Posts Tagged fanatismo

Quando a alma é pequena

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 16 de julho de 2007

Todos os males do Brasil, excetuados os de causas naturais, nascem da ausência, na nossa cultura, de um elemento essencial à vida humana: a busca da verdade. Aí ninguém sabe o que é isso, nem muito menos tenta saber, porque ninguém sente falta daquilo cuja existência ignora. Pior: todo mundo conhece as expressões verbais correspondentes à coisa faltante e as usa para designar uma infinidade de outras coisas, de modo que a falta se torna ainda mais invisível e às vezes parece até uma superabundância. Ausente a busca da verdade, parece que sobram as verdades conhecidas e floresce por toda parte o amor à verdade, com seu complemento inverso, o ódio ao erro e à mentira.

As atitudes humanas ante a verdade traduzem-se imediatamente nos modos de argumentação empregados nas discussões públicas. Argumentar é sempre apelar a uma instância superior que tem o prestígio da verdade e da autoridade. Em todos os debates culturais e políticos no Brasil, sem exceção visível, os modos de argumentação usados são os seguintes:

1. Apologia incondicional de crenças cegas adquiridas na juventude, jamais postas à prova e sempre carregadas de um valor emocional absoluto, que deve ser defendido contra todo ataque do exterior. Para isso o sujeito pode mobilizar uma dose formidável de pensamento racional e até de conhecimentos, mas tudo isso permanece exterior, é usado como mera arma defensiva ou ofensiva e jamais como instrumento de análise crítica das crenças mesmas. Qualquer contato com as idéias adversas deve ser breve e superficial o bastante para evitar o contágio. De preferência elas não devem ser conhecidas diretamente, mas reduzidas logo a algum modelo prévio bastante repugnante.

2. Afetação de modéstia racional mediante o apego à “ciência”, aos “argumentos lógicos”, aos “números” e aos “fatos”, tudo isso acompanhado de desprezo olímpico pelo “fanatismo”, pelo “fundamentalismo” etc. Parece o oposto da atitude anterior mas é uma variante dela, apenas trocado o conteúdo da paixão ideológica ostensiva para a ilusão iluminista de um mundo transparente, uniformemente acessível aos métodos da ciência experimental.

3. Irracionalismo histriônico e afetação de misteriosa sabedoria instintiva, expressa mediante afirmações paradoxais, compactamente obscuras, às vezes impossíveis de analisar por absoluta falta de sentido, mas suficientemente enigmáticas ou chocantes para hipnotizar o auditório. Se acompanhado de prestígio artístico, o método é geralmente bem sucedido. Exemplo, a lição do sr. ministro da Cultura: “A metáfora da música brasileira na globalização efetiva dos carentes objetos da sinergia fizeram a pluralização chegar aos ouvidos eternos da geografia assimétrica da melodia.” Praticantes assíduos foram Oswald de Andrade e Glauber Rocha, no passado. Hoje em dia, José Celso Martinez Corrêa.

4. Simulação de equilíbrio e maturidade mediante uma linguagem polidamente inconclusiva que tenta pairar “au dessus de la mêlée”, só para dar maior credibilidade, implícita ou explícita, a uma opção prévia não justificada que acaba se revelando em algum ponto do argumento. É em geral a linguagem dos editoriais de jornal.

5. Sedução da platéia mediante afetação de bom-mocismo e sentimentos humanitários, patrióticos ou pseudo-religiosos expressos em linguagem melosa ou grandiloqüente, entremeada ou não de rosnados ameaçadores ao partido adverso que revelam sutilmente o ódio psicótico latente sob as efusões do puro amor. Leiam Frei Betto.

6. Diluição das percepções mais óbvias mediante apelo a estereótipos relativistas, desconstrucionistas, pragmatistas, ceticistas, etc., quase sempre para justificar alguma opinião idiota que assim fica dispensada de apresentar suas razões.

7. Talvez não devessem sequer ser colocadas em linha de exame as argumentações fundadas no puro e grosso interesse grupal

, quando não no desejo de prazer. Quando o sr. Luiz Mott diz que Jesus era gay , o que ele quer dizer é apenas que aprecia tanto as práticas homossexuais que desejaria fazer delas uma revelação divina. Ma non è uma cosa seria .

Há também instrumentos pseudo-retóricos de uma torpeza sem par que são de uso comum e endêmico em todos esses casos. Um deles é a definição arbitrária dos termos, forjada para levar automaticamente a uma conclusão previamente escolhida. Por exemplo, o sujeito argumenta que as religiões são a maior causa de violência assassina, e quando objetamos que as ideologias materialistas e científicas mataram muito mais gente, responde que as inclui na definição de “religiões”. Outro é o argumentum ad ignorantiam : apelar à própria ignorância da existência de alguma coisa como prova de que a coisa efetivamente inexiste. A lista seria longa e fastidiosa. Não diferiria, em substância, daquela apresentada por Schopenhauer na sua Dialética Erística , apenas com o acréscimo peculiarmente brasileiro de que os próprios nomes latinos dos estratagemas erísticos, depois da edição que fiz desse livro, viraram instrumentos usuais e adornos eruditos dos modos de argumentação acima mencionados. A expressão argumentum ad hominem , usada de maneiras barbaramente impróprias, tornou-se presença infalível nessas conversações.

Esses estilos esgotam o repertório dos modos de argumentação em uso nos debates públicos neste país. O que há de comum entre todos eles é a total leviandade com que evitam o exame efetivo das questões que abordam.

Desde Aristóteles, sabe-se que toda busca da verdade em questões controversas parte do exame das opiniões existentes. Cada uma destas deve ser conhecida em profundidade e sem julgamento prévio, até que o laborioso acúmulo de muitas perspectivas contraditórias faça o objeto em questão aparecer tal como é em si mesmo, acima das diferenças de pontos de vista. Esse método não é infalível, mas é o único que existe. Todos os estilos de argumentação que apontei acima tratam de evitá-lo como à peste. Não apenas fogem à contradição e às dificuldades, mas cada um deles consiste materialmente numa simples casamata de palavras erigida em torno de algum desejo ou preferência, de algum preconceito no sentido mais estrito do termo. No fundo, todos são apenas instrumentos de autodefesa psicológica ante as contradições e perplexidades da vida. Todas as opiniões, com efeito, nascem de alguma reação à experiência vivida, mas muitas delas são uma reação de fuga, o fechamento neurótico numa redoma de palavras. São expressões de almas frágeis e vacilantes, que se apegam a opiniões como se fossem amuletos, para escapar ao terror da incerteza, ao thambos aristotélico, portanto à possibilidade mesma de acesso à verdade.

Como algumas opiniões socialmente relevantes não têm uma estrutura lógica interna suficiente para que possam ser apreendidas racionalmente, elas requerem uma espécie de penetração psicológica da parte do intérprete. Descobri a solução para isso logo na juventude, quando estudei teatro por algum tempo com Eugênio Kusnet. O método Stanislavski ensina-nos a técnica da identificação psicológica profunda com os vários personagens, de modo que o conflito dramático da peça seja interiorizado como conflito psicológico na alma do próprio ator. Uso isso até hoje para entender as idéias mais absurdas e perceber nelas, senão um fundo de razão, ao menos um princípio de verossimilhança. Isso tornou-se para mim tão rotineiro e natural que não me atrevo a contestar uma idéia se antes não a tornei minha ao menos por alguns minutos, de modo que falo sempre com a autoridade segura de quem está discutindo consigo mesmo. Por isso é que me parece tão espantosa e deplorável a atitude espontânea e obstinada de incompreensão defensiva que em geral é a atitude dos nossos debatedores públicos. Todo mundo tem direito a ter opiniões, mas é melhor tê-las depois de um mergulho aristotélico-stanislavskiano no mar das contradições. Quem quer que tenha amor à verdade anseia por esse mergulho, mesmo quando não tem a certeza de encontrar alguma verdade no fundo. A fuga generalizada ante esse desafio é o traço mais geral e constante dos “formadores de opinião” no Brasil. Em última análise, esse fenômeno expressa o medo de viver, o desejo de fugir logo para um mundinho imaginário imune a riscos intelectuais.

Esse medo, por sua vez, revela-se da maneira mais inconfundível na literatura de ficção nacional. Repassando mentalmente as produções maiores da nossa criação romanesca – índice seguro da imaginação das classes letradas –, o que me chama a atenção em primeiro lugar é a falta absoluta de problemas, de enigmas, de perplexidades. O romancista brasileiro limita-se a retratar situações vistas segundo a ótica de uma filosofia ou ideologia preexistente, de modo que tudo no fim parece óbvio e explicado. Não estou falando de escritores ruins, mas justamente dos melhores. Tomem o excelente Graciliano Ramos no mais bem sucedido dos seu livros, São Bernardo , no mais popular, Vidas Secas , ou no mais ambicioso, Angústia . O que se vê nos dois primeiros são equações de sociologia desenvolvidas com a lógica de uma demonstração matemática, a condição de classe dos personagens determinando suas escolhas e produzindo inevitavelmente o destino correspondente: o senhor de terras age como um senhor de terras, a professorinha como uma professorinha, o camponês diante da autoridade como um camponês diante da autoridade. É tudo muito bem observado, muito bem construído, mas não suscita um único “por que?”. No terceiro romance a fórmula parece complicar-se um pouco mediante a introdução de elementos de psicopatologia, mas no cômputo final estes se somam aos dados sociológicos e explicam tudo. Ninguém nega que esses livros sejam obras-primas à sua maneira, mas, se eles nos ensinam algo sobre a vida brasileira e algo sobre como se escreve um romance, não abrem nossa inteligência para nenhuma questão que ali já não esteja de algum modo respondida. Não têm a força fecundante da grande arte literária. O mesmo pode-se dizer de quase toda a produção de Raul Pompéia, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lima Barreto, Guimarães Rosa, José J. Veiga, Antônio Callado, Herberto Sales, Josué Montello e outros tantos.

Você não pode ler o teatro grego, Shakespeare ou Dostoiévski sem perceber que ali se encontra algo de perfeitamente real e ao mesmo tempo inexplicável, lógico e ao mesmo tempo absurdo. Os ensaios de interpretação podem se multiplicar ao longo dos séculos sem jamais dar conta do mistério. A grande literatura de ficção mostra-nos como é a vida humana, mas não pode nos explicar o porquê. Para fazê-lo, teria de subir um grau na escala de abstração, tornando-se análise e teoria, abandonando portanto a contemplação da vida concreta, que é o seu terreno específico. Mesmo os romances mais complexos do século XX, que incorporam elementos de análise filosófica, como A Montanha Mágica de Thomas Mann, Os Sonâmbulos de Hermann Broch, O Homem Sem Qualidades de Robert Musil ou a trilogia de Jacob Wassermann ( O Processo Maurizius , Etzel Andesgast e A Terceira Existência de Joseph Kerkhoven ) não têm por resultado uma teoria explicativa mas a expressão formal concreta de um aglomerado de tensões sem solução. Daí o fascínio mágico que continuam exercendo sobre o leitor por mais que este, eventualmente filósofo ele próprio, se esmere em transformar o egnima em equação. A equação resolvida é sempre genérica, não esgota nunca a infinidade de sugestões embutidas na trama particular e concreta.

Nada disso se observa em geral na ficção brasileira, uma literatura de segunda mão que nasce do recorte da experiência pelo molde de explicações previamente dadas. A análise das obras esgota rapidamente a problematicidade da sua cosmovisão, não sobrando outro enigma senão, é claro, o do talento individual que encontrou soluções tão boas para a transposição estética de uma vivência espiritual tão pobre. Praticamente só em Machado de Assis o que sobra no fim da leitura é uma pergunta sem resposta. Jamais entenderemos por que seus personagens são como são, fazem o que fazem, terminam como terminam. O que há de problemático neles não é uma questão de psicologia individual ou de construção literária. É a própria visão estética que o autor tem da realidade da vida que é um sistema de conflitos e tensões permanentes, uma equação insolúvel. Digo “visão estética” porque, fora e acima da sua criação romanesca, o escritor permanece um ser humano dotado de capacidade de abstração e tão habilitado quanto qualquer outro a sondar explicações genéricas. O que ele não pode é injetar essas explicações no próprio romance, que perderia toda a sua razão de ser enquanto expressão imaginativa de situações reais, trocando a verdade concreta da ficção por um esquema filosófico ou científico abstrato. Contornando essa dificuldade, o romancista brasileiro transforma a ficção na construção de exemplos verossímeis de alguma explicação conhecida. Daí esse fenômeno de uma literatura sem autêntico problema existencial, uma literatura em que a mera alegoria se substitui ao símbolo. Toda a habilidade do ficcionista, aí, consiste em camuflar a explicação por baixo da verossimilhança do exemplo. É precisamente isso o que Machado de Assis não faz. Sua própria filosofia schopenhaueriana nem de longe basta para explicar seus personagens, decerto muito mais incongruentes e patéticos do que o filósofo do Mundo Como Vontade e Representação jamais poderia conceber. E usei acima o termo “praticamente” porque o mesmo sucesso de Machado de Assis na criação de situações concretas inexplicáveis é alcançado ocasionalmente por outros escritores, em momentos de inspiração excepcional que se destacam do restante das suas produções. Penso especialmente no Quincas Berro d’Água, de Jorge Amado, no finado tio Marcelino, de Herberto Sales, ou na arrancada heróica final de Augusto Matraga na novela de Guimarães Rosa. Eles têm uma verdade própria que nenhuma explicação suplanta. Mas são exceções na obra de seus autores, e mais ainda na ficção brasileira em geral.

A verdade desses personagens não é a verdade de uma teoria: é a verdade do símbolo romanesco. Susanne K. Langer definia o símbolo como “matriz de intelecções”. O símbolo não existe para ser explicado, mas para inspirar e fortalecer nossa capacidade de buscar explicações. Jamais explicaremos Hamlet ou Os Demônios , mas volta e meia eles nos sugerem explicações para o que vemos na vida real. A função eminente da literatura de ficção é a transfiguração da experiência em símbolo. O universo simbólico da ficção nasce da experiência; as opiniões não vêm diretamente da experiência, mas do universo simbólico transmitido na cultura, especialmente na literatura de ficção. Quando a própria ficção se furta à complexidade da experiência, preferindo ater-se à imagem verossímil de uma existência previamente explicada, não é de espantar que as opiniões sejam ainda mais superficiais e levianas.

A doença política do Brasil é a condensação de um handicap cultural crônico, a pequenez da alma e o estreitamento do imaginário ante a complexidade da existência. Os brasileiros vivem citando Fernando Pessoa, mas não tiram de um de seus versos a conclusão mais necessária e urgente: Nada vale a pena quando a alma é pequena.

Psicologia do fanatismo

Olavo de Carvalho

Jornal da Tarde, 21 de novembro de 2002

Victor Frankl descrevia o fanático por dois traços essenciais: a absorção da individualidade na ideologia coletiva e o desprezo pela individualidade alheia. “Individualidade” é a combinação singular de fatores que faz de cada ser humano um exemplar único e insubstituível. Há individualidades mais e menos diferenciadas. Quanto mais diferenciadas, menos podem ser reduzidas a tipicidades gerais e mais requerem a intuição compreensiva da sua fórmula pessoal. Isto se observa, mais nitidamente, na obra dos grandes artistas e filósofos, para não falar dos santos e profetas.. É só de maneira parcial e deficiente que a personalidade criadora se enquadra em categorias gerais como “estilo de época”, “ideologia de classe”, etc., que os cientistas sociais inventaram para falar de médias humanas indistintas, mas que o estudioso medíocre insiste em aplicar como camisas-de-força a tudo o que vá além da média.

Nessa insistência já se manifesta, em forma disfarçada e socialmente prestigiosa, o fanatismo definido por Frankl. Boa parte da “ciência social” de hoje não é senão o recorte das individualidades segundo a medida da mediocridade-padrão. Antonio Gramsci, que limitava o papel dos seres humanos ao de agentes ou pacientes da luta de classes — excluindo os incatalogáveis como aberrações ou como resíduos arqueológicos de etapas anteriores da mesma luta –, foi, nesse sentido, um gênio da mediocridade e um codificador-mor do fanatismo. A palavra “fanático”, aplicada ao fundador do PCI, parecerá insultuosa e inaceitável aos que, como bons medíocres, só entendem “fanatismo” na acepção vulgar e quantitativa da exaltação frenética. O verdadeiro fanatismo, ao contrário, é inteiramente compatível com a serenidade do tom e enverga, não raro, convincentes sinais de “moderação”. O fanático não precisa ser irritadiço, nervoso ou hidrófobo. Apenas, ele está tão afinado com a ideologia coletiva que ela basta como canal para a expressão de seus sentimentos, vivências e aspirações, sem nada sobrar daquele hiato, daquele abismo que o homem diferenciado vê abrir-se, com freqüência, entre seu mundo interior e o universo em torno. Ele pensa e sente com o partido, ama e odeia com o partido, quer com o partido e age com o partido. Tudo o que no seu ser escape dessa bitola é desimportante ou doente. Nossa época e nosso país acrescentaram a isso um trejeito grotesco que assinala a última rendição da alma: o militante enxerta a sigla da agremiação no seu nome de batismo, tornando-se “Joãozinho do PT”, “Mariazinha do PT”. Nem o velho Partidão chegou a tanto. A filiação partidária já não é a simples aprovação crítica e condicional que a personalidade autônoma dá a certas idéias políticas: tornou-se o fator estruturante e a essência vivificadora da personalidade mesma, que sem ela tombaria como um saco vazio. A função nomeante e definidora, antes reservada às famílias, às profissões e às regiões, cabe agora ao partido.

Ao mesmo tempo; a filiação dá ao fanático uma localização e um ponto de apoio no espaço externo: pela ideologia coletiva ele se integra tão bem no mundo, que nunca se sente isolado e estranho senão pelo curto intervalo de tempo necessário a reconquistar o sentido da sua missão partidária e de seu lugar na História, jogando fora com desprezo o momento de “morbidez”. Jamais deslocado neste mundo, ele não aspira a nenhum transmundo senão sob a forma de um futuro cronológico a ser realizado neste mesmo plano de existência. Nada o arraiga mais profundamente na temporalidade, no histórico, do que sua rejeição do presente, contra o qual ele brada: “Um outro mundo é possível”, querendo dizer, precisamente, que se trata deste mesmo mundo, tão logo subjugado pelo seu partido. Kant, com ironia involuntária, denominava o espírito da Revolução “sabedoria mundana”. A compressão do infinito no finito não poderia ser mais explícita do que no verso do poeta comunista Paul Éluard: “Há outros mundos, mas estão neste.” Não poderia? Poderia. Gramsci já apregoava “a total mundanização do pensamento”. O fanático, nesse sentido, é desprovido daquela solidão, daquela profundidade, daquela tridimensionalidade próprias dos que “estão no mundo, mas não são do mundo”. Ele, ao contrário, pode “não estar” no mundo, mas, com toda a intensidade do seu ser, “é” do mundo.

Num próximo artigo mostrarei como isso torna o fanático incapaz de perceber a individualidade alheia.

Hitlers em penca

Olavo de Carvalho


Época, 5 de novembro de 2000

Para milhões de brasileiros, o irracional tornou-se um direito e um motivo de orgulho

Numa carta recém-publicada em ÉPOCA, o remetente, após admitir que não compreendia nem meu vocabulário, nem meus argumentos, passava, com a mais cândida naturalidade, a opinar sobre minhas idéias num tom de absoluta segurança.

Eu gostaria de poder dizer que esse homem é um louco, um anormal. Não posso. No padrão atual de nossas classes alfabetizadas, sua conduta se tornou não apenas normal, mas obrigatória. Não é sintoma de maluquice individual: é sinal dos tempos. A total ignorância, a radical desorientação já não constituem, para o brasileiro legente, motivo razoável para refrear a volúpia de opinar, de julgar, de condenar ou aplaudir. A exigência de compreender é que se tornou abusiva, suspeita, intolerável.

Mas não é só isso. Quanto menos um brasileiro conhece um assunto, quanto menos tem a condição de pensar com independência, quanto mais, portanto, está reduzido a confiar cegamente em frases feitas, tanto mais se sente livre e senhor de si ao repeti-las e ao impugnar com veemência feroz o que lhe pareça contradizê-las.

E se, com a maior paciência, o interlocutor lhe demonstra ponto por ponto que tem razão, o ouvinte, ao ver-se compelido pelo peso das provas a admitir a conclusão que não deseja, se julga oprimido por uma imposição tirânica, injusta, arbitrária. Expulsa da alma, a razão é vivenciada como força externa hostil, inimiga do eu e da liberdade. Chegamos, pois, à completa inversão: a obediência automática a um ídolo amado tornou-se liberdade racional, a argumentação e a prova tornaram-se repressão autoritária. Autoridade é razão, razão é autoridade.

Eu gostaria de poder atribuir esse estado de coisas à pouca instrução. Não posso. Só as pessoas muito pobres, analfabetas ou quase, conservam o senso natural da diferença entre saber e não saber, entre anuência racional e crença cega. Nas classes média e alta esse senso foi desativado, precisamente, pela instrução: o tipo de instrução que não visa fazer do homem um sábio, um técnico, um trabalhador qualificado, mas um militante. Aquele que a recebe sente orgulho: imagina-se um “deserdado da terra” que ergueu a cabeça. Mas essa auto-explicação é pura fantasia. Um universitário não é um “deserdado da terra”. Seu orgulho, sua obscena alegria têm outra fonte. Sua vitória não foi sobre os privilegiados (pois ele próprio é um deles): foi sobre a insegurança que advém da consciência de não saber. Ressentindo-a como humilhação insuportável, ele aprendeu a vencê-la – mas não por uma longa e árdua busca de conhecimento. Aprendeu a sufocá-la pelo meio mais fácil: a repressão da consciência, substituída pelo embriagante sentimento de pertencer à multidão dos que “fazem História”. Estes não precisam “saber”. São superiores ao conhecimento. Não querem compreender, mas “transformar”. Por isso se sentem livres quando marcham ao som de slogans e palavras de ordem, escravos quando intimados a parar para pensar. Por isso seu discurso contra a opressão do mundo soa tão falso: é racionalização política de uma auto-exaltação vaidosa, é pretexto edificante de uma sórdida farsa interior.

Eu gostaria de poder resumir esse fenômeno sob o nome de “fanatismo”. Não posso. Nem todo fanatismo destrói a consciência. Esse é algo mais: é um fanatismo de sociopatas. E é a essa multidão de pequenos Hitlers que estamos confiando os destinos morais do país.

Veja todos os arquivos por ano