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Já notaram?

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 23 de agosto de 2012

Vocês já notaram que, de uns anos para cá, a simples opinião contrária ao casamento gay, ou à legalização do aborto, passou a ser condenada sob o rótulo de “extremismo”, como se casamentos homossexuais ou abortos por encomenda não fossem novidades chocantes, revolucionárias, e sim práticas consensuais milenares, firmemente ancoradas na História, na natureza humana e no senso comum, às quais realmente só um louco extremista poderia se opor?

Já notaram que o exibicionismo sexual em praça pública, as ofensas brutais à fé religiosa, a invasão acintosa dos templos, passaram a ser aceitos como meios normais de protesto democrático por aquela mesma mídia e por aquelas mesmas autoridades constituídas que, diante da mais pacífica e serena citação da Bíblia, logo alertam contra o abuso “fundamentalista” da liberdade de opinião?

Já notaram que o simples ato de rezar em público é tido como manifestação de “intolerância”, e que, inversamente, a proibição de rezar é celebrada como expressão puríssima da “liberdade religiosa”? (Se não notaram, leiam http://andrebarcinski.blogfolha.uol.com.br/2012/08/15/ brasil-e-ouro-em-intolerancia/.)

Já notaram que, após terem dado ao termo “fundamentalista” uma acepção sinistra por sua associação com o terrorismo islâmico, os meios de comunicação mais respeitáveis e elegantes passaram a usá-lo contra pastores e crentes, católicos e evangélicos, como se os cristãos fossem os autores e não as vítimas inermes da violência terrorista no mundo?

O que certamente não notaram é que a transição fácil dos epítetos de “extremista” e “fundamentalista” para o de “terrorista” já ultrapassou até mesmo a fase das mutações semânticas para se tornar um instrumento real, prático, de intimidação estatal. Não o notaram porque nunca foi noticiado no Brasil que, nos EUA, qualquer cristão que se oponha ao aborto ou contribua para campanhas de defesa de seus correligionários perseguidos é tido pelo Homeland Security, ao menos em teoria, como alvo preferencial para averiguações de “terrorismo” (v. http://touchstonemag.com/merecomments/2012/07/big-sibling-janet- napolitano-may-be-looking- for-you/), embora o número de atos terroristas cometidos até agora por esse tipo de pessoas seja, rigorosamente, zero. Em contrapartida, qualquer sugestão de que as investigações deveriam tomar como foco principal os muçulmanos ou os esquerdistas – autores da maioria absoluta dos atentados no território americano – é condenada pelo governo e pela mídia como “hate speech”.

Nenhum membro do Family Research Council tinha jamais atirado em ninguém, nem esmurrado, nem sequer xingado quem quer que fosse, quando a ONG esquerdista South Poverty Law Center colocou aquela organização conservadora na sua “Hate List”. Quando um fanático gayzista entrou lá gritando slogans anticristãos e dando tiros em todo mundo, nem um só órgão de mídia chamou isso de “crime de ódio”.

Em todos esses casos, e numa infinidade de outros, a estratégia é sempre a mesma: quebrar as cadeias normais de associação de idéias, inverter o senso das proporções, forçar a população a negar aquilo que seus olhos vêem e a enxergar, em vez disso, aquilo que a elite iluminada manda enxergar.

Não, não se trata de persuasão. As crenças assim propagadas permanecem superficiais, saindo da boca para fora enquanto as impressões que as negam continuam entrando pelos olhos e ouvidos. O que se busca é o contrário da persuasão genuína: é instilar no público um estado de insegurança histérica, em que a contradição entre o que se percebe e o que se fala só pode ser aplacada mediante o expediente de falar cada vez mais alto, de gritar aquilo que, no fundo, não se crê nem se pode crer. É um efeito calculado, uma obra de tecnologia psicológica. Algum militante gayzista pode sinceramente crer que, num país com cinqüenta mil homicídios por ano, cento e poucos assassinatos de homossexuais provam a existência de uma epidemia de ódio anti-gay? É claro que não. Justamente porque não pode crê-lo, tem de gritá-lo. Gritá-lo para não se dar conta da farsa existencial em que apostou sua vida, e da qual depende para conservar seus amigos, seu bem protegido lugar na militância, sua falsa identidade de perseguido e discriminado numa sociedade que não ousa dizer contra ele uma só palavra. O militante ideal desses movimentos não é o crente sincero, mas o fingidor histérico. O primeiro consente em mentir em favor de suas crenças, mas conserva alguma capacidade de julgamento objetivo e pode, em situações de crise, transformar-se num perigoso dissidente interno. O histérico, em vez disso, não tem limites na sua compulsão de tudo falsificar. O militante sincero usa da mentira como um instrumento tático; para o histérico, ela é uma necessidade incontornável, uma tábua de salvação psicológica. A inversão, mecanismo básico do modus pensandi revolucionário, é acima de tudo um sintoma histérico. É por isso que há décadas os movimentos revolucionários já desistiram da persuasão racional, perderam todo escrúpulo de honorabilidade intelectual e não se vexam de agitar aos quatro ventos bandeiras ostensivamente, propositadamente absurdas e autocontraditórias. Eles não precisam de “verdadeiros crentes”, cuja integridade causa problemas. Precisam de massas de histéricos, cheios daquela “passionate intensity” de que falava W. B. Yeats, prontos a encenar sofrimentos que não têm, a lutar fanaticamente por aquilo em que não crêem, precisamente porque não crêem e porque só a teatralização histérica mantém vivos os seus laços de solidariedade militante com milhares de outros histéricos.

Benefícios da surdez

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 03 de abril de 2008

Se há um brasileiro insuspeito de simpatias para com qualquer político, sou eu. Já escrevi o diabo contra todos eles, sempre da maneira mais descortês que me ocorresse no momento. Se falhei e dei a impressão de crítica construtiva – de reprimenda fraterna, como diz a Igreja – juro que não foi essa a minha intenção. Jamais quis corrigir nenhum deles: o que eu queria mesmo era mandá-los todos de volta para suas atividades particulares, se alguma tivessem.

Mas uma coisa tenho de reconhecer: o senador Gerson Camata (PMDB-ES), que pediu uma CPI sobre a ligação entre o Foro de São Paulo, as Farc e aquelas entidades comedoras de dinheiro conhecidas pelo nome pomposo de “movimentos sociais”, é digno do meu maior respeito e consideração. Foi o primeiro político brasileiro a cumprir um dever que era de todos, e do qual todos fugiram ao longo de duas décadas e meia, uns por preguiça e covardia, outros porque lucravam com a omissão.

Não creio, porém, que a iniciativa do senador prospere – principalmente agora, quando a volta da guerrilha, subitamente revelada por uma reportagem da IstoÉ, arrisca tornar patente a imensidão de um concurso de crimes que a todo o establishment esquerdista interessa ocultar.

Nunca ouvi uma mentira mais sonsa, mais ridícula, mais desprezível, do que aquela história de o dossiê anti-tucano ter sido obra de um tucano infiltrado no PT. Mas não vou me meter nesse assunto, pois já não posso, sem ser acusado de “compadrio”, defender nenhum jornalista acossado pela máquina petista de cortar cabeças. Eles, os mocinhos da fita, os bondosos, os humanitários, os gostosões, podem repartir entre seus amigos os cargos mais altos na profissão, as verbas mais polpudas nas universidades e instituições oficiais de cultura, os postos mais saborosos do alto funcionalismo público, como se a mídia, o Estado e o país inteiro fossem seu feudo comunitário.

Mas eu, se insinuo mesmo levemente que o outro lado tem seus direitos, que não há mal nenhum em que a minoria das minorias dê sua opinião com alguma liberdade, torno-me instantaneamente um corporativista maquiavélico.

Por isso, mesmo sabendo que tudo o que Reinaldo Azevedo tem escrito na Veja é verdade e que o ódio que tantos despejam sobre ele é prova de que têm muito a esconder, nada direi em favor dele. Nem direi que sua última crônica naquela revista, malgrado uma referência simpática a Voltaire que eu jamais subscreveria, é leitura indispensável a todos os brasileiros pensantes, membros de uma raça em extinção. Não direi, pensando bem, coisa nenhuma.

Se dezoito brutamontes cercarem o Reinaldo na rua para esmigalhar sua ossatura a pauladas, ficarei bem quietinho, para que ninguém saia espalhando que sou um mafioso empenhado em defender interesses sórdidos da camarilha direitista que, segundo o senhor presidente da República, governa este país há quinhentos anos.

***

Por idênticas razões, não anunciarei nesta coluna o livro do coronel Lício Maciel, Guerrilha do Araguaia. Fingirei ignorar que o lançamento será dia 8 de abril, às 17 horas, no Clube Militar do Rio de Janeiro, Avenida Rio Branco, 251, sobreloja. Muito menos hei de sugerir que alguém seja malvado o bastante para chegar a ler esse depoimento, perfeitamente desnecessário uma vez que o autor já foi julgado e condenado pela mídia esquerdista, mais infalível do que a Santa Inquisição.

Pouco a pouco, sutilmente, imperceptivelmente, nossos compatriotas vão se acostumando à idéia de que “ouvir o outro lado” é extremismo de direita. Eu mesmo já começo a meditar os benefícios da surdez, só comparáveis aos de um subserviente mutismo.

O futuro da direita

Olavo de Carvalho

Jornal do Brasil, 21 de fevereiro de 2008

A Playboy deste mês publica uma entrevista reveladora com alguns líderes emergentes do chamado “liberalismo” brasileiro, filhos de velhos caciques regionais falecidos, aposentados ou desativados. Reveladora, digo eu, porque ilustra com clareza didática algumas obviedades que tenho publicado nesta coluna, mas que os bem-pensantes insistem em não querer admitir, como outrora se recusavam a admitir a existência do Foro de São Paulo.

A mais flagrante delas é que não existe direita politicamente relevante no Brasil. Os entrevistados não só rejeitam a denominação de direitistas – o que já é bastante significativo, tendo em vista o orgulho com que os esquerdistas se assumem como tais –, mas subscrevem no fim das contas todo o programa sociocultural da esquerda, com a única diferença de que desejariam realizá-lo pelo livre mercado em vez da ação estatal direta.

Que isso constitua mesmo uma diferença, é altamente duvidoso. Do ponto de vista econômico, a disputa entre liberais e socialistas no mundo vai-se tornando cada vez mais adjetiva: nenhum político é louco o bastante para advogar em público a supressão do Estado previdenciário, nem idiota o suficiente para continuar acreditando na eliminação total da propriedade privada. A guerra entre os sistemas tornou-se uma tênue oscilação para lá e para cá de um confortável meio-termo. A direita quer o capitalismo sob a proteção do governo-babá, a esquerda quer o socialismo vitaminado pela força do livre mercado. É a tese de Paul Edward Gottfried em After Liberalism : Mass Democracy in the Managerial State (Princeton University Press, 2001): junto com o socialismo real morreu também o liberalismo ideal. A vitória da “revolução dos gerentes” matou os dois, inaugurando a era da democracia de massas, o que é o mesmo que dizer: o império universal da burocracia.

Com isso, o foco da disputa efetiva transferiu-se para um domínio mais sutil — e infinitamente mais decisivo para o futuro da humanidade: o sonho do espírito revolucionário já não é o controle estatal da economia, mas o controle estatal da vida privada, da mentalidade popular, dos usos e costumes, da imaginação e dos sentimentos. É promover a ruptura total com as tradições históricas e operar enfim a longamente ambicionada mutação radical da natureza humana. Décadas atrás os melhores cérebros da esquerda – Lukács, Gramsci, os frankfurtianos – já haviam concluído que nesse campo, e não na economia, seria travada a batalha decisiva. Mas a idéia era prematura quando a lançaram. O advento da “democracia de massas” vem dar-lhe uma atualidade explosiva, preparando o terreno para a revolução cultural globalizada.

No novo contexto, o dever máximo ou único de uma direita historicamente consciente é defender os princípios e valores civilizacionais milenares, resistindo à ambição insana de planejadores sociais para os quais a espécie humana não passa de matéria-prima para experimentos que variam entre o irresponsável e o macabro.

Mas muito provavelmente essa resistência será em breve criminalizada como extremismo de direita, e, se não lutar como um exército de leões, desaparecerá do cenário político decente. Só sobrará lugar para a “direita bossa nova”, como a chama a Playboy – a direita que cede tudo em troca de um pouco de capitalismo.

A economia de mercado deve, sim, ser defendida, porque só nela os princípios e valores hoje ameaçados podem subsistir. Mas abdicar deles em troca da economia de mercado pura e simples, fazendo dela a única finalidade em vez de um meio entre outros, é servir duplamente ao esquerdismo, entregando-lhe de mão-beijada o que ele mais almeja conquistar e ainda criando uma camuflagem “capitalista” para dar aparência inofensiva à mais temível mutação revolucionária de todos os tempos.

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