira, então estamos diante daquele fenômeno que Eric Voegelin chamava “estupidez criminosa” – o abuso intolerável do direito à imbecilidade. O grande filósofo germano-americano usou o termo para designar a conduta mental das elites alemãs que teimaram, até o fim, em não enxergar o perigo do nazismo. Mas os exemplos do fenômeno estão por toda parte, e não cessam de se multiplicar.
Há tempos venho afirmando que a ingerência estrangeira na América Latina não tem nada a ver com o bom e velho “imperialismo ianque”; que existe um novo e mais formidável imperialismo em ação no mundo; que ele planeja nada menos do que dominar a espécie humana inteira por meio de um governo global a ser instaurado pela ONU no prazo máximo de uma década; que ele é ostensivamente anti-americano, tendo entre seus objetivos explícitos a dissolução dos EUA como nação independente e sua submissão a uma administração internacional; que ele apóia e subsidia a esquerda do Terceiro Mundo, especialmente a da América Latina, na qual vê o instrumento primordial para realizar, neste continente, uma das integrações regionais calculadas para culminar na integração político-administrativa do planeta.
É inútil responder com o estereótipo “teoria da conspiração”. Não há conspiração nenhuma: é tudo aberto, oficial, documentado. Está visível aos olhos de todos, em dezenas de resoluções da ONU, em compromissos assinados entre chefes de Estado, em livros assinados por luminares do pensamento globalista, homens célebres como Gorbachev e George Soros, que gritam do alto dos telhados seus planos e intenções. Ainda assim milhões de patetas olham tudo com incredulidade beócia e, afetados da “síndrome do Piu-Piu”, continuam perguntando se viram o que viram e se o que aconteceu aconteceu.
Já escrevi centenas de páginas a respeito, já mostrei fontes e documentos, já rebati cada objeção com toda a meticulosidade e rigor – mas a burrice, quando reforçada pelo medo, é invencível.
Muitos, a pretexto de “nacionalismo”, continuam voltando suas baterias contra os EUA, sem perceber – ou sem querer perceber – que o enfraquecimento da nação americana é do interesse máximo do esquema globalista, que sem destruir a soberania do país mais forte será inútil para os pretendentes ao governo do mundo eliminar a dos mais fracos.
Mesmo agora, quando o sr. Hugo Chávez proclama aos quatro ventos sua intenção de dissolver as nações do continente numa república dos “Estados Unidos da América do Sul” ( http://www.dcomercio.com.br/noticias_online/758684.htm), os idiotas continuam achando que apoiá-lo na sua campanha contra os EUA é “defender a nossa soberania”. Mesmo agora não querem enxergar a articulação patente entre a revolução chavista e o plano do CFR (Council on Foreign Relations) de fundir os EUA, o México e o Canadá numa “North American Commonwealth”.
Contra a estupidez maciça não há argumento. Desisto. Chamem o Alborghetti. Só ele é capaz de discutir com essa gente num nível que ela compreende. Voegelin aplaudiria entusiasticamente o vocabulário dele em tais circunstâncias.
A fraqueza maior da direita
Independentemente e acima das definições mutáveis que os grupos políticos dão a si mesmos e a seus adversários, existe a realidade histórica que o estudioso pode apreender desse mesmo conjunto de mutações tal como aparece num período de tempo suficientemente longo. Historicamente – não ideologicamente – “esquerda” é o movimento revolucionário mundial, “direita” é a reestabilização periódica da sociedade segundo o arranjo possível entre os valores tradicionais da civilização judaico-cristã e o estado de coisas criado pelas expansões e retrações do movimento revolucionário a cada etapa do processo histórico.
Nesse sentido – e só nele –, sou, com toda a evidência, um direitista. Também nesse sentido é corretíssima a denominação que os esquerdistas deram à direita em geral: “reação”. O fator ativo da história dos três últimos séculos é a revolução; a direita é meramente “reativa”. Mas também aqui é preciso distinguir entre a “reação” em sentido historicamente objetivo e o uso polêmico do termo pela propaganda revolucionária, sobretudo como instrumento de achincalhe entre suas múltiplas dissidências internas. Comunistas e nazistas acusavam-se mutuamente de “aliados da reação”, assim como o faziam, dentro do próprio campo comunista, os adeptos de Stalin e de Trotski.
O movimento revolucionário como um todo é uma tradição de pleno direito, com unidade e continuidade conscientes, refletidas não só nos incessantes reexames históricos a que seus líderes e mentores se entregam com mal disfarçada volúpia, mas na história dos grupos, correntes e organizações militantes, notáveis pela sua estabilidade e permanência ao longo dos tempos. A “reação” não tem nenhuma unidade em escala mundial. Sua história consiste de uma série de surtos independentes que espoucam em lugares diversos, ignorando-se uns aos outros e contentando-se com suas respectivas identidades históricas locais. Existe, por exemplo, uma identidade histórica do conservadorismo americano, ou até do anglo-americano. Mas ela não tem nenhuma conexão – nem vontade de tê-la – com a da direita francesa, ou alemã, hispânica ou hispano-americana, por exemplo. (Não deixa de ser interessante observar que, embora as defesas mais eloqüentes dos princípios econômicos clássicos subscritos pelos conservadores anglo-americanos tenham vindo de dois pensadores austríacos exilados, Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek, a influência deles foi absorvida como um fator isolado, sem que se disseminasse nos meios conservadores da Inglaterra e dos EUA nenhum interesse maior pelo surto cultural austríaco dos anos 20, do qual a obra deles é tão evidentemente devedora.) Uma “internacional direitista” é quase inconcebível, e é de certo modo inevitável que seja assim. A ação revolucionária é global de nascença, seu campo de ação é o mundo inteiro. As reações não poderiam ser senão locais e esporádicas, conforme a multiplicidade casual dos valores – patrióticos, religiosos, morais, sociais e econômicos – que pareçam mais diretamente ameaçados pelo movimento revolucionário em cada lugar e ocasião. Voltando-se contra aspectos determinados e parciais da revolução, as reações vivem num perpétuo desencontro do qual só poderão sair quando enxergarem a unidade do inimigo e entrarem num acordo de combatê-lo como um todo, não por pedaços isolados. Uma dificuldade que se opõe a isso é que, como as dissidências internas do movimento revolucionário se rotulam mutuamente de reacionárias, com freqüência algumas delas passam como verdadeiramente direitistas perante a população mal informada e até perante a liderança reacionária, que assim acaba dividida por efeito da infiltração e das intrigas. Outra dificuldade é que, tomadas isoladamente, nem todas as propostas do movimento revolucionário são más ou destrutivas. Ao contrário, muitas delas não são senão valores tradicionais usurpados, adulterados e colocados a serviço do plano revolucionário de conjunto. O mal não está nas propostas isoladas, está no conjunto. Como, porém, a direita é politicamente fragmentária, sua visão do inimigo tende a ser também fragmentária.
Ilusão da “meta da história”
Tomar a sua própria ideologia como culminação e objetivo final da História e depois redesenhar a sucessão dos tempos passados para forçá-la a confirmar esse preconceito é um vício tão disseminado entre os pensadores modernos, que acabou por penetrar fundo na alma dos povos e consolidar-se como um dogma da religião civil em quase todos os países do mundo. O automatismo compulsivo com que nos debates populares os partidários das correntes mais díspares apelam aos lugares-comuns do “avanço” e do “retrocesso”, do “progresso” e do “atraso”, não só para comparar sua imagem de si próprios com a de seus adversários, mas até para usar esses termos como medidas gerais de aferição dos acontecimentos históricos, mostra como se tornou natural e improblemático imaginar a totalidade do movimento histórico como uma linha unidirecional com trajeto uniforme e objetivo predeterminado.
Nada nos conhecimentos disponíveis na ciência da História justifica essa pretensão, que parece adquirir tanto mais autoridade sobre o imaginário quanto mais desmentida e desmoralizada pela pesquisa histórica séria. Não existe uma receita mais infalível para escapar da realidade e viver num mundo de fantasia do que subscrever, de maneira consciente ou inconsciente, esse mito grotesco da “meta da História”. O fato mesmo de que existam metas diferentes em disputa, cada qual se arrogando o papel maximamente honroso de ponto final dos tempos, já mostra que se trata de uma competição de enganos. E não só adeptos confessos do mito revolucionário participam dela.
Os liberais em peso seguem a máxima de Croce, “A história é a história da liberdade”, com o seu corolário de que a liberdade é a diferença específica entre o mundo moderno e o medieval e antigo. Para tornar crível essa dupla mentira, são obrigados a ocultar o fato de que o totalitarismo se expandiu muito mais no mundo moderno do que as instituições liberais, tanto em área geográfica quanto no número de seres humanos sob o seu domínio. Não conseguindo ocultá-lo totalmente, tratam de explicar o comunismo, o nazismo e o radicalismo islâmico como frutos do “atraso” e do “retrocesso”, escamoteando o fato de que as ideologias totalitárias são tão modernas quanto o liberalismo e sobrepondo à sucessão real dos tempos a cronologia inventada. Mesmo o radicalismo islâmico só é chamado erroneamente de “fundamentalismo” porque a mídia ignora que ele não é obra de muçulmanos tradicionais e sim de intelectuais muçulmanos formados na Europa sob a influência de Heidegger, Foucault e Derrida.
Quanto aos esquerdistas, nem é preciso falar. Eles acreditam piamente que o socialismo é uma fase histórica superior e posterior ao capitalismo, por mais que os regimes socialistas fracassem e cedam lugar a democracias capitalistas. Naturalmente eles explicam esses fenômenos como “retrocessos”.
Mais extravagante ainda é a onda neo-iluminista e sua irmã xifópaga, o neo-evolucionismo, que proclamam as religiões e especialmente o cristianismo “fases superadas” da História embora as igrejas cristãs não parem de crescer e, nas regiões onde definham, não sejam substituídas pelo culto iluminista nem evolucionista, e sim pelo Islã.
Em contraste com essas fantasias, o que a ciência histórica nos ensina é que:
1. Não há uma linha integral da história humana, mas vários desenvolvimentos independentes, irredutíveis a uma narrativa comum exceto como artifício literário ou como teoria metafísica. A espécie humana só tem unidade biológica, não histórica. A “história universal” tomada como unidade é uma construção imaginária erguida desde o pressuposto de um observador onisciente que ou é Deus – supondo-se que o historiador O tenha consultado a respeito – ou é uma fantasia megalômana de historiador.
2. Se não há linha nenhuma, muito menos há uma linha predeterminada, comprometida a levar a um resultado previsto.
3. Não há um “sentido” da História, mas vários sentidos entrecruzados, documentados pelas auto-explicações fornecidas pelas várias culturas e civilizações. A filosofia da História e a própria ciência histórica não são senão mais duas dentre as inumeráveis estruturas de sentido que vão surgindo ao longo dos tempos conforme o esforço humano de encontrar um nexo inteligível na experiência da vida.
4. Ninguém sabe como ou quando a História vai terminar, portanto toda tentativa de apreender “o” sentido da História acaba instituindo um fim imaginário, após o qual a História prossegue imperturbavelmente.
5. Em contraste com isso, as verdadeiras estruturas de sentido, que criaram e sustentaram civilizações inteiras, não remetem a um fim imaginário, mas ao supratempo, ou eternidade. Só a eternidade dá sentido ao tempo: isto não é uma opinião minha, mas o único ponto em que todas as civilizações sempre estiveram de acordo (v., a propósito, o livro maravilhoso de Glenn Hughes, Transcendence and History).